Autor: Carlos Eduardo Calvani
Gênesis 2.18-24 e Marcos 10.2-9
O lecionário nos apresenta hoje um texto difícil – Jesus falando sobre o divórcio. É um texto particularmente polêmico. É complicado pregar sobre este assunto, principalmente porque nossa Paróquia é composta por pessoas em diferentes situações matrimoniais. Aqui entre vocês há casais que estão casados a muitos anos (alguns inclusive há mais de cinqüenta anos juntos). Outros casais estão no segundo casamento. Foram infelizes no primeiro matrimônio, divorciaram-se e casaram-se novamente. Outras pessoas, ainda, também se divorciaram, mas não se casaram novamente. E temos em nosso meio também alguns casais formados por pessoas divorciadas e que vivem juntos há anos sem terem passado por qualquer cerimônia civil ou religiosa. Essa heterogeneidade deve ser levada em conta, na perspectiva de que todos somos filhos e filhas de Deus e nossa vida matrimonial não deve constituir-se num fator de discriminação de pessoas na comunidade.
Os fariseus que abordaram Jesus sabiam que esse era um tema polêmico também naquela época. Havia uma forte discussão entre duas escolas farisaicas a respeito da interpretação da lei do divórcio, especialmente dos motivos que o legitimam e o justificam. Por isso se aproximaram de Jesus com a clara intenção de fazê-lo cair em alguma contradição. A pergunta que lhe dirigiram foi tremendamente capciosa: “é lícito ao marido repudiar sua mulher?”. A pergunta era mal intencionada porque os fariseus sabiam muito bem qual a resposta. Eles eram mestres da lei. E a resposta da lei era: “sim, é lícito!”. Tudo indica que a pergunta serviria para enquadrar Jesus como partidário de alguma das duas tendências em conflito. Mas Jesus, conhecendo a resposta da lei, ao invés de responder diretamente a questão, devolve a pergunta: “o que vos ordenou Moisés?”. E os fariseus responderam aquilo que eles já sabiam: “Moisés permitiu lavrar carta de divórcio e repudiar a mulher”. E a resposta final de Jesus aponta para a dureza no coração dos homens e remete a questão ao Gênesis, ao projeto inicial de Deus, frisando que ali já estava a intenção divina para o homem e a mulher: os dois devem ser uma só carne, em igualdade de condições, devendo um respeitar o outro.
É aqui que se encontra a chave para compreender o texto e a questão do divórcio – no projeto original de Deus. A lei mosaica, escrita num contexto patriarcal, fugira desse projeto inicial e conferia apenas ao homem a prerrogativa do divórcio. Por que isso? Porque a mulher era considerada propriedade do homem. Se fosse solteira, ela era propriedade do pai. Se fosse casada, era propriedade do marido. A mulher fazia parte do dote e por isso muitos casamentos eram arranjados atendendo mais a questões de interesses familiares. Algumas vezes as pessoas só se viam na época do casamento, como aconteceu com Isaque e Rebeca (Gênesis 24).
Alguns trechos da lei tornam mais clara essa situação: “se alguém seduzir qualquer virgem que não esteja desposada e se deitar com ela, pagará seu dote (seu valor) e a tomará por mulher” (Êxodo 22.16). Notem que essa lei se insere nas leis acerca da propriedade, pois a virgem era considerada “propriedade” paterna. Havia leis prescrevendo a maneira de confirmar o adultério de uma mulher (Números 11.5-31) e outras justificando o divórcio caso o homem descobrisse que a mulher não era virgem (Dt 22.13ss). Em todos esses casos, observamos que os direitos de reclamação e iniciativa do divórcio são conferidos apenas ao homem.
Agora prestem atenção nesse detalhe que geralmente passa despercebido: a sociedade judaica, marcadamente machista e hipócrita, ao mesmo tempo em que condenava oficialmente a prostituição, tolerava ou fazia vistas grossas aos homens que procuravam prazer sexual com uma prostituta. A tolerância acontecia porque a prostituta era considerada “mulher da rua”, ou seja, não tinha “dono”, não estava sob a autoridade e posse de qualquer homem. Mas se um homem se unisse sexualmente a sua vizinha ou a alguma amiga da família, o peso era muito maior porque nesse caso ele estava atentando contra a “propriedade” do vizinho, do seu próximo. Não era propriamente adultério contra a sua própria esposa, mas contra o próximo, o vizinho, o “proprietário” da outra mulher. É por isso que o décimo mandamento prescreve: “não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem os seus escravos, nem os seus bois, nem seus jumentos, nem coisa alguma que pertença ao teu próximo” (Êxodo 20.17). A mulher, nesse caso, é considerada uma propriedade, talvez um pouco mais digna do que os escravos, bois, jumentos e outras posses. Mas sempre “propriedade de alguém”. Portanto, o homem que se unisse sexualmente com a vizinha ou com alguma amiga estava, na verdade, atentando contra a “propriedade privada” de outro homem. Esse detalhe é extremamente importante para a interpretação do nosso texto.
Jesus remete a questão ao Gênesis, mostrando que o projeto inicial de Deus para a humanidade é o da igualdade no relacionamento entre homem e mulher, criados à sua imagem: “por isso deixará o homem a seu pai e mãe e unir-se-á à sua mulher, de modo que já não são dois, mas uma só carne”. Ou seja, não deve haver, no plano de Deus, privilégios a apenas um lado.
E é agora que vem a novidade radical do evangelho de Jesus. Ele afirma, ao final do texto: “quem repudiar sua mulher e casar com outra comete adultério contra aquela” (versículo 11). Perceberam a novidade inserida por Jesus na questão do relacionamento conjugal? Não há mais adultério “contra” a propriedade de outro homem, mas adultério “contra a própria esposa”. A mulher agora também pode reclamar seus direitos. Sua condição foi elevada ao mesmo patamar masculino. Sua dignidade como ser humano autônomo e que não é propriedade de ninguém, foi reconhecida por Jesus. E isso era chocante para a época!
Muita coisa mudou desde os tempos de Jesus. Há algum tempo atrás em nossa própria sociedade ainda havia casamentos arranjados por famílias. Isso aos poucos tem diminuído. Hoje em dia já não se concebe mais essa situação. Mas, e sobre o divórcio propriamente dito?
É preciso levar em consideração diversos fatores do nosso contexto que diferem daquele onde Jesus proclamou essas frases, para que fiquemos com a essência de sua proclamação e não apenas com a interpretação literal. É preciso reconhecer que, infelizmente, muitos casamentos simplesmente não dão certo por vários motivos. Algumas pessoas se casam muito jovens, sem qualquer experiência ou preparo. Outras vezes, a situação conjugal atinge níveis insuportáveis no relacionamento para ambos e, nesse caso, a melhor solução para todos (principalmente para os filhos do casal) acaba mesmo sendo o divórcio.
O que nós não podemos fazer é tomar o versículo “o que Deus ajuntou não o separe o homem” para condenar apressadamente as pessoas que foram infelizes em seu primeiro matrimônio. A bênção de Deus não está vinculada às folhas e papéis dos nossos cartórios. Às vezes o cartório une as pessoas, mas isso não significa que Deus automaticamente também as tenha unido. Deus não está preso a nossas leis e costumes variáveis. Aliás, diga-se de passagem, talvez tenha chegado o momento de nossa igreja repensar o cânon sobre matrimônio, que nos impede de impetrar a bênção matrimonial sobre casais que estão unidos já há muito tempo, mas que perante as leis do país, apenas “vivem maritalmente”, mas lhes falta a legitimação oficial dos cartórios. Trata-se, inclusive, de uma questão séria em certos contextos missionários. Sabemos de regiões em nosso país em que as pessoas se unem, mas essa união não passa necessariamente pelo reconhecimento legal dos cartórios. É uma situação muito comum em certas regiões do Brasil.
Isso não significa que nós, em nossa igreja, incentivemos o divórcio ou tratemos irresponsavelmente o casamento. Nenhum de nós se alegra ao ver um casamento desfeito. E somente os que passam por essa triste experiência sabem dimensionar a dor que ela causa. Mas há situações em que, para defender a dignidade da mulher, o divórcio acaba sendo uma bênção. É o caso de mulheres que sofrem constantemente a violência no lar. Apanham de seus maridos, vivem oprimidas, sofrem violência e abusos sexuais. Isso é inconcebível do ponto de vista que Jesus coloca: “desde o princípio Deus os criou homem e mulher… uma só carne”. Nenhuma mulher deve ficar presa a um matrimônio no qual ela sofre violência e humilhações apenas por medo de estar transgredindo um mandamento supostamente divino. Nenhum casal precisa ficar preso eternamente a um fardo impossível de carregar. E alguns de vocês aqui presentes podem testemunhar esse fato em suas próprias vidas porque Deus lhes deu a oportunidade de reconstruírem a vida após encontrarem outra pessoa que lhes possibilitou reviver a experiência do amor em outro nível de maturidade.
Quando Jesus menciona o texto de Gênesis, torna-se claro aí que o propósito divino para a felicidade e o prazer de duas pessoas que se amam é passarem a ser uma só carne. Isso sempre envolve sempre renúncia de algo e necessária abertura ao universo do outro, reconhecendo sua condição de pessoa, seus direitos, seus sonhos, seus desejos e permitindo que todo esse universo permeie o nosso, resultando numa mesma “entidade” inseparável – “uma só carne”. O propósito de toda união é que as duas pessoas se realizem no matrimônio. Mas quando apenas uma das pessoas se realiza ou oprime e subjuga a outra, desconsiderando os direitos essenciais que a outra pessoa tem à vida, ao bem estar e à felicidade, não podemos afirmar que essa união seja de fato, “uma só carne”.
Creio que esses são os princípios que devem nortear nossa visão anglicana a respeito do matrimônio e do divórcio. Não somos legalistas. Não pertencemos a escolas farisaicas que só discutem a questão para considerar os direitos de uma das partes. E também não pretendemos fazer vistas grossas à situação de sofrimento de algumas pessoas. Em certos casos, a atitude mais ética e pastoral é aconselhar o divórcio e dar todo apoio à parte sofredora no seu processo de libertação.
O mais importante é que tenhamos clara na mente a visão que Jesus apresenta do matrimônio e que está clara em nosso Livro de Oração Comum: “é da vontade de Deus que a união de esposo e esposa no coração, corpo e mente, seja para edificação mútua, para ajuda e consolo de ambos, tanto na alegria como na adversidade… portanto, o casamento não deve ser realizado de maneira irrefletida ou superficial” (LOC pg. 183). Ou seja, uma bênção matrimonial não deve ser impetrada simplesmente para dar uma justificativa à sociedade ou para “salvar a honra” de alguma família. Quando isso acontece, a Igreja torna-se refém do moralismo e a Palavra de Deus torna-se cativa dos interesses sociais.
Damos graças a Deus pelos casamentos sadios e uniões estáveis de muitos de vocês aqui, e esperamos que continuem perseverando nesse processo de edificação mútua. Mas também damos graças a Deus por muitas pessoas aqui presentes terem conseguido se libertar de um jugo opressor imposto pelo casamento. Às vezes é preciso mais coragem para se divorciar que para casar, e muitos de vocês tiveram essa coragem e têm todo o direito de reconstruir suas vidas sem qualquer sentimento de culpa perante Deus.
Que o Senhor nos preserve em sua graça e nos faça crescer no conhecimento e amor de Cristo.
Paróquia de São Tiago (Curitiba) – 08/10/2000
Rev. Carlos Eduardo B. Calvani
Padre anglicano, Professor de Teologia na UNIFIL (Universidade Filadélfia de Londrina) e Coordenador do Centro de Estudos Anglicanos (CEA).
Email: ccalvani@hotmail.com
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