Mulheres na igreja: no caminho de um novo paradigma de vida eclesial

Autor: Manuela Silva
1. O lugar das mulheres e do feminino nas sociedades contemporâneas

A modernidade ficará para a história como um tempo de profundas e radicais transformações nos múltiplos planos em que se desdobra a vida humana: na ciência, no conhecimento e na cultura; na organização da produção da riqueza e nas tecnologias que servem os processos produtivos e, em geral, a economia; na habitação e urbanização; nos transportes e comunicações; na organização da vida social e política; no desporto e no lazer; na educação, na saúde e na reprodução humana; etc.
A esfera do religioso não poderia escapar – e de facto não escapou – a mudanças tão radicais e profundas como as que sucederam no último século. Para ser breve, direi que a secularização é, hoje, um dado adquirido, isto é, as sociedades contemporâneas organizam-se com inteira autonomia relativamente às crenças e ao modo como as diferentes confissões religiosas se exprimem na vida pessoal e colectiva dos seus fiéis.
Não se poderá dizer que a religião esteja em vias de desaparecimento, como pretendem alguns; pelo contrário, há observadores qualificados da realidade social que sustentam a tese de que estará mesmo a haver um recrudescimento da religião ou, como é costume dizer-se, estamos a assistir a um retorno do religioso. Porém, paradoxalmente, isso não se traduz, por ora, em maior frequência e participação nas religiões institucionalizadas e, em particular, na Igreja católica.

Ao invés, a chamada “prática religiosa” parece declinar significativamente. Em Portugal, como em outros países de matriz cultural cristã.

Um dos sectores de mudança societal que caracteriza a modernidade tem muito a ver com o nosso tema. Refiro-me à condição sócio-económico-política das mulheres, à afirmação da igualdade de género e à descoberta do “feminino” como valor relevante e insubstituível ne edificação das sociedades humanas do futuro.
Sem entrar na explanação deste fenómeno societal e saltando sobre as lutas que foi necessário travar para termos chegado ao ponto em que nos encontramos, quero destacar apenas alguns dos contornos mais salientes da condição sócio-económico-política das mulheres nas sociedades contemporâneas que conhecemos.
Assim:
– As mulheres entraram na vida económica mercantilizada, através, sobretudo, do acesso ao trabalho profissional nos diferentes domínios da actividade económica; estão, hoje, presentes em praticamente todas as profissões e sectores de actividade; encontram-se representadas em todas as categorias profissionais. Pela via do trabalho profissional, as mulheres adquiriram autonomia económica e estatuto sócio-profissional e participam da socialização colectiva que os meios de trabalho proporcionam e geram.
– As leis vigentes estabelecem princípios e normas de não discriminação em função do sexo, o que não sucedia há 30 anos atrás; contudo, convirá não esquecer que, no entanto, as práticas sociais continuam, até certo ponto, a denegar, subrepticiamente, tais recomendações e preceitos legais. São conhecidos indicadores de situação que revelam que os níveis de salários e remunerações das mulheres, no seu conjunto, são cerca de 20 a 25% inferiores aos da população masculina. Os indicadores estatísticos provam também que o desemprego afecta mais severamente as mulheres e que, analogamente, a pobreza e a exclusão social fazem as suas vítimas, sobretudo entre a população feminina.

– As mulheres dispõem, hoje, de níveis de educação e qualificação profissional tão elevados -, em certas áreas, superiores – aos dos homens, o que as habilta com um capital de conhecimento e de cultura que as sociedades modernas não podem ignorar ou subestimar.

– É notória a presença das mulheres nas várias expressões da cultura, a literatura, a filosofia, o cinema, as artes plásticas e outras.
– Menos satisfatória é a evolução que vem ocorrendo na organização da vida política; as mulheres, ainda hoje, têm grande dificuldade em trespassar as espessas cortinas das estruturas políticas partidárias e, embora presentes nas várias instâncias da vida política, deparam com múltiplas resistências, como é próprio das minorias.
– Em contrapartida, a vida colectiva, tal como a conhecemos, é possível, porque é sustentada pelas mulheres, quer como profissionais particularmente dirigidas a esses sectores quer como voluntárias exercendo trabalho benévolo nos vários domínios da saúde, da educação, da acção social, etc. São ainda as mulheres que asseguram a maior fatia dos chamados “cuidados pessoais”, relativamente à família e vizinhança.
Pareceu-me importante destacar estes traços da modernidade para melhor se perceber o contexto em que, hoje, se coloca a problemática em torno da condição eclesial das mulheres. Há, porém, ainda um outro factor a salientar. No percurso das lutas pela afirmação do direito à igualdade de género, foi-se tornando claro que a igualdade não pode abafar a diferença e que o feminino e o masculino enquanto categorias sócio-culturais, ultrapassam a diferenciação dos sexos. É, hoje, um dado adquirido que o feminino e o masculino devem merecer idêntico apreço, já que ambos estes polos são necessários à construção de uma vida colectiva de desenvolvimento humano e sustentável.

2. O impacto da modernidade na condição das mulheres na Igreja: factos e desafios

A transformação radical por que passou a condição das mulheres nas sociedades modernas, sobretudo no mundo ocidental, não podia deixar de ter um forte impacto na vida eclesial e, em especial, na situação das próprias mulheres na Igreja e no modo como elas percepcionam o seu lugar na vida eclesial.

As igrejas cristãs e, em especial, a Igreja católica sempre mantiveram relações de proximidade (por vezes, e não raro, de promiscuidade) com as sociedades humanas onde estão inseridas. Não admira que a Igreja, hoje, se apresente, quer o reconheça quer não, como uma realidade também secularizada, onde caberá destacar, por um lado a maior autonomia dos fiéis em relação às estruturas hirárquicas (os fiéis habituaram-se a pensar por si próprios e a assumir pessoalmente os riscos das suas opções individuais); por outro lado, mais do que normas ou princípios, nutre-se o desejo ou reivindicação de uma participação plena nas orientações e destinos das comunidades de pertença.
O modelo clerical da Igreja já foi, abertamente, denunciado pelo Concílio Vaticano II. Estávamos, então, em meados da década de sessenta. Já lá vão quase 40 anos, mas as reais mudanças padecem de uma lentidão confrangedora.

A Igreja católica tem tido imensa dificuldade em lidar com a modernidade e em encontrar caminhos proféticos para enfrentar os seus desafios. O feminismo é um exemplo paradigmático dessa dificuldade estrutural.
A Igreja, na expressão visível da hierarquia, não esteve ao lado das mulheres nos primórdios das suas lutas em prol da igualdade em questões fundamentais como o acesso à instrução, o direito ao voto, a igualdade no trabalho, na economia ou na política. Como, aliás, lhe competiria, à luz do ensinamento e testemunho do Mestre. Preferiu acompanhar de longe, e eu acrescentaria e de pé atrás, estes movimentos. Ou, pior ainda, de algum modo os entravou, desviando a atenção para o enaltecimento da mulher abstracta, da sua dignidade essencial, e da sua função de esposa e mãe.

Creio que esta fronteira está, hoje, ultrapassada, mas não tenho a certeza de que o “feminismo” enquanto fenómeno societal de tomada de consciência dos direitos das mulheres, incluindo o direito à diferença, esteja, perfeitamente, assimilado como um sinal dos tempos, para usar a expressão do Papa João XXIII (cf. Pacem in terris)
Mas não é desta questão que quero, hoje, falar.

O que nos ocupa, aqui, é, antes, o esforço de perceber em que medida o feminismo e, mais amplamente, a transformação operada na condição sócio-económico-política das mulheres das sociedades modernas se repercutem na vida eclesial hodierna, em termos de vivência e experiência eclesial.

Se nos reportarmos à Igreja católica na sociedade portuguesa, aquela que melhor conhecemos, podemos afirmar, sem rodeios, e de forma sucinta, o seguinte:
· As mulheres constituem uma significativa maioria do conjunto dos fiéis e estão largamente representadas na participação nas celebrações da Eucaristia como nos demais actos litúrgicos.
· São as mulheres que garantam a maior parte dos serviços organizativos e pastorais; fazem o acolhimento; asseguram a catequese aos vários níveis; organizam a ajuda fraterna; mantêm os lugares de culto; fazem parte dos córos e demais práticas de animação litúrgica; desempenham tarefas sócio-caritativas; etc. Se não fossem as mulheres, o que aconteceria?! Esvaziar-se-iam as nossas assembleias litúrgicas … a vida eclesial esvanecer-se-ia …
· De notar também que as mulheres católicas são presença de Cristo e da Igreja nos múltiplos lugares onde trabalham, militam ou convivem e aí aportam o seu sentir e testemunho de fé; são elas a igreja no meio do mundo.
· As mulheres cristãs estão na direcção dos vários movimentos e obras de apostolado.
· O ensino religioso e as escolas ditas católicas estão, em boa parte, confiadas a congregações religiosas femininas e muitas são as mulheres que desempenham tarefas de educação nesses estabelecimentos.

Analogamente, são as mulheres que, em maior número, asseguram o funcionamento das instituições de solidariedade social da Igreja e dos serviços sociais que as integram.
Já me tenho referido em outras circunstãncias a este facto, porque considero que não é demais salientá-lo, uma e outra vez, até que se tome consciência da presença real das mulheres na Igreja e por conseguinte se advirta da contradição que, presentemente, subsiste no que se refere a três direitos fundamentais de toda a comunidade organizada:
· O direito à palavra
· O direito à representatividade
· O direito à participação no exercício da autoridade e na governância.
Ora, a Igreja católica, sendo de inspiração divina, não perde a sua condição de realidade humana e por conseguinte não deverá eximir-se ao cumprimento destes princípios basilares.

Cabe notar que não são apenas as mulheres que, nas presentes circunstâncias, se encontram privadas de exercer estes direitos/deveres fundamentais na Igreja. Todos os leigos, mulheres e homens, sofrem da mesma “menoridade”. Com uma diferença, que não será irrelevante no plano simbólico. É que os varões podem ter acesso ao sacerdócio e, por essa via, superar tais limitações. Às mulheres, até agora, esse caminho tem-lhes sido vedado.

Nas presentes circunstâncias, creio, pois, que deparamos com três tipos de desafios:
· A aspiração legítima de as mulheres virem a ter acesso pleno a todos os ministérios ordenados, designadamente ao presbiterado;
· A aspiração também legítima, penso, de um adequado reconhecimento da importância e da visibilidade dos diferentes ministérios, na certeza de que todos eles são vitais para a riqueza da vida eclesial;
· A re-definição de estruturas de participação de todos os fiéis, homens e mulheres, na vida da comunidade eclesial e sua implementação efectiva em termos de funcionamento regular.
E já estamos a entrar no terceiro e último tópico da minha exposição.

3. As mulheres e a construção dos caminhos possíveis para um novo paradigma de vida eclesial

Pelo que acabo de dizer se percebe que, subjacente à problemática relativa à condição das mulheres na Igreja católica contemporânea, está em foco a emergência de um novo paradigma de vida eclesial.
Não é uma questão nova, mas é um assunto da máxima actualidade.
Não é um tema que diga respeito exclusivamente à condição das mulheres na Igreja, mas, obviamente, que dela não pode dissociar-se.
Não é um tema passível de uma reflexão teológica circunscrita ao segredo das câmaras eclesiásticas e dos dicastérios da santa Sé, ainda que seja importante mantê-lo no topo das respectivas agendas.
Não é assunto a resolver apenas com alterações do direito canónico, ainda que indispensáveis; é, sobretudo, uma questão de práticas tão sábias quanto humildes, tão conseguidas quanto aprofundadas e dadas a conhecer como objecto de reflexão e desenvolvimento.
Gostaria de sublinhar que não se trata de uma questão nova. Como se sabe, o conceito de Igreja e o correspondente paradigma de vida eclesial foi a questão que mais ocupou – e preocupou – os padres conciliares e aquela que obrigou a um maior esforço de convergência e consenso.
No final dos trabalhos do Concílio, emerge uma formulação que foi recebida, com entusiasmo e esperança, pelo povo cristão.
A Igreja é o Povo de Deus no seu todo. A Igreja está ao serviço da comunidade humana e nela se edifica, como o fermento na massa do pão.
Têm sido muito lentos os passos dados no sentido de retirar da doutrina conciliar as devidas implicações em termos de estrutura organizativa e do modo de funcionamento da Igreja católica. Inclusivamente, as inovações propostas em termos de maior participação e maior responsabilização de todos têm deparado com resistências sócio-culturais e outras bem como com as conhecidas barreiras levantadas pelos poderes estabelecidos que as tornam, em muitos casos, inexistentes ou irrelevantes.
Creio que um dos caminhos a percorrer será, justamente, o de viabilizar essas estruturas, pressionando bispos e presbíteros no sentido da criação das estruturas de participação previstas e seu respectivo funcionamento. Por isso, digo que a questão não sendo nova é de inteira actualidade.
Não são apenas as mulheres que poderão contribuir para fazer mudar esta situação, mas, certamente, que, em suas mãos, está um enorme potencial de mudança que importa accionar. Desde logo, pela sua importância numérica, mas também pelo nível de responsabilidades efectivas e compromissos reais que já assumem em tarefas parcelares de animação da vida eclesial e, ainda, porque as mulheres, hoje, dispõem de saberes e qualificações que as habilitam a assumir papeis de liderança, ensino e representatividade sem complexos, e com reconhecida competência.
Mas terão as mulheres a formação teológica adequada para lhes proporcionar o suporte de que carecem para viabilizar perspectivas e soluções inovadoras, no duplo sentido de uma postura feminista assumida e de uma visão conciliar da Igreja e sua relação com o mundo contemporâneo?
Reconheço que, em geral, o ensino e a investigação em teologia entraram tardiamente em Portugal. O interesse das mulheres pela teologia é, entre nós, um fenómeno ainda mais recente; talvez dos últimos 10-15 anos e só agora começa a dar os seus primeiros frutos. Creio, porém, que muito haverá a esperar de uma maior intensificação da presença das mulheres na docência e na investigação nos vários domínios da teologia. Deste modo, o acesso das mulheres à teologia bem merece ser tido como uma questão relevante por que vale a pena lutar.

Contudo, enquanto não dispomos de suficientes recursos nacionais, o que só virá a acontecer a médio prazo, deveríamos aproveitar melhor dos contributos que nos poderão advir de outras proveniências. Penso, em particular, na eventual colaboração que nos poderá chegar da vizinha Espanha, onde existe, hoje, uma teologia feminista séria e consolidada, que cobre um vasto elenco de temáticas e está acessível em várias publicações.

Não basta, porém, confinar a reflexão ao meio académico e especializado dos/as teólogos/as. É o povo cristão, no seu todo, religiosos/as e leigos/as que carecem de aprofundar as suas vivências de mulheres e homens da modernidade (ou pós-modernidade, para ser mais actual!) à luz da fé e aprender a permeabilizar com elas a sua própria identidade eclesial.

Estou profundamente convicta de que mais importante do que um eventual ponto de chegada rápida à ordenação das mulheres para o sacerdócio, o que mais urge é uma tomada de consciência alargada por parte de todos os baptisados, mulheres e homens, da sua condição de membros de pleno direito do Povo de Deus, com os consequentes reflexos na participação e na responsabilização pela organização interna da comunidade eclesial a que pertencem e na relação desta com o mundo de que é parte indissociável. É que a igreja não deve – nem pode, pela sua própria natureza – constituir-se em gueto incrustrado na modernidade. O feminismo, no seu sentido mais amplo, de afirmação do direito à igualdade de género e de reconhecimento do valor da diferença, é um ingrediente básico da modernidade tal como a conhecemos e é um factor inquestionável de uma dinâmica de futuro.
Tomar a sério o “feminismo” é, de algum modo, abrir as portas certas para que ele vivifique, a partir de dentro, a realidade eclesial. Parece-me, assim, ser um enorme desafio prenhe de consequências para o próprio paradigma eclesial e sua relação dialógica fecunda com a modernidade.

Recordo – e com isto termino a minha intervenção – uma citação de Raimon Panikkar a qual me parece uma síntese de grande perspicácia e sensatez em relação às desejáveis mudanças.

“As formas ou expressões actuais do cristianismo, mesmo as teológicas, podem parecer caducas, mas não é possível desfazermo-nos delas, ou substitui-las por outras que possam parecer-nos mais adequadas a esta conjuntura particular, sem ter em conta os direitos da tradição, quer dizer, o vínculo histórico entre passado e futuro. Actuar assim não só seria brutal, como falso, e, em última instância, impossível. A continuidade não deve romper-se, a evolução deve decorrer harmonicamente, o enriquecimento deve fazer-se de forma progressiva e a transformação de maneira natural.

Este processo pode ser levado a cabo por uma assimilação sui generis de novos valores ou também trazendo à luz certos aspectos esquecidos até agora; em resumo, por um processo vital de crescimento no qual a substituição ocorra menos por recusa do que por assunção”.

Relativamente ao tema que nos ocupa, a chave da mudança, parece assim, estar no investimento a fazer na acumulação de capital de conscientização do feminismo e do saber teológico de matriz feminista, com vista à indução de boas práticas em direcção a um novo paradigma eclesial. Isto faz-se com adultez na fé e na esperança e oferecendo resistência, por todos os meios ao nosso alcance, à menoridade imposta pelo modelo dominante, quaisquer que sejam as roupagens com que se apresente.

Está nas nossas mãos o não continuar a cultivar uma certa estética de “mulheres bonsai”, na sociedade como na Igreja.

Março 2002

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