Autor: Robinson Cavalcanti
Certa vez, em um congresso de juventude, em um estudo sobre afetividade, um rapaz encaminhou a seguinte pergunta: “O que o senhor acha de se namorar uma moça do mundo?” A minha resposta foi: “Parabéns por sua normalidade. Estaria preocupada se você estivesse namorando uma ET.” Em nossas igrejas, artistas dão testemunho, dizendo que deixaram de cantar ou tocar “no mundo”. Talvez já tenham contratos para atuar em Marte ou Vênus, ou para fazer uma exibição para as potestades angélicas…
O MUNDO
Um problema de tradução de vários termos do grego para um só vocábulo em português tem concorrido para distorções teológicas de trágicas implicações.
Pode parecer contraditório que Jesus Cristo tenha dito que o Seu reino não era deste mundo (Jo 18:36), enquanto afirma que Deus amou o mundo ao ponto de por ele sacrificar o Seu filho. E, ainda, nos ensina em sua oração: “Assim como Tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei as mundo” (Jo. 17:18). O apóstolo do amor, João, também parece contraditório: “Não ameis o mundo, nem as coisas do mundo. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele” ( I Jo. 2:15). Estaria João pedindo que fossemos contrários a Deus, não amando o mundo que Ele amou?
Deus criou o mundo, o universo (kosmos) e ama a sua criação. No universo da criação Ele incluiu o nosso mundo particular, a terra (geo) e também a ama. A terra, a natureza e as criaturas (oikumene) caíram, mas Deus, mas Deus não os desprezou, Deus havia planejado um estado de coisas perfeito, diferente do atual (aion), com o qual devemos nos inconformar, esperando um mundo novo (aiones), quando, por fim, viveremos em um mundo pleno (aionios).
Assim, a questão não é espacial: a rejeição do planeta, da vida, da história, da sociedade, das pessoas, do Estado, do corpo, mas ontológico e moral: as formas de pensar, de agir, de organizar, que são contrários ao projeto de Deus.
Escrevi em meu livro Cristianismo e Política: “Quando amamos os homens estamos rejeitando “O mundo” (que não ama, mas odeia); quando lutamos pela justiça, pela paz e pela liberdade no mundo (valores do Reino) estamos rejeitando “o mundo” (que é injusto, conflituoso e escravizador); quando penetramos no mundo rejeitamos “o mundo” (que é egoísta e alienante). O que assumimos é mais do que vida e ministério em um tempo dado (chronos), mas no tempo marcado pela Providência, designado por Deus para nossa missão (kairós). O que João está rejeitando? “… a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida…”, ou seja, o pecado. A isso ele chama, metaforicamente, de “Mundo”. “A isso rejeitamos; aos homens amamos”.
MUNDANIDADE
Deus entregou às criaturas humanas um mandato cultural, de gerenciar o mundo, dando continuação à obra da criação, segundo o seu projeto original. Deus exerce a sua Providência sobre o mundo, nele estabelece Alianças, a ele se revela e nele encarna. Jesus Cristo foi completamente humano em tudo, menos no pecado, e um ser cultural, completamente integrado à vida social do seu tempo e lugar, assumindo a sua cultura. Por fim, Ele nos enviou ao mundo.
Foi o evangelista Charles Finney quem afirmou que a tarefa do cristão era transformar o mundo. E não se transforma o mundo sem nele participar. É uma heresia dos desobedientes, dos medrosos, dos preconceituosos e dos acomodados a atitudes de isolamento dentro das quatro paredes da igreja, o separatismo, a alienação de um falso “triângulo da felicidade”: “trabalho – lar – igreja”, sem o exercício responsável de cidadania, como “sal” e “luz”.
É a falsa “teologia” do “crente não se mete nisso” ou “isso não é lugar para crente”. Ou essa gente não leu os evangelhos, ou não aprendeu nada com a vida de Jesus. Assim, a desobediência leva à não-influência na vida pública: cidadania, cultura. Assim, nos ausentamos dos esportes, das ciências, da literatura, das artes, das manifestações folclóricas. Assim, não vivemos, mas somos apenas pré-cadáveres.
No Brasil, uma ênfase particular contra tal “mundo” se refere à nossa cultura, por suas raízes íbero-católicas, ameríndias ou africanas. Por esse raciocínio, des-mundanizar-se seria des-brasileirar-se.
MUNDANOS
Eis o âmago da questão:
1. Somos todos seres humanos, e não anjos, seres sociais e não eremitas, terráqueos e não marcianos, e vivemos culturalmente: língua, roupa, culinária, arte, direito, religião, costumes, valores, estilos, etc. o mundo é um mundo pluricultural, e todos os cristãos vivem em uma cultura, como Jesus viveu na dele;
2. Todos as culturas, por serem produzidas por comunidades de pessoas, são ambíguas, têm aspectos positivos e negativos, refletem tanto a imagem de Deus quanto o pecado. As culturas (para a Antropologia) não são piores ou melhores, são diferentes. Cada uma tem virtudes e fraquezas. As culturas não podem ser nem sacralizadas (tidas como absolutas, imutáveis, e acima de tudo), nem demonizadas (rejeitadas em sua totalidade, como perversos);
3. A cultura judaica não era sagrada, nem normativa, nem pode servir, automaticamente, e em um salto histórico, como paradigma para hoje. Ela foi, em sua ambigüidade, um espaço para a revelação, e tem, por isso, muito que nos ensinar. Mas, seria um absurdo, o cristão desbrasileirar-se para judaizar-se;
4. A igreja primitiva também tem sido mitificada. Apesar de sua proximidade temporal com Jesus, também tinha os seus problemas. Não se pode reproduzi-la dois mil anos depois, o que seria negar a História e a atuação do Espírito Santo nesses vinte séculos;
5. A atitude sectária isolacionista de alguns cristãos contradiz a destinação dos seres humanos na ordem da criação (mandato cultural) e o “ide” para ser “sal” e “luz” no mundo, e não fora dele. Esses cristãos seguem o modelo dos essênios, e não o exemplo de Jesus;
6. É compreensível a valorização das culturas onde o cristianismo (e, particularmente, o cristianismo reformado) teve uma maior influência. Mas não devemos mitificá-las, esquecidos do seu lado pecaminoso, dos seus exageros e esquisitices, tantas vezes erroneamente identificados como Reino de Deus. Não estamos na Alemanha do século XVI, ou na Inglaterra do século XIX, nem devemos querer ser o sul dos Estados Unidos, a Irlanda do Norte, ou a África do Sul do século XX. Enveredar por esse caminho não torna ninguém mais cristão, apenas “americanalhado”…
Pela providência de Deus, somos brasileiros e temos a nossa nacionalidade. Pela graça de Deus, temos a nossa cultura e a nossa maneira de ser. Somente com o nosso amor à brasilidade poderemos questionar e propor mudanças, à luz da Palavra e não de preconceitos importados de outras culturas.
A mundanidade é um fato. O mundanismo (vs. Santidade) não é uma questão de exterioridade, mas o nosso interior (obra da carne vs. Fruto do Espírito). Testemunho não é dado em riste, hipocrisia, anacronismo ou estrangeirismo, mas vida de amor
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