Missões transculturais à porta de casa

Autor: Paulo Pascoal

“Ora, encontravam-se naquele dia em Jerusalém, para assistir às celebrações religiosas, muitos judeus piedosos vindos de diversas nações. Ao ouvir-se aquele rugido no céu por cima da casa, o povo correu para ver o que se passava, e ficaram todos pasmados ouvindo os discípulos falar nas próprias línguas deles. ‘Como é que isso pode ser ?’, exclamaram. ‘Estes homens são da Galileia e, afinal, ouvimo-los falar em todas as línguas dos países onde nascemos! Estamos aqui partos, medos, elamitas, gente da Mesopotâmia, Judeia, Capadócia, Ponto, Ásia, Frígia, Panfília, Egipto, terras da Líbia, perto de Cirene, forasteiros vindos de Roma (tanto judeus como convertidos ao judaísmo), cretenses e árabes. Todos ouvimos estes homens contar nas nossas diversas línguas os poderosos milagres de Deus!’ E ficaram ali pasmados, sem saber o que pensar, perguntando uns aos outros: ‘Que quer isto dizer?” (Actos 2:5-12)

Quando compulsamos todo este texto de Actos dos Apóstolos, sentimos uma certa identificação, pelo menos, entre a realidade da mobilidade étnica do primeiro século e o fenómeno das migrações na Área Metropolitana de Lisboa na actualidade.

Realmente, a cidade capital do país sempre viveu experiências de multi-etnicidade, não apenas ao nível idiomático mas alargadas a uma profunda transversalidade cultural e multi-étnica, apanágio afinal, de todos os grandes centros urbanos. “É que a diversidade cultural está para a humanidade como a biodiversidade para a natureza” . Reconhece-se pois que a expressão das multiculturas sempre estiveram aí, dentro de portas, mas também não podemos ignorar a nova realidade dos fluxos migratórios que alteraram substancialmente o mosaico multi-étnico conhecido em Portugal.

A afirmação de Francisco Marques Alves, Director Regional de Lisboa, Vale do Tejo e Alentejo do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) retracta bem a nova situação da diversidade étnica em Portugal : “Em 1980 residiam legalmente em Portugal cerca de 50.000 cidadãos estrangeiros, número que subiu para 108.000 em 1990, e que no ano de 2000 já atingia as 208.000 pessoas. Hoje, com os titulares de autorização de permanência residem em Portugal cerca de 400.000 cidadãos estrangeiros, o que corresponde a 4% da nossa população. A manter-se o actual fluxo e conscientes de que o fenómeno migratório, tende a alimentar-se a si próprio, é previsível que a curto prazo se atinja o número de meio milhão de imigrantes, isto é, 5% do total da população portuguesa. “

Como é evidente, estes números do SEF dizem respeito apenas às comunidades imigrantes em situação regular. Mas, o que dizer dos imigrantes ilegais? Quantos serão? Ao certo, ninguém sabe “mas estimava-se em Abril de 2002 que vivessem em Portugal cerca de 200 mil imigrantes clandestinos.”

Quando se constata que a população imigrante representa cerca de 8% da população activa do país, embora outros afirmem que esse número já atingiu os 11% da população activa, sabemos que há, de facto, razões para fazermos a pergunta também feita em Jerusalém no dia da manifestação sobrenatural da glossolália: “Que havemos de fazer ?” ou melhor, “Que quer isto dizer?”,

O que é que quererá dizer às comunidades cristãs comprometidas com a Missão de Deus o facto comprovado de que dos 400.000 cidadãos estrangeiros em Portugal em situação regular, 233.000 residam na Área Metropolitana de Lisboa dispersos por mais de 180 nações distintas, sem falar de grupos étnicos com idiomas distintos ?

Seguramente, a obra e o desafio de missões é algo que pode e deve ser enfrentado, mesmo na dimensão transcultural, dentro de portas. É claro que entendemos – “Mas quando o Espírito Santo tiver descido sobre vocês, receberão poder para falar de mim ao povo de Jerusalém, e em toda a Judeia e Samaria, até aos extremos da terra” (Actos 1:8) – como um mandamento a exercitar concomitantemente, mas devemos romper definitivamente com a visão tradicional de que o trabalho missionário transcultural só pode ser realizado pelo deslocamento de meios e recursos para fora do ambiente de origem da comunidade cristã local.

O desafio está aí. Cada comunidade cristã na grande Área Metropolitana de Lisboa deveria abraçar os grupos étnicos aqui representados e dispor-se a alcançá-los com aquilo que, sem eles muitas vezes saberem, é o que de melhor poderão levar desta experiência de imigração, ou seja, o Evangelho de Jesus Cristo.

A pergunta feita em Actos 2:12 que tomamos para nós, surgiu num ambiente de uma cidade carregada de diversidade étnica e linguística. Essa pergunta deve estimular-nos à reflexão. Tendo nós uma realidade multi-étnica muito semelhante a esta vivida num dia especial em Jerusalém, “o que quer isto dizer?” Como responderemos ao desafio missionário das comunidades imigrantes mais representativas da Área Metropolitana de Lisboa?

Independentemente da nossa resposta, da resposta das comunidades cristãs a que é endereçado o desafio, uma coisa é certa. Deus já está a trabalhar entre os milhares de imigrantes que estão paredes meias a partilhar connosco este espaço e este tempo, tão especial das nossas vidas. E porquê? Uma pergunta que nunca teve resposta, poderá, neste caso particular, responder.

“Não devia eu então ter compaixão desta grande cidade de Nínive, com os seus cento e vinte mil habitantes, sem nenhuma compreensão espiritual, e onde vivem também tantos animais?” (Jonas 4:11).

Seja o primeiro a comentar

Faça um comentário

Seu e-mail não será divulgado.


*