Mulheres na Igreja Católica: elementos para uma crítica do poder religioso

Autor: Maria José F. Rosado Nunes
Trabalho apresentado na Mesa Redonda MR11 “Mulher, gênero e poder religioso”, nas VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina
São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998

(Texto Preliminar)

Poder: a polissemia do conceito

Um dos conceitos fundamentais em Sociologia, o poder foi objeto de reflexão desde as origens do pensamento social e político. Sua definição porém, é até hoje problemática. O poder faz parte dos conceitos que não podem ser definidos abstratamente. Deve ser considerado em sua estrutura concreta de relações, em seu contexto jurídico, político, econômico, simbólico ou social.
Há muitas e diversas concepções do poder, palavra polissêmica por excelência. O Dicionário de Ciências Sociais (FGV, MEC, 1986) propõe duas concepções mais gerais de poder: “capacidade de produzir uma ocorrência”, e influência intencional de pessoa ou grupo sobre o comportamento de outrem. Considera ainda que certos direitos legais são reconhecidos como poderes. Neste caso, incluem-se: o direito de alterar direitos legais alheios ou próprios, e o direito de exercer uma determinada ação, no âmbito estatal. Um outra acepção de poder evocada é a do poder político, que pode significar autoridade política ou influência política.
Stoppino, no Dicionário de Política (Bobbio et alt., 1995) lembra que, compreendendo-se o poder em sentido especificamente social, as pessoas podem ser tanto sujeitos quanto objetos do poder. Uma vez que o poder sobre os seres humanos é distinto daquele exercido sobre as coisas e sobre a natureza, não se pode ignorar o caráter sempre relacional do poder social. Pode-se exercer poder através de coisas, como o dinheiro, mas o “poder social não é uma coisa ou a sua posse: é uma relação entre pessoas.” Assim, o exercício do poder depende não só, mas também, das atitudes daqueles e daquelas implicados/as nessa relação. Se alguém ou um grupo se recusa a comportar-se da forma que o deseja ou impõe aquele que exerce o poder, o poder se desvanece.
A corrente funcionalista, na Sociologia, afirma que o “poder não é uma questão de coerção ou dominação social, mas sim, que se origina do potencial dos sistemas sociais de coordenar atividades humanas e recursos, a fim de atingir objetivos.” (Johnson, 1997) Assim, o poder de Estado, por exemplo, teria como finalidade produzir o máximo de benefícios para todos e agiria com base num consenso de valores e interesses. Mas a proposição parsoniana de “circulação do poder”, para o maior bem da sociedade global, foi criticada por minimizar as desigualdades inerentes às relações de poder.
Para Marx, o poder se define pela dominação de classe. É a posse ou a despossessão dos meios de produção e a capacidade ou não de controlá-los que determina as possibilidades de exercício do poder por uma classe social. Sua concepção do poder político decorre daí, sendo o Estado considerado, no Marxismo clássico, como “a instituição em virtude da qual uma classe dominante e exploradora impõe e defende seu poder e privilégios contra a classe ou classes que domina e explora”. (Bottomore,1984:287)
No campo feminista, o poder é também uma categoria central. Mas não há consenso sobre sua conceituação. No singular, diz Perrot(1984:206), tem uma conotação política e designa a figura central do Estado, do qual se diz comumente que é um poder masculino. Mas o poder não se reduz à política e, muito menos confunde-se com o governo. No plural, o poder fragmenta-se, e toma um sentido equivalente a “influências” difusas e periféricas, nas quais as mulheres têm uma larga porção. De qualquer forma, para Perrot, “Na história e no presente, a questão do poder está no coração das relações de homens e de mulheres”. (1984:220)
Pesquisando o lugar de mulheres e homens em grandes empresas, Nicole Aubert (1982) associa poder e dominação. De uma perspectiva marcada pela Psicologia e pela Política, define o poder como “a capacidde de exercer influência sobre a conduta de outros (…) seja por meio da autoridade, do comando, da tomada de decisão ou de uma pressão psicológica mais sutil”. (1982:25) O poder instaura um modo de relação que estabelece uma “diferença estatutária, instituída ou imaginária, levando à subordinação”. Aubert distingue diversas formas de poder – influência, poder dos modelos, poder paterno – e diferentes expressões – poder hierárquico, vontade de poder, gosto pelo poder absoluto. Propõe a existência de modalidades distintas e de modos de operação diferenciados do poder de homens e de mulheres. A preeminência social dos homens sobre as mulheres instaurou “nas instituições e organizações que compõem o campo social, modelos de comportamento e atitudes especificamente masculinas, bem separadas e bem individualizadas dos modelos admitidos pela sociedade como modelos femininos.” (1982:27)
Na área da Teologia feminista, a discussão sobre o poder também aparece. Ackerman (1996:219-221) critica a restrição da concepção de poder à dominação, o que impede a consideração de sua complexidade e da diversidade de mecanismos empregados em seu exercício. A dicotomia presente na distinção entre “poder sobre” (poder mau) e “poder de” (poder bom) é também criticada por Ackerman, por não dar conta “das realidades da vida”. O primeiro, identificado ao poder patriarcal, masculino, tem conotação negativa, enquanto o segundo, compreendido como relacional, feminino, constituiria o lado positivo do poder. Esta compreensão do poder reflete uma maneira essencialista de pensar, que encerra “as mulheres” em uma categoria indiferenciada, à qual é imputada a passividade. Também mulheres têm “poder sobre”, que nem sempre é negativo, e se diferenciam por raça e classe. “Definições do poder devem tomar em conta o fato de que o poder é evidenciado de formas diversas e interrelacionadas: como poder sobre, poder de, poder para, poder com; assim como relaciona-se com conhecimento, amor, diferença, violência, resistência, e corporeidade. O poder modela nossas vidas, seja nas estruturas políticas, sociais e econômicas, como nas religiosas”.
Por este rápido recorrido, pode-se perceber o quanto é controvertida a questão da conceituação do poder e como é difícil, senão impossível, estabelecer uma única concepção do mesmo. Segundo Jonhson, “O conceito de poder é controvertido não só porque pode assumir diferentes formas, mas porque a maneira como o encaramos afeta profundamente o modo como pensamos em sistemas sociais e a forma como eles funcionam.” (1997:178) A concepção que temos do poder afeta também, logicamente, a forma como pensamos a natureza do poder religioso e seu funcionamento.
Para os objetivos detse texto, tomaremos por base o pensamento de Weber e de Foucault, para analisar depois, suas implicações para explicar o lugar diferenciado de mulheres e de homens, nas organizações religiosas de tipo igreja. Dito de outra forma, buscar-se-á mostrar como o poder religioso é moldado, não só, mas também pelas relações de gênero.

Weber e o poder religioso

Entre as definições sociológicas clássicas do poder, está a de Max Weber: “a possibilidade de impor a própria vontade sobre a conduta alheia”. Para ele, pode-se falar de poder social, quando um ator faz triunfar sua vontade, vencendo a resistência do sujeito passivo. Para alguns comentaristas de Weber, o conflito seria inerente á sua concepção de poder. Para outros, no entanto, tal concepção implica em conflito, embora não o pressuponha, obrigatoriamente. A dimensão antagônica das relações de poder, que ocorre com demasiada frequência, deve ser reconhecida como significativa, embora não seja constitutiva destas. (Chazel,1996:221)
Em Economia e Sociedade, Weber (1984) analisa a dominação como uma das formas do poder. Sua tipologia da dominação tem como critério a origem do poder de que são revestidos os que comandam. Distingue assim, três tipos de dominação: a tradicional, característica das sociedades primitivas, funda-se no prestígio pessoal, legitimado pela tradição; a legal ou racional, típica das sociedades modernas, realiza-se através de um sistema de normas e regras, fundando-se na abstração da lei; e a carismática, que tem como fundamento os atributos pessoais, o “carisma” do líder – “o profeta” – que reúne em torno de si, um grupo de discípulos. Patriarca, burocrata e chefe carismático exercem de forma diferenciada a dominação, invocando o poder, o respeito e o prestígio para exigir obediência. Note-se que, sociologicamente, “carisma” e “profeta” apresentam significados distintos daqueles que lhes atribui a teologia, pois têm a ver com relações e grupos sociais e não com alguma forma de dom divino.
Enquanto para alguns sociólogos, todo ato social é um exercício de poder; toda relação social implica em poder; todo grupo ou sistema social é uma organização de poder, para Weber, o poder é um fenômeno “amorfo e instável demais para que possa encontrar-se no centro das relações humanas de superioridade e de subordinação.” (Gabriel, 1988:46) Por isso ele se interessa por saber como relações de poder se transformam em relações de dominação. A obediência às prescrições e normas de qualquer espécie, por um grupo determinado de pessoas, é imprescindível á dominação, como poder institucionalmente estabilizado.
Segundo Weber, dois fatores são necessários para a transformação do poder em dominação e para a estabilização desta: a legitimação e a organização. “De uma parte, sem fé na legitimidade, a dominação não pode adquirir nenhum ‘fundamento seguro’. De outra parte, o curso quotidiano da dominação funciona largamente como organização ou administração. Para ele, as Igrejas são agrupamentos religiosos de dominação que têm necessidade da fé de seus membros em sua legitimidade e repousam sobre a disposição e a administração dos bens religiosos da salvação. (Gabriel,1988:46-47) Não é possível a um poder manter-se, sem uma legitimidade mínima.
Quanto à organização, é no contexto do estudo das estruturas de dominação das sociedades industrializadas, capitalistas que Weber analisa a mudança da estrutura eclesial de dominação no seio da Igreja Católica como um processo de burocratização e de centralização, ao mesmo tempo. Tal processo conduz à constituição de instâncias especificamente organizadas com vistas à produção, à reprodução e à difusão dos bens religiosos e à criação de uma estrutura mais diferenciada e mais complexa. (Bourdieu, 1992) “O caráter essencial desse processo é um fenômeno secular de separação ou de “desapropriação” dos indivíduos aos quais são retirados os meios religiosos de dominação, a concentração desses meios na cúpula e sua atribuição de cima para baixo. Este processo de “desapropriação”, único historicamente, cumpre-se no contexto de destruição das estruturas eclesiais feudais, com suas múltiplas formas de dominação religiosa autônoma, o que, pela primeira vez, abre a possibilidade da concentração dos meios religiosos de dominação na cúpula”. (Gabriel,1982:47)
Através dessa dinâmica burocratizante é que a relação do corpo de fiéis com a esfera do sagrado passa a depender da ação religiosa de um corpo de especialistas – clérigos, profetas e mágicos. Eles detêm o monopólio do poder religioso. “Enquanto resultado da monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos da compet~encia expecífica necessária à produção ou à reprodução de um ‘corpus’ deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e portanto raros), a constituição de um campo religioso acompanha a desapropiação objetiva daqueles que dele são excluídos e que se transformam por essa razão em leigos (ou profanos, no duplo sentido do termo) destituídos do capital religioso (enquanto trabalho simbólico acumulado) e reconhecendo a legitimidade desta desapropriação pelo simples fato de que a desconhecem como tal.” (Bourdieu, 1992:39)
A “qualidade extraordinária” individual ou a função delegada pela instituição legitimam o exercício do poder sagrado pelos especialistas e distingue-os dos simples fiéis, destituídos desse poder. No entanto, não se deve esquecer que a preservação do monopólio desse poder pelos “funcionários do sagrado” depende da aceitação pelo laicato da validade de sua exclusão. Conflitos podem estabelecer-se então, não só no interior do corpo de clérigos em concorrência pela posse do poder religioso. Também os/as fiéis, inidvidualmente ou em grupo, podem colocar em questão a concentração do poder religioso nas mãos dos clérigos, reivindicando uma participação que se funda, muitas vezes, na referência ao carisma fundador. (Léger, 1986:84-93)
Quanto ao segundo elemento deste processo – a centralização do poder – este consiste na “concentração das competências de decisão na cúpula e sua delegação de cima para baixo em um sistema de sobre e de sub ordenação dos ministérios. Para Weber, a declaração do episcopado universal do Papa, no Vaticano I, conduz esse processo ao seu termo.” (Gabriel, 1982:47)
No caso do Catolicismo, a legitimidade da concentração de poder no papado é dada pelo caráter carismático da figura do Papa, por um lado e pelo cultivo da piedade popular tradicional, que permite a organização da religiosidade das massas, por outro lado. São assim, estas duas as estratégias visualizadas por Weber, destinadas a legitimar o processo de centralização do poder religioso.

A concepção de poder em Foucault

Embora, diferentemente de Weber, Foucault não se interesse pelo poder religioso instituído em igreja, suas análises voltam-se para as estruturas e técnicas tipicamente modernas de poder, o que constitui também, o objeto de preocupação de Weber. Para ambos os autores, o poder e a dominação revestem, no mundo moderno, a forma de um “disciplinamento” imposto, o que, para Weber dá-se via burocratização. Enquanto para Weber o problema da institucionalização do poder é uma questão central, Foucault volta-se para a análise histórica da evolução das técnicas modernas de poder e da relação entre saber e poder. (Gabriel, 1982:48)
Para Foucault, o poder é sempre “o efeito do exercício de relações sociais entre grupos e entre indivíduos.” (Sheridan, 1980:251) Não é unitário, nem possui uma essência, mas constitui-se num elemento central de todo sistema social. Como capacidade de impor-se através da ação estratégica, da luta social, o poder faz com que aquilo que aparece como ordem social seja, na verdade, o resultado momentâneo da luta constante e do engajamento do poder. Nessa luta, não se trata de que uns tenham o poder e outros sejam absolutamente despossuídos de poder. Trata-se de conceber o poder como relação de forças. Todos e cada um, individualmente, exercem um certo poder. Mesmo aqueles cujo poder é limitado, aparentemente despossuídos de todo poder, encontram um meio de exercer alguma forma de poder.
Duas perspectivas analíticas do poder são criticadas por Foucault: a localização do poder unicamente no aparelho de Estado, e a concepção do poder como instrumento do modo de produção em vigor. Discutindo criticamente o Marxismo, Foucault relativiza os fundamentos econômico do poder. A finalidade deste não é apenas a de manter a exploração econômica. Presente, desde o início no modo de produção, o poder é parte constitutiva de sua estrutura. O poder estatal é apenas um instrumento de um sistema de poderes que se estende muito mais profundamente e muito além do poder do Estado. A vida das pessoas é organizada por outros meios: por processos de socialização bem sucedidos, por medos não nomeados, pelas afeições. Foucault descobriu que “estas relações transparentes, estratégias e técnicas de poder, que nos atravessam e ajudam a fazer de nós o que somos, foram acompanhadas por formações e configurações específicas de conhecimento que permitiram e produziram a verdade, evidente, necessária e ‘natural’, e o fizeram de tal maneira que o poder envolvido desapareceu para a invisibilidade”.(Cooper, 1981:133)
Para Foucault, portanto, o poder não tem somente uma função repressiva. Ele é também produtivo, na medida em que produz saber. A força do poder vem justamente do fato de que ele não se opõe ao saber, mas o promove. Por outro lado, a análise das práticas e formações discursivas apontam para as funções sociais do conhecimento, enquanto estratégia de poder. Através das técnicas modernas de fabricação da verdade, regula-se a produção, distribuição e circulação de alguns discursos, em detrimento de outros.
Na produção da verdade, vontades e corpos são controlados através da normatização. Norma, corpo e saber são conceitos centrais para a análise das técnicas modernas do poder, que atuam através da canalização produtiva de forças e do disciplinamento da ação. (Gabriel,1988) Esta torna-se rotineira, produz costumes estáveis e cria a normalidade social que constrange e obriga, como realidade social em vigor. Mais do que as maneiras culturais de pensar, são os corpos físicos e suas manifestações vitais, o lugar primeiro do exercício moderno do poder. Enquanto ‘microfísica’, o poder regulamenta e disciplina os corpos em vista de ações automaticamente disponíveis, produtivas.
A questão das técnicas de aquisição e do exercício do poder nas sociedades modernas altamente avançadas é central à teoria foucaultiana do poder. Nem valores partilhados, nem o emprego da força, nem normas interiorizadas ou influência ideológica são suficientes para produzir um direcionamento da ação. (Gabriel, 1988:49) Para ser plenamente eficazes, as técnicas modernas do poder associam-se ao saber, para formar um círculo regular. O poder produz um saber. Ao mesmo tempo, não há saber que não suponha relações de poder. As instituições sociais como a clínica, a prisão, a fábrica e a escola, assim como os discursos científicos e profissionais correspondentes, apresentam-se para Foucault como lugares de exercício de poder e de transformação do saber em poder. Devemos admitir que “o poder produz saber (…), que poder e saber implicam-se diretamente um ao outro, que não há relação de poder sem a constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo, relações de poder.” (Philp, 1984:12)

Mulheres e poder religioso: Uma crítica feminista ou “A natureza problemática do óbvio”

As proposições teórico-metodológicas de Weber e de Foucault, para a compreensão do poder nas sociedades modernas, apresentam elementos úteis para uma análise da situação diferenciada de mulheres e de homens nas instituições religiosas. No entanto, é preciso ir além de suas propostas, para entender “a assimetria fundamental que existe na Igreja, no plano da divisão dos recursos, especialmente no que diz respeito à concentração do saber e dos bens religiosos nas mãos do clero, (assegurando) uma reprodução do poder eclesial unicamente entre os clérigos e (excluindo) de fato as mulheres de qualquer entrada nesse campo.” (Roy, 1991:119)
Um dos problemas com a sociologia das organizações sociais é o tratamento abstrato das categorias utilizadas, o que impede a percepção de elementos fundamentais da realidade. Joan Acker(1991) inicia um estudo sobre organizações sociais não religiosas, e a maneira como funcionam aí as relações de poder, dizendo: “Muitas de nós passamos a maior parte de nossos dias em organizações que são quase sempre dominadas por homens. As posições de maior poder dentro da organização são quase totalmente ocupadas por homens (…) O poder, ao nível nacional como mundial, é constituído como um enclave totalmente masculino, no pináculo das grandes organizações estatais e econômicas. Tais fatos não são novos, embora os sociólogos não lhes prestassem atenção, até que o feminismo veio apontar para a natureza problemática do óbvio. Atualmente, quando se escreve sobre organizações e teorias organizacionais, incluem-se algumas considerações sobre mulheres e gênero, mas seu tratamento é, em geral, descritivo, e a dominação masculina, on the whole, não é analisada ou explicada.” 1991:162.) Pateman (1993), trabalhando no campo das teorias políticas, recorda que “Quando o que está em questão é uma discussão sobre o poder, raramente se pensará que as relações entre mulheres e homens na sociedade, devam entrar nessa discussão.”
A afirmação das autoras citadas acima, aplica-se perfeitamente, ao caso da análise da natureza e das formas de funcionamento do poder religioso. Quando Weber, e outros depois dele, como Bourdieu, analisam as formas da divisão do trabalho religioso, em nenhum momento se dão conta de que essa divisão é também, e de maneira imediata, uma divisão sexual desse trabalho, e também racial. A separação clero/laicato é, ao mesmo tempo, uma separação homens/mulheres. E, no caso do Catolicismo, de uma forma absoluta, já que as leis internas dessa instituição, codificadas no Código de Direito Canônico, e há pouco revisadas, mantêm uma cláusula que atribui exclusivamente aos homens – e celibatários – o acesso ao ministério sacerdotal.
Léger (1980), analisando a situação das mulheres no campo religioso, remete às relações sociais sua explicação. A exclusão das mulheres dos lugares de exercício do poder religioso não é senão o efeito mensurável das relações sociais que se jogam entre mulheres e homens, enquanto grupos sociais. “(…) o problema colocado me parece ser o dos laços existentes entre a divisão do trabalho religioso e a divisão do trabalho social, em termos sexuais. Problema que pode ser estudado, principalmente, através do exame das relações que existem entre o aprisionamento doméstico das mulheres e a extensão das incapacidades que as atingem no campo religioso”. (1980:2)
As consequências de uma tal exclusão no campo religioso não se limitam ao fato de que as mulheres ficam impedidas de aceder às instâncias decisórias da instituição. Estendem-se ainda ao campo simbólico, relegando a população feminina à condição de poluidora do sagrado. Qualquer homem que se aproxime de uma mulher, torna-se inapto para a realização dos serviços do altar.
Além disso, como lembra Zimmerman (1985:52), mesmo entre o grupo leigo, as mulheres “acabam sendo leigas de segunda categoria, vendo-se excluídas também dos ministérios leigos”. A última versão das leis da Igreja Católica, o Código de Direito Canônico, de 1983, mantém a preferência pelos homens, mesmo para funções menores como o acolitato e o leitorado, estabelecendo que “Os leigos varões (eu sublinho) que tiverem a idade e as qualidades estabelecidas por decreto da Conferência dos Bispos, podem ser assumidos estavelmente, mediante o rito litúrgico prescrito, para os ministérios de leitor e acólito”. (Código de Direito canônico, 1987, cânone 230) Ainda que esta norma não seja seguida atualmente na Igreja, ela é ilustrativa do lugar atribuído pelo Catolicismo às suas fiéis. “Mesmo se há milhares de mulheres no mundo que lêem os textos litúrgicos, que pregam ou servem nas liturgias, elas não gozam de nenhum estatuto para realizarem esse serviço, o qual pode ser contestado se elas exprimem a necessidade de inscrever institucionalmente sua atividade no seio da comunidade. Note-se que a homilia é expressamente resevada ao sacerdote e ao diácono (cânones 764 e 767, §1) (…) Dito de outra forma, os ministérios efetivos que as mulheres poderiam exercer, estão sempre na dependência do poder sagrado que detém o homem”. (1985:53)
Voltando ao pensamento de Weber, para ele, violência pura e força distinguem-se da dominação. Esta, analisada enquanto relação social, supõe interação entre quem – indivíduo ou grupo – detém o poder de comandar e quem obedece. Em todas as formas de dominação, busca-se criar a crença em sua legitimidade. Sem uma base mínima de legitimação, não há domínio que perdure. A relação entre dominação e força não é, no entanto, tão simples. Exercido de forma sutil, mascarada, velada, o poder abusivo não deixa de ser violento. Há uma dialética complexa que se estabelece entre a ameaça que o dominante faz pesar sobre aqueles/as que o recusam e o consentimento do grupo dominado. “No Catolicismo, o poder realiza-se sempre sob a máscara do sagrado, quer dizer, do interdito” (Chaigne, 1981:27) O problema da legitimação da dominação deve ser compreendido, tomando-se em conta o fato da assimetria existente entre os atores e atoras sociais envolvidas numa situação de dominação, como o próprio Weber admite.
Além disso, deve-se considerar a crítica feminista à teoria do consentimento dos/as dominados/as, dada sua incidência sobre a análise de situações reais de dominação: violência doméstica exercida contra as mulheres, em particular, racismo, e outras. Dominação sofrida e dominação exercida aparecem, na teoria weberiana como independentes e equivalentes, o que anula a relação de poder estabelecida. O grupo dominado acaba por aparecer como tendo papel primordial em sua própria dominação. Seu consentimento parece sustentar mais o poder, segundo essa proposição, do que a violência dos dominantes.
Também o conceito de autoridade faz problema. Sem o recurso à força, a instituição religiosa deve recorrer à obediência, apoiando-se unicamente em sua autoridade. Como lembra Léger, existe sempre o risco de se fazer da autoridade uma forma nobre do poder. (Notas de curso sobre o poder religioso, Paris, 1988) A insistência sobre o dever de obediência, numa situação de perda de poder, como é o caso das instituições religiosas nas sociedades, coloca o problema da necessidade de novas formas de legitimação. Onde falta o reconhecimento social, nas instituções sociais, de caráter religioso ou não, são as técnicas de poder que tomam lugar.
A análise weberiana do processo de burocratização e centralização das organizações religiosas nas sociedades modernas, pode ajudar a compreender como as relações de gênero moldam as relações de poder nessas instituições, à condição que indo além do que propõe o clássico autor, se tomem as relações sociais de sexo como centrais à análise, ainda que não de forma exclusiva.
No caso de Foucault, conforme Acker (1991), a compreensão do poder como difuso e constituído pelo discurso tem como resultado uma análise “assexuada” da burocracia e, assim, neutra, em termos de gênero. Este não pode então funcionar, nessa análise, como um componente complexo do controle e da dominação nas organizações sociais. No entanto, a análise que faz Foucault das práticas discursivas pode ajudar a entender como são produzidos de forma sexuada ou “generificada”, e “racificada”, os discursos teológicos e doutrinais de caráter religioso.
A articulação proposta por Foucault entre produção do saber e exercício do poder, mostra que, longe de se constituírem em esferas estanques e separadas, saber e poder aparecem historicamente indissociados, como vimos acima. A interação entre produção do conhecimento e controle social faz com que, de uma parte, haja um saber que sustenta e justifica ideologicamente um poder. De outra parte, esse mesmo poder engendra as condições de elaboração de um saber que o legitima, instituindo a fala “competente” e “verdadeira”, que instaura “a verdade”; através de um discurso anônimo e sem história, pelo qual é possível universalizar uma imagem particular, apagando diferenças e contradições. (Chauí, 1982)
Ora, a constituição do saber como espaço masculino por excelência, articula-se com a questão da exclusão feminina do poder na sociedade em geral, e nas Igrejas, em particular. No caso da instituição eclesial, o homem é não só o único detentor do poder sagrado de estabelecer a mediação entre as pessoas e a divindade, pelo sacerdócio ministerial. Ele detém ainda, com exclusividade, o poder de elaborar o discurso oficial da instituição, através do qual se estabelecem “padrões de normalidade” tipificadores do que é considerado “feminino” e do que é “masculino”. Tais padrões, reforçados e legitimados pelo discurso científico a respeito da “natureza feminina”, funcionam como mecanismos de controle, na medida em que, sendo assimilados como “próprios”, como “naturais”, qualquer afastamento deles é considerado socialmente e vivido pelas mulheres como “transgressão”. Esse saber masculino, instituído em poder, engendrou uma “natureza feminina” que encerra todas as mulheres na maternidade, como analisa Métral (1981), para o caso do discurso religioso cristão.
Foucault considera “indigna loucura” falar pelo outro. Nesse sentido, o discurso social e religioso sobre as mulheres constitui-se num discurso de homens sobre as mulheres e para elas. Uma palavra dita no lugar da palavra feminina. Uma palavra indigna e autoritária, já que prescreve a outro, a lei de seu ser. “Isto é oferecer uma nova ortodoxia, e, portanto, uma nova tirania.” (Foucault, 1975:31) Perrot, historiadora francesa, afirma: “Constantemente interpeladas, exortadas pelas autoridades morais e religiosas, as mulheres são o alvo de um discurso normativo que, insistindo sobre o que devem ser, contribui para mascará-las e velá-las em seu ser.” (1984:9)
Ainda seguindo o pensamento de Foucault, pode-se analisar a forma como o discurso sobre a sexualidade constrói-se como prática de poder e então, buscar os efeitos diferenciados para mulheres e homens, do tratamento dado à sexualidade pelas instituições religiosas. Estudando o caso do Cristianismo, Fuchs (1988) indica a relação da sexualidade e do poder como sendo, fundamentalmente, uma relação entre o homem e a mulher. Segundo ele, reduzindo o sexo à impureza, ou negando-o, pela exigência da continência para o clero, estabelecem-se a condição e as marcas de um poder excludente das mulheres. Já Acker (1991) faz a crítica das análises organizacionais que trabalham com categorias que abstraem do sexo dos atores e atoras envolvidas nos processos internos às instituições. Para ela, a “ausência da sexualidade, das emoções e da procriação na lógica e na teoria organizacionais, constitui-se em um elemento adicional que, ao mesmo tempo, obscurece e ajuda a reproduzir as relações de gênero”. (1991:172)

Concluindo

Com este texto, o que se pretendeu foi, por um lado, expor, ainda que de forma bastante rápida, alguns elementos das teorias sociológicas em vigor, para a análise da natureza e das formas como funciona o poder religioso, especialmente em instituições de tipo igreja. Buscou-se mostrar como estas teorias oferecem um caminho apenas parcial para a compreensão do quão profundamente o gênero é incorporado nas organizações religiosas. Por outro lado, intentou-se apresentar indicações metodológicas direcionadas à crítica dos modelos existentes, mas também à proposição de um novo quadro que permita entender o funcionamento das organizações sociais, tomando gênero, bem como classe e raça, como elementos constitutivos, estruturantes das mesmas. A dificuldade dessa proposição de um quadro teórico-metodológico de análise que permita dar conta da situação das mulheres nas instituições religiosas, é que as teorias clássicas de análise das sociedades, como sustenta a socióloga Colette Guillaumin, “foram pouco inclinadas a reconhecer na configuração das relações sociais de sexo, fatores explicativos determinantes da sorte reservada às mulheres na sociedade.” (Lafortune, 1991:163)

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