Autor: Leandro Karnal
Departamento de História da Unicamp
” Portanto, devemos olhar muito o seguinte: se o inimigo nos alça, abaixemo-nos, lembrando nossos pecados e misérias. Se nos abaixa e deprime, levantemo-nos em verdadeira fé e esperança no Senhor, enumerando os benefícios recebidos e pensando com quanto amor e bondade nos espera para salvar-nos, enquanto o inimigo não se importa de nos falar verdade ou mentira, mas só de nos vencer” (Santo Inácio de Loiola – Carta a Sóror Teresa Rajadell – julho de 1536)
I
O objetivo deste artigo é levantar questões importantes para entender a memória na Companhia de Jesus e a influência extraordinária que ela exerceu na formação da memória brasileira.
A memória e a arte da memória já eram temas importante quando a Companhia de Jesus foi fundada no século XVI. Lembrar com precisão, citar as autoridades bíblicas e os santos padres, enumerar fatos históricos: estas virtudes sempre foram consideradas centrais ao bom pregador ou a qualquer letrado das universidades européias da Idade Média ou do Renascimento.
O poder da memória numa época de pouca difusão da escrita no corpo social era notável. Como lembra Philippe Braunstein a memória pode ser importante tanto nos meios eruditos em função de uma cultura cumulativa como nos meios populares em função do testemunho judiciário. [1]
Santo Inácio quanto à questão da memória, é mais tributário do seu tempo do que inovador. Porém, mais do que nas outras ordens, a memória no sentido mais imediato (lembrança de coisas experienciadas) assumiu importância extraordinária entre os jesuítas. O jesuíta pedia, através de uma oração do próprio Santo Inácio, que Deus aceitasse tudo o que ele tivesse: inteligência, memória e liberdade, virtudes tidas como o ” escol” da alma.
Nos Exercícios Espirituais do santo basco a lembrança minuciosa de cada pecado é tida como importantíssima. Exames freqüentes de consciência e confissões demoradas eram exortadas ao candidato ao hábito negro. Como escreveu na sua vasta correspondência (como a citada em epígrafe), lembrar os pecados afastava a soberba e servia para a emenda deles. Assim, na metodologia jesuítica, a memória pode ser instrumentalizada para atingir uma melhoria de comportamento e conformar a alma aos modelos evangélicos.
O seguidor dos exercícios deveria “exigir contas à alma, desde a hora de levantar até o exame presente, de hora em hora ou de tempo em tempo; e primeiro dos pensamentos, depois das palavras e finalmente dos atos, pela ordem indicada no exame particular”[2]. Igualmente o primeiro ponto do Segundo Exercício de Santo Inácio consiste em trazer à memória ” todos os pecados da vida, examinando-a ano por ano ou época por época. “[3] Para ajudar neste exercício de memória deveria o exercitante contemplar a casa, as pessoas e o ofício que exerceu. Igualmente importante é controlar a própria lembrança, dormindo com a mente voltada para a reflexão espiritual e, ao acordar, afastar qualquer pensamento que não seja o do exercício espiritual seguinte.[4] Não apenas o exercitante passa seus pecados pela memória, mas recria mentalmente todos os passos da história da salvação cristã, trazendo, por exemplo ” à memória a vida e os mistérios de Cristo Nosso Senhor, começando por sua encarnação, até o lugar ou mistério que estou contemplando. ” [5]
Lembrar é fundamental para a conversão. Repetir é central na constituição desta memória salvífica. Lembro meus pecados, lembro a vida de Jesus, lembro a queda de Lúcifer: historicizo a experiência religiosa para torná-la ainda mais prisioneira da memória precisa. Como lembrava Barthes, nada escapa a este furor classificatório de Santo Inácio, tudo deve ser examinado, repetido, classificado. [6]
Apesar de ter fundado uma ordem que seria celeiro de grandes intelectuais, o próprio Inácio não era um homem de cultura extraordinária. Sua formação primeira foi muito precária e, já convertido, passou a aprimorá-la na Espanha e na França. A característica central do fundador da Companhia sempre foi o pensamento prático, gênese de tantas inovações jesuíticas que, posteriormente, seriam interpretadas como maquiavelismo pelos detratores da Ordem.
A aproximação entre o pensamento de Maquiavel e de Inácio de Loiola não ocorre no patamar que os críticos da Companhia sempre estabeleceram, mas neste agudo senso de realidade em relação aos objetivos propostos , inclusive quanto à memória. Instrumentalizar a memória a serviço de um fim específico tinha ocorrido tanto ao autor dos Exercícios como ao florentino.
II
Tendo feito esta introdução sobre jesuítas e memórias, passemos ao caso específico do Brasil. Na América Portuguesa do século XVI os jesuítas não eram apenas os maiores educadores, mas, quase sempre, os únicos. Desde 1549 a Companhia, fiel às estratégias da Contra Reforma em curso, estabelecia missões e colégios que formariam gerações sucessivas de brancos e índios.
É fato conhecido à exaustão que quase todas as fontes do Brasil colônia estão relacionadas à Companhia de Jesus. Historiadores de direita e de esquerda foram obrigados a conhecer e analisar as cartas, peças teatrais, relatórios e sermões das penas inacianas, tentando extrair deles as informações que, muitas vezes, não existem em nenhuma oura fonte.
Talvez o fato menos analisado seja o quanto esta memória jesuítica (agora entendida como possibilidade de construir a lembrança do passado histórico) acabou influenciando tanto os inimigos como os defensores da Companhia.
Gostaríamos de identificar apenas algumas questões que poderiam merecer um longo desenvolvimento cada. Os jesuítas chegaram com o primeiro governador-geral. A correspondência de Nóbrega em particular transmite os maiores elogios à figura de Tomé de Sousa. Já o governador seguinte, Duarte da Costa, teve muitos problemas com nosso primeiro bispo. A carreira de Duarte da Costa foi curta, a do bispo ainda mais breve, como é largamente conhecido. Por fim, o terceiro governador geral, Mem de Sá, foi um dos construtores da presença portuguesa na costa da América, especialmente pela sua ação genocida com os índios, louvada por Anchieta em longo poema épico[7] . Após Mem de Sá, com a colônia americana dividida em duas partes, Portugal delega poderes a Luís de Brito e Almeida (Norte) a Antônio Salema (Sul), reunificando o poder político alguns anos depois com Lourenço da Veiga.
Qualquer analista da tradição histórica brasileira constata que, mesmo na seara mais vulgar dos livros didáticos, só costumamos encontrar descrição de três governadores gerais, exatamente aqueles que mais atenção mereceram na documentação jesuítica. Esta ênfase é tamanha que muitos estudantes saíram dos seus estudos do curso fundamental e médio com a firme convicção de que a colônia portuguesa na América apresentou apenas estes três nomes: Tomé de Sousa, Duarte da Costa e Mem de Sá .
Não parece ser uma coincidência que estes três governadores sejam os mais citados na correspondência inicial dos jesuítas. Há um duplo processo seletivo da memória ligado à Companhia: primeiro os historiadores (inclusive os anti-jesuíticos) resgatam, na prática, aquilo que a Companhia consagrou nos seus documentos; segundo, os historiadores omitem períodos posteriores da Companhia e outras documentações. Em outras palavras, há um duplo processo seletivo que pode estar nublando linhas de pesquisa mais inovadoras da História do Brasil Colonial.
Além deste fato de fundo positivista, há outros mais densos. Quando o governador não foi um protetor tão declarado da Companhia como Duarte da Costa, ou quando um bispo apresentou problemas com os inacianos (como D. Pero Fernandes Sardinha), permanece um ar reticente nas cartas da Companhia que atinge, inclusive, a historiografia contemporânea. Assim como os próprio jesuítas ironizaram que nosso primeiro bispo tivesse tão pouco zelo missionário e acabasse devorado por índios, da mesma forma quase tudo o que foi escrito depois ignorou a obra administrativa pioneira do prelado e enfatizou este paradoxo hilário. Numa passagem que quase insinua uma ironia (fenômeno raríssimo em Nóbrega), o primeiro líder dos jesuítas no Brasil dizia em Carta a Tomé de Sousa:
” trouxe Nosso Senhor o bispo D. Pedro Fernandes, tal e tão virtuoso qual o Vossa Mercê o conheceu, e mui zeloso da reformação dos costumes dos Cristãos, mas quanto ao Gentio e sua salvação se dava pouco, porque não se tinha por seu Bispo, e eles lhes pareciam incapazes de toda doutrina por sua bruteza e bestialidade, nem as tinha por ovelhas do seu curral, nem que Cristo Nosso Senhor se dignaria de as ter por tais; mas nisto me ajude Vossa Mercê a louvar Nosso Senhor em sua providência, que permitiu que fugindo ele dos Gentios e da terra, tendo poucos desejos de morrer em suas mãos, fosse comido d´eles, e a mim que sempre o desejei e pedi a Nosso Senhor, e metendo-me nas ocasiões mais que ele, me foi negado” [8].
Nóbrega foi missionário e, mais, ainda, organizador da Companhia de Jesus. Andou muitas vezes em aldeias hostis e, como reconhece na carta, não foi digno da palma do martírio. O bispo, tão reticente quanto aos índios, recebeu a duvidosa honra anelada por Nóbrega. Porém, como lembra o jesuíta, o bispo estava fugindo dos índios e da terra, tendo fracassado com ambos e terminado seus dias na terra que pouco conheceu entre os índios que não conheceu.
No século seguinte, Frei Vicente do Salvador (um franciscano) seguiria o mesmo caminho dizendo que o bispo, tendo se desentendido com o governador, embarcou para Portugal com suas riquezas e foi devorado pelos índios catés. Sobre as intrigas entre bispos e governadores, Frei Vicente afirma que não pode desenvolvê-las mais para nãos ser acusado de “murmurador” .[9]
Parece que a mesma duplicidade que Nóbrega tinha utilizado volta no texto do franciscano: Bispo, intrigas, um martírio ambíguo. A linha traçada por uma testemunha da ação do bispo (Nóbrega) retorna no século seguinte.
Daí por diante, D. Pero Fernandes Sardinha passou à memória histórica apenas por três fatos: foi o primeiro bispo, desentendeu-se com o filho do governador-geral e foi devorado na sua volta a Portugal pelos índios que pouco ou nada amou. Estes três tópicos, estabelecidos pelos jesuítas, dominam todas as referências posteriores. A obra administrativa do bispo, o controle que ele tentou exercer sobre os jesuítas, a ordenação de padres no Brasil e todo o resto submergiu no oceano do esquecimento. Lembramos do bispo o que os jesuítas decidiram que fosse lembrado.
Continuemos com o desenvolvimento desta árvore frondosa da memória. Um dos livros didáticos mais utilizados no ensino médio é o de Nélson Piletti. O texto, bom, efluente e crítico, registra sobre nosso primeiro bispo:
” O primeiro bispo foi D. Pedro Fernandes Sardinha. Ele desentendeu-se com os jesuítas a respeito do tratamento a ser dado aos indígenas: os jesuítas pretendiam colocar a cristianização em primeiro plano e eram mais tolerantes com os costumes indígenas; o bispo entendia a catequese como instrumento para a conquista do indígena para a cultura européia. Dessa forma, achava o bispo que os índios só deveriam ser batizados quando falassem a língua portuguesa, se vestissem e se comportassem como os portugueses, adotando todos os costumes europeus” . [10]
O trecho citado agradaria enormemente ao Pe. Nóbrega. Porém, o mesmo autor afirma logo em seguida que as missões foram fundamentais para a conquista do Brasil, pois impuseram valores europeus aos indígenas[11]. Ora, sendo os jesuítas os maiores missionários, estabelece-se o paradoxo: eles brigaram com o bispo porque o bispo não era adepto do relativismo antropológico e queria a ” lusitanização” do índio; porém, suas missões impuseram valores europeus aos indígenas.
Vejamos mais exemplos. Um dos livros mais utilizados durante a ditadura militar no Brasil foi o do prof. Joaquim Silva, editado pela Companhia Editora Nacional (História do Brasil) . Em 1969 podemos ler na sua 22a edição, da página 84 até o início da 92, narrativas fáticas sobre os três primeiros governadores gerais. Os quatro parágrafos finais da p. 92 tratam dos outros governadores. Os vice-reis do século XVII e XVIII recebem atenção apenas à página 175 e 176, para logo passarmos à questão da chegada de D. João, regente de Portugal, às terras americanas.
O livro de Nélson Piletti reduz a questão do governo-geral a uma única página (59). Nela, podemos encontrar citados, coincidentemente, dois governadores-gerais, Tomé de Sousa e Mem de Sá. Duarte da Costa é omitido e os outros governadores também não são citados. À página 90 da obra de Piletti encontramos nova referência à divisão administrativa, sem, porém, análise de outros governos gerais.
Assim, tanto nas obras de cunho mais positivista como nas mais críticas, o peso da documentação parece insinuar-se com força. Talvez o sucesso jesuítico não esteja apenas na redução de quem deva ser lembrado ou esquecido, mas na idéia de edificar vidas, constitui-las em exemplo moral ou político.
Porém, a memória construída pelos jesuítas também tem fracassos significativos. O maior de todos, especialmente para São Paulo, é a tradição bandeirante. Muitas vezes tratados como bandidos e assassinos de índios nas cartas dos padres, os desbravadores do sertão passaram à história como heróis intrépidos, quase semideuses que rasgavam imensidões dando ao brasil seu território continental. A construção da memória cívica superou , neste caso, a tentativa jesuítica.
Curiosamente, com o advento de posições mais críticas nas obras didáticas, os bandeirantes assumiram o papel que os jesuítas tanto insistiram no período colonial. Assim, na já citada obra conservadora de Joaquim Silva, podemos ler sobre a expedição de Fernão Dias Paes Leme que ” sua grande e heróica expedição descobrira e reconhecera, em grande parte, o riquíssimo território das Minas Gerais. ” (p. 127) . Por outro lado, a obra já citada de Piletti cita texto de Júlio José Chiavenato para demonstrar que os bandeirantes, além de genocidas de índios, praticaram o banditismo e empobreceram São Paulo ao promoverem uma febre de ouro que levava ao abandono da agricultura. (p. 78-79). Dentro dos tradicionais paradoxos da luta pela constituição da memória, a memória mais à “esquerda” consagra hoje uma velha aspiração jesuítica: a satanização do bandeirante, ou, como sempre, a tentativa de leitura moral da História.
Também é tradicional remeter-se a construção da memória de Tiradentes ao espírito republicano, em geral anticlerical ou, pelo menos laicizante. Vamos problematizar esta questão. Um dos mais adotados livros das escolas particulares da República Velha é de um jesuíta, p. Raphael M. Galanti (História do Brasil). Na sua edição de 1911, encontramos um apaixonado relato da prisão e julgamento de Tiradentes. Misturando citações de Varnhagen, dos Anais do Instituto Histórico Brasileiro e seu próprio texto, o padre diz que Tiradentes tinha as faces ” abrasadas, caminhando apressado e olhando para o crucifixo” . A cena era de comoção imensa e descreve-se uma multidão extasiada com a coragem e determinação do homem classificado, à página 422, como ” mártir” .
Curiosamente, o mesmo autor destaca que um religioso fez uma sermão ao povo citando o livro do Eclesiastes, exortando que não se podia trair o rei nem por pensamentos. Da mesma forma, na mesma página 422, o autor ressalta que D. Maria I desejava muito perdoar a todos, mas, “deste santo propósito a desviaram seus conselheiros” .
Assim, podemos unir a visão dos primeiros governadores gerais, os problemas do bispo e esta cena da execução de Tiradentes. Há uma defesa implícita da ordem e da unidade presente em todas. Os jesuítas destacam quando há um só governo, uma ordem única, que estabeleça regras únicas. Da mesma forma, mesmo louvando a Tiradentes, conseguem lembrar o interdito bíblico à rebelião e como o poder, no fundo, está correto, desde que não seja afastado de seus intentos por maus conselheiros. Constitui-se uma memória política que, por exemplo, diminui a importância das capitanias hereditárias (dispersão) e ressalta o governo geral (unidade); diminui a divisão do Brasil em dois governos (dispersão) e ressalta a vinda de D. João (unidade) e sempre coloca, como pano e fundo, a necessidade de ordem.
Do mesmo modo, as missões organizadas pelos jesuítas são modelares. Seus mapas com casas alinhadas constam em quase todos os livros didáticos. Os desenhos de missões geométricas constituem uma memória iconográfica com uma defesa implícita de uma visão de mundo específica: a ordem. A destruição das missões e a desordem dos bandeirantes são tomadas como coisa negativa, não apenas pelo aspecto moral, mas por quebrarem esta ordem. A São Paulo colonial bandeirante, com ruas desalinhadas, população turbulenta e com tara bulionista é a perfeita antítese das missões, com seus habitantes apresentados como os cidadãos da Utopia Católica, etéreos e devotos, prósperos e matemáticos em relação ao espaço.
É claro que os jesuítas não criaram o cartesianismo, o ponto de fuga, a perspectiva matemática ou o positivismo histórico. O anseio de ordem é compartilhado tanto pela Igreja-instituição como pelo Estado e por vários grupos sociais. Fomos constituídos como a pretensão da ordem como colônia e país independente, bem antes mesmo da cabeça pouco criativa de A. Comte ter insinuado o dístico da nossa bandeira republicana. Apenas ressaltamos que, no Brasil, a memória constituída pela ordem influenciou certas análises que resistem mesmo às transformações das obras didáticas mais atuais.
Poderíamos destacar também Palmares (que não constava dos estudos tradicionais, mesmo jesuíticos) e hoje ocupa bastante espaço nos livros e vestibulares. Mesmo que o enfoque contemporâneo seja a resistência do negro contra a barbárie da escravidão, o conjunto denominado Palmares é louvado também pela sua ordem, integração econômica e relativa prosperidade. Os textos lidos pelos alunos do ensino médio e fundamental parece dizer nas entrelinhas: admirem este conjunto de comunidades negras pela sua prosperidade e ordem.
Da mesma forma, fenômeno quase coetâneo, o período de Nassau sempre desponta como modelo de administração e progresso. Quando Maurício de Nassau abandona Pernambuco, começa a decadência do Nordeste holandês. Nenhum livro apresenta os administradores que sucederam a Nassau. Ficamos com a eterna sedução do Príncipe, do pólo brilhante que reordena o espaço e a produção de forma algo messiânica. [12]
Voltando ao livro de Piletti, temos por exemplo:
“O novo governador (Nassau) trouxe para o Recife vários artistas e cientistas: os naturalistas estudaram pela primeira vez nossa natureza; os pintores, como Franz Post , retrataram as paisagens brasileiras; os arquitetos, como Pieter Post, urbanizaram a cidade do Recife. Nassau mandou construir pontes e obras sanitárias, deu garantia a todas as religiões e obrigou os fazendeiros a cultivar mandioca, que era o principal alimento dos escravos”. [13]
Num livro mais tradicional, o de Renato Azevedo Tiné temos como exemplos da ação de Nassau:
“Embelezamento de recife, onde surgiu a cidade Maurícia na ilha de Antônio Vaz; incremento à produção de açúcar; tolerância religiosa; introdução da cultura renascentista através de artistas e cientistas como Pieter Post (arquiteto), Franz Post (pintor), Willen Piso (médico) e Jorge Markgraf (botânico) .” [14]
Os alunos, indefectivelmente, são levados ao louvor da ordem e do progresso flamengos sob o príncipe esclarecido. Uma autoridade que incentiva o saber e ainda tem preocupações com o abastecimento interno (a mandioca)! Como convém aos seres ” superiores” , Nassau tolera as diferenças, pregando a liberdade religiosa. Tais constatações, além da defesa de uma ordem racional, parecem levar o leitor médio a lamentar Guararapes como uma derrota grave, mesmo que nenhum sangue flamengo passe pelas veias do referido leitor. Não importa que esta dita racionalidade esteja a serviço de uma exploração mais eficiente. Não importa que a Companhia da Índias quisesse com a colônia brasileira o mesmo da feiticeira do conto de João e Maria: engordá-los para sua tara canibal. Não importa o exemplo da Indonésia, colônia holandesa por tanto tempo e com problemas estruturais hoje. Importa que a idéia de ordem seduz o leitor , o autor e a memória da nação. Esta ordem pode ser negra (Palmares), religiosa (missões), holandesa ou qualquer outra, desde que seja ordem, e, de preferência, progresso.
III
Angel Rama destaca que os jesuítas foram importantes para estabelecer a Cidade das Letras, o círculo de intelectuais que daria legitimidade ao poder na América Colonial. Segundo o autor , os jesuítas criaram um discurso erudito, inacessível às massas e que dava uma respeitabilidade ao círculo dos Vice-reis. Substituindo o milenarismo franciscano que declinava, os jesuítas elaboraram parte da ” poderosa articulação letrada que rodeia o poder , manejando as linguagens simbólicas em direta subordinação das metrópoles.”[15] O grupo letrado (que não se esgota nos colégios da Companhia) tornou-se supremo devido ao ” paradoxo de que seus membros foram os únicos exercitantes da letra num meio desguarnecido de letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta e porque coerentemente procederam a sacralizá-la dentro da tendência gramatológica constituinte da sociedade européia” . [16]
Assim, em síntese, há um processo de construção da memória jesuítica com seus objetivos corporativos; há um processo correlato e imbricado com o primeiro de construção da memória historiográfica a partir dos registros jesuíticos e há uma terceira forma de constituir memória, esta mais sutil e permanente: a maneira de se conceber educação a partir do modelo jesuítico. Cada um destes itens mereceria um artigo imensamente maior do que este.
A repetição é a mãe do estudo, diziam os romanos. Os jesuítas repetiram à exaustão suas versões. Multiplicaram cartas, relatórios, poemas, peças e imagens. Constituem, assim, uma sólida memória, que parece ter ainda o poder de tornar semelhantes quase todas as obras sobre o Brasil do século XVI.
Poderíamos pensar que a cidade das letras expandiu-se, perdeu sua matriz religiosa original e espraiou-se por várias áreas. Seríamos um país de jesuítas?
BIBLIOGRAFIA
-ANCHIETA, Joseph de. De Gestis Mendi de Saa . São Paulo, Loiola, 1979.
-DUBY, Georges. (org.) História da Vida Privada – Da Europa Feudal à Renascença. V. 2. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.
-GALANTI, P. Raphael M. (SJ). História do Brasil. 2a ed. São Paulo, Duprat & Comp., 1911.
-LOIOLA, Santo Inácio de. Exercícios Espirituais. (tradução e anotações do Pe. Géza Kövecses S.J. 3a ed. 1966. (sem local de edição ou editora)
-PILETTI, Nelson. História do Brasil. 14a ed. São Paulo, Ática, 1996
-RAMA, Angel. A Cidade das Letras . São Paulo, Brasiliense, 1985.
– SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1982
-SILVA, Joaquim. História do Brasil. 22a ed. São Paulo, Cia Editora Nacional, 1969.
-TINÉ, J. S et AZEVEDO, Renato. História do Brasil- Curso Ginasial. 6a ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1973
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[1] ) BRAUNSTEIN, Philippe. Abordagens da intimidade nos séculos XIV-XV. In__ DUBY, Georges. História da Vida Privada- Vol. 02. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.p. 608.
[2] ) Seguindo a numeração da tradução do Pe. Géza Kövecses para os Exercícios Espirituais de Inácio de Loiola (1966, s/e.) é o ponto 43, p. 42.
[3] ) Idem. Ponto 56. P. 53.
[4] ) Idem. Pontos 73 e 74. P. 62-63.
[5] ) Idem. Ponto 130. P. 89.
[6] ) -BARTHES, Roland. Mitologias . Sade-Fourier-Loyola . Lisboa, Edições 70, 1979.
[7] ) ANCHIETA, Joseph de. De Gestis Mendi de Saa . São Paulo, Loiola, 1979.
[8] ) NóBREGA. Pe. Manoel da. Cartas do Brasil. Belo Horizonte-SP, Itatiaia-Edusp, 1988. P. 193. Carta de 1559 a Tomé de Sousa.
[9] ) SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil. Belo Horizonte-São Paulo, Itatiaia-Edusp, 1982. p.148.
[10] ) PILETTI, Nelson. História do Brasil. 14a ed. São Paulo, Ática, 1996. P. 61
[11] ) PILETTI, Nélson. Op. Cit. P. 76. O autor destaca, na legenda de uma imagem, que os missionários resistiram à escravização do indígena, o que não vale para todas as ordens e missionários.
[12] ) Como ponto de referência seria curioso lembrar que os livros didáticos norte-americanos tratam dos holandeses da futura Nova Iorque com grande ceticismo e ressaltam a atitude quase indiferente dos colonos batavos diante da expulsão da autoridade holandesa.
[13] ) PILETTI, Nelson. Op. Cit. P. 68.
[14] ) TINÉ, J. S et AZEVEDO, Renato. História do Brasil- Curso Ginasial. 6a ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves Editora, 1973. p. 88
[15] ) RAMA, Angel. A Cidade das Letras . São Paulo, Brasiliense, 1985. P. 42
[16] ) RAMA, Angel. Op. Cit. P. 49-50.
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