Autor: Carlos Eduardo B. Calvani
“E acreditam nas flores vencendo canhões…” – Geraldo Vandré
Introdução
Vivemos um momento crucial na história do cristianismo latino-americano e, em particular, na história das igrejas evangélicas. Não é por acaso que este seminário gira em torno do tema da identidade evangélica e da busca por unidade. De fato, muitas denominações cristãs estão passando por uma fase em que o tema da busca da identidade se impõe como exigência básica. Eu pretendo levantar no decorrer desse ensaio algumas hipóteses para compreender as causas desse momento em que vivemos.
Fiquei encarregado de lançar algumas idéias e estimulá-los a um debate em torno da identidade e da missão. Aceitei o desafio, embora eu não seja propriamente um especialista em missiologia. Minha formação acadêmica sempre se orientou mais para a Teologia Sistemática e a história da Igreja. Porém, o tema da missão naturalmente perpassa toda a Teologia Sistemática, uma vez que o agente primeiro da missão é o próprio Deus. Assim, a Teologia da Missão deve fluir e sustentar-se na doutrina da Santíssima Trindade, na reflexão sobre a Criação, o drama do pecado e toda a história da Salvação apontando para um fim escatológico. Afinal, toda missiologia deve ter por objetivo final a cooperação com Deus na sua obra redentora com vistas à consumação final de todas as coisas em Cristo.
Portanto, iniciarei nossa reflexão com algumas considerações missiológicas. Num segundo momento, pretendo discutir com vocês o conceito de identidade e os fatores que nos levam a trazer esse tema ao centro de nosso debate. Num terceiro momento, pretendo destacar a eclesiologia subjacente aos modelos missionários em voga no Brasil, apontando para as conseqüências teológicas e os desafios que tais modelos nos apresentam. Naturalmente, reconheço a impossibilidade de afastar-me da identidade eclesial da igreja à qual pertenço. Esse é o motivo pelo qual esse texto está impregnado de algumas marcas especificamente anglicanas. Mas eu as apresento apenas como oferendas para um diálogo inicial e espero que vocês também as recebam desse modo.
1. A história, o Reino e a Missio Dei.
Há várias maneiras possíveis de abordar o tema da missão. Houve tempo em que a maioria dos teólogos sistemáticos tratava desse tópico nos desdobramentos do item “Eclesiologia”. Desse modo, a missão pertencia à esfera da discussão sobre o que a Igreja faz ou como deve a Igreja se comportar no mundo. Essa perspectiva não é de todo errada, pois a Igreja sempre se entendeu como um organismo destinado a levar o Evangelho a todas os povos em obediência ao mandamento de nosso Senhor Jesus Cristo. Porém, outro grupo de teólogos, prefere discutir o tema da missão na ótica da Escatologia, o que nos leva necessariamente à compreensão cristã da história. Qual o significado que nós, cristãos, atribuímos aos eventos históricos nos quais acontece a Revelação de Deus? As perguntas básicas seriam: o que os eventos históricos revelam do ser divino, de sua atividade em relação ao mundo? Qual o sentido espiritual da história dos povos, em particular da história da Revelação de Deus em Israel e posteriormente na Igreja? Para onde aponta a história? Para onde ela nos conduz? Naturalmente, tais perguntas indicam um pressuposto básico: deve haver algum sentido na história, um sentido espiritual – um telos – capaz de ser discernido na medida em que refletimos sobre os grandes atos redentores de Deus no passado, no juízo que tais atos revelam a respeito das condições históricas das pessoas e comunidades no presente e o que eles apontam em relação ao futuro. E quando refletimos nesses atos, começamos a atingir aquela compreensão que tinha o autor de Efésios quando falava no “plano de Deus”. Ou seja, Deus tem um plano, um projeto, o “mistério de sua vontade… que é o de fazer convergir em Cristo, na dispensação da plenitude dos tempos, todas as coisas, tanto as do céu como as da terra”.
A compreensão tradicionalmente cristã da história nos diz que essa avança segundo um propósito divino. A idéia deísta do deus-relojoeiro nunca chegou a impor-se definitivamente na teologia cristã. De um modo geral, o cristianismo sempre defendeu que Deus é o Senhor da história, que as lutas e embates históricos não acontecem aleatoriamente. A compreensão bíblica não é a de um Deus exclusivamente preso à natureza, mas de um Deus que conduz a história através de seus agentes. É Deus quem chama Abraão e sua descendência para abençoar e ser um sinal salvífico dentre os demais povos; é Deus quem levanta Ciro e serve-se do Império babilônico para disciplinar seu povo; é Deus, no dizer do salmista, quem põe fim aos conflitos até os confins da terra, “quebra o arco, despedaça a lança e queima os carros de guerra” (Sl 46.9). Por isso as nações se abalam e os reinos se agitam quando Ele faz ouvir sua voz. No Novo Testamento os cristãos preservam essa fé, que é exposta de modo claro em alguns escritos paulinos e especialmente no Apocalipse.
Essa visão ampla da história levou alguns teólogos a situarem a missão não na perspectiva restrita da eclesiologia, mas da própria natureza divina e na Escatologia. A missão da Igreja nada mais é que obediência natural a um movimento iniciado no próprio ser divino, o prolongamento e continuidade que nós, enquanto Igreja, realizamos da ação divina. Trata-se daquela expressão que geralmente utilizamos: “Missio Dei”. Ou seja, antes de ser missão da Igreja, a missão é do próprio Deus. Ele mesmo é quem está em atividade no mundo, agindo de modo a preservar e redimir a Criação, reconciliar pessoas consigo mesmo e criar comunidades fraternas e solidárias em torno da memória de seu filho Jesus Cristo. A Missio Dei, portanto, tem alcance ecológico, comunitário e também pessoal. Esse é o propósito ou o plano de Deus. Desse modo, quando perguntamos para onde corre a história ou qual é o seu propósito, a resposta que a Bíblia e a tradição teológica cristã dão é: para a realização escatológica do Reino de Deus.
O Reino de Deus, portanto, é o referencial escatológico da Missão. Na história presente, a Igreja é a expressão histórica representativa do Reino de Deus. Povo sacerdotal, eleito a fim de “proclamar as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz”, aquele que nos conduziu da morte para a vida. Essa é a correta articulação teológica entre Igreja e Reino de Deus. A Igreja em si não é o Reino de Deus, mas seu agente. Ela antecipa o Reino, porém de modo fragmentário, devido às próprias ambigüidades da Igreja: é santa, mas também pecadora; em alguns momentos coopera bastante com Deus, mas em outros nitidamente atrapalha ou dá testemunho contrário ao Reino. Porém, a Missio Dei com vistas ao Reino escatológico deve ser o referencial da Igreja. A Igreja não contém o Reino, mas está contida nele; o Reino não pertence à Igreja, mas a Igreja pertence ao Reino. O plano que conduzirá ao Reino não está nas mãos da Igreja, mas em seus lábios e unicamente nas mãos de Deus.
Outra afirmação da interpretação cristã da história é a de que houve um momento em que o sentido da história tornou-se plenamente manifesto. Esse momento tornou-se o centro da história, o critério último de interpretação da mesma para nós cristãos. Esse centro é a manifestação em Cristo da realidade do Novo Ser, da Novidade de Vida. Cristo é o centro da história e por isso essa manifestação divide a história em dois momentos: antes e depois dele. Mas não apenas para efeitos de estudo cronológico, e sim de profundo significado espiritual, como sugere Tillich. Ou seja, há muitos povos e pessoas que, em nosso tempo, vivem ainda “antes” do evento Cristo e de seu impacto espiritual; outros que reconhecem seu senhorio e soberania e se ajoelham diante dele confessando-o como Senhor vivem já “depois” de terem sido abaladas pelo evento Cristo. (Fp 2 e Ap 5). Tillich chama o período antes da manifestação de Cristo na particularidade de um indivíduo, nação ou grupo de “período latente” . É o período de latência do Reino. O Reino ainda está em estado de latência em muitas regiões e culturas. Portanto, missão é definida por ele como toda atividade da igreja atual que visa a transformação dos estados de latência no mundo e/ou na sociedade em que vivemos em estados de manifestação clara do Reino de Deus.
Não se trata aqui de dizer que os não-cristãos são “cristãos anônimos”, mas de afirmar que Deus age misteriosamente em todas as culturas e em todos os povos de modo a prepará-los para a recepção de sua Revelação e a consumação do seu Reino. Ele afirma ainda que “as missões não teriam atingido ninguém se não tivesse havido uma preparação para a mensagem cristã em uma revelação universal” . Ou seja, a revelação universal de Deus prepara o caminho para o Kairos. Portanto, o significado básico da missão não é a cristianização, posto que missão não é imposição de modelos culturais. Missão, tampouco é a tentativa de unir diferentes religiões numa gosma sem identidade. Missão é basicamente “transformação”. É a tentativa de criar estruturas e estratégias visando transformar a condição latente do Reino e da Igreja – que está presente em todas as religiões mundiais e em todas as culturas – na condição de Reino manifesto, algo novo: a nova realidade em Jesus como o Cristo. Transformação é o significado da missão. Essa atividade missionária está em curso porque o próprio Deus está fazendo isso e ele chama, convoca, desafia e capacita a Igreja atual, a Igreja já manifesta a ser sua cooperadora na obra de restauração do mundo, de preservação da criação e de transformação de grupos e indivíduos para que aconteça a manifestação do propósito final do Reino escatológico.
Naturalmente, a concepção tillichiana de missão é bastante criticada por teólogos tanto de linha conservadora como por teólogos mais liberais. As críticas em geral dirigem-se à utilização das categorias da ontologia aristotélica (“estado latente” e “estado manifesto”). Para alguns, tais categorias relativizam a mensagem do Evangelho; outros, por sua vez, dizem que essa definição permanece condicionada ao preconceito que coloca o cristianismo como centro e referencial de plenitude para, a partir daí, julgar as demais religiões como estágios imperfeitos que ainda hão de alcançar aquilo que já alcançamos. É uma crítica que deve ser levada em conta, mas sem nos esquecermos de que, se Cristo deixa de ser nosso centro e referencial, dificilmente poderíamos continuar fazendo teologia cristã.
Em linhas gerais, essa é a compreensão missionária que tem se desenvolvido na Comunhão Anglicana em nível internacional e também em nossa província brasileira. Por exemplo, o documento “Referenciais teológicos para a Missão da IEAB” começa com a afirmação clara e inequívoca da Missio Dei. A Missão é missão do próprio Deus que ouve os clamores do povo e desce para libertá-lo. Essa Missio Dei envolve o povo que é por ela alcançado e se desdobra na evangelização e testemunho por meio de palavras e atos. É alimentada pela espiritualidade; se expressa na comunidade e a ela retorna. Tem na celebração litúrgica comunitária sua mais visível e concreta manifestação sacramental. Conduz a Igreja ao testemunho no serviço, defesa dos menos favorecidos, denúncia das injustiças, sempre tentando dar atenção ao contexto. De acordo com essa compreensão, entendemos que a igreja deve proclamar a graça e o juízo de Deus para que cada pessoa se torne nova criatura, as estruturas sociais estejam a serviço da justiça e a criação seja salvaguardada em sua integridade. Por isso, a missão é integral, holística e ecológica. Eis as cinco marcas que identificam a compreensão anglicana de missão:
a) Proclamar as boas novas do Reino de Deus. Isso acontece pela pregação da Palavra, o testemunho do amor salvador e reconciliador de Cristo para todas as pessoas através de atos concretos que se incorporem ao propósito de Deus;
b) Batizar, ensinar, nutrir e apoiar os novos cristãos. Na prática isso nos leva a construir comunidades de fé que tentem ser acolhedoras, não-excludentes, celebrativas e transformadoras;
c) Responder às necessidades do próximo com o serviço amoroso e desinteressado. Implica em permanecer em solidariedade e compromisso com os pobres e necessitados, sem exigir ou esperar que eles necessariamente se incorporem à Igreja;
d) Buscar a transformação das estruturas injustas da sociedade. Trata-se da função profética da Igreja – estar atenta às injustiças e denunciá-las, bem como todas as formas de opressão, discriminação, exclusão e violência;
e) Lutar por proteger a integridade da Criação. Isso implica em proteger, cuidar e renovar a vida na terra, agindo em colaboração com outros grupos nos quais identificamos o agir de Deus. Nesse ponto específico, a Missio Dei tem se desenvolvido muito mais fora das esferas eclesiásticas. Compreendemos que o Espírito de Deus é que tem despertado ONGs ecológicas e produzido em nosso tempo, uma maior consciência ecológica atenta aos processos industriais que destroem a natureza, expõem animais e vegetais à extinção e prejudicam a qualidade de vida em nosso planeta. Nessa área específica, a Igreja não conseguiu ainda organizar uma pastoral ecológica consistente, mas tem procurado colaborar com ONGs e apoiar em oração e auxílio financeiro o trabalho que Deus desenvolve através delas.
Há quem pense que essas marcas esvaziam a especificidade da evangelização. Entretanto, entendemos que a evangelização está incluída em todos essas marcas, uma vez que elas dão testemunhos em atos e palavras das boas novas de Deus em Cristo. Outro documento, do Conselho Consultivo Anglicano, define evangelização como “o ato de compartilhar de maneira agradecida, humilde e amorosa com outros o que recebemos através de Jesus Cristo: o conhecimento de Deus, especialmente visível na cruz e no poder da ressurreição, a certeza do perdão de Deus dos nossos pecados e sua graça para ajudar-nos em nossas dificuldades, tentações e oportunidades da vida; e a garantia de uma qualidade devida que a morte física não poderá destruir”.
2. A discussão sobre “identidade”
Não foi por acaso o fato de os organizadores desse evento terem trazido ao centro de nossa reflexão a questão da identidade evangélica. Naturalmente, estavam atentos a uma preocupação que tem aumentado consideravelmente no interior das igrejas evangélicas mais tradicionais. Ultimamente temos percebido uma tendência em muitas dessas igrejas quando reúnem suas esferas administrativas (concílio, sínodos, presbitérios, convenções, etc.). Alguém sempre levanta a questão da “identidade da Igreja”, geralmente num discurso que lamenta a perda de certas marcas que caracterizavam aquela igreja no passado e que já não são encontradas no presente. Geralmente as discussões se tornam acaloradas, com um grupo acusando outro de estar desvirtuando a igreja e traindo sua “identidade” e outro grupo tentando se defender com argumentos pragmáticos, mas pouco consistentes teologicamente. Creio que esse dado é sintomático. É sintoma da crise institucional que atingiu a maioria das denominações evangélicas tradicionais nos últimos anos.
Se utilizarmos uma linguagem mais personalizada, diríamos que, mutatis mutandis, acontece nas instituições o mesmo que acontece com todos os indivíduos em determinadas épocas da vida. Nós, indivíduos passamos por algumas crises de personalidade na formação de nossa identidade. Geralmente a mais forte delas ocorre na adolescência, mas não somente aí. A psicologia tem mostrado a existência de crises semelhantes de identidade dos trinta anos, dos quarenta e na “terceira-idade”. E há também crises de identidade que surgem a partir de mudanças ambientais, profissionais, sentimentais, não estando necessariamente vinculadas às idades cronológicas. Quando há alterações significativas no contexto em que vivemos, tais alterações nos atingem e as crises surgem naturalmente. De fato, enquanto seres humanos, é perfeitamente normal atravessarmos crises em determinados períodos da vida. As crises são sinais de que estamos vivos, que a vida é um processo dinâmico, nunca estático, que a vida nunca está parada. A vida sempre está fluindo e nos colocando diante de novas situações e exigências. A crise, portanto, não indica uma fraqueza de caráter. Antes, é um sinal de que estamos passando por um período de mudança. Algo velho está morrendo e algo novo está nascendo. Mas a crise nos assusta porque seu auge acontece exatamente quando percebemos que aquele “algo” que era velho está morrendo, que não há como salvá-lo, mas que o “algo” novo ainda não nasceu. Estamos em dores de parto e não sabemos ao certo qual rosto teremos depois que a crise passar.
Portanto, a “crise de identidade” das igrejas não é, em si, algo ruim. É sinal de que a Igreja está viva. Que as igrejas não são apenas instituições mecânicas e burocráticas, mas que são, de fato, corpo místico de Cristo. E no decorrer de sua vida, todo corpo passa por alterações significativas em seu processo vital. É perfeitamente natural que, juntamente com algumas células, morram também certos tipos de comportamento ou que determinados valores e convicções que foram bastante úteis no passado, já não sirvam diante das novas exigências da vida.
Prosseguindo um pouco mais nessa alegoria da personalidade e da instituição, verificamos que quando uma pessoa está passando por uma crise de identidade, geralmente ele se pergunta: “quem sou eu, afinal de contas?” Alguns buscam o auxílio em psicólogos e analistas e tentam refazer as matrizes que marcaram sua infância e sua educação. Buscam identificar quais os valores, referenciais e comportamento de seus pais, de seus familiares mais próximos e dos “outros significativos” que marcaram sua infância e adolescência. E é muito doloroso esse processo de avaliar o nosso passado. Há sempre um momento de confusão, quando culpabilizamos pessoas que marcaram nosso passado ou quando tentamos isentá-las de qualquer parcela de culpa naquilo que presentemente nos tornamos. Todo esse processo causa sofrimento, mas é extremamente importante. E ao final dele, nunca somos os mesmos. Quando a crise passa, percebemos que algumas coisas mudaram. Certos padrões de comportamento se alteraram. Alguns valores foram abandonados ou trocados por outros, mais adequados ao momento que vivemos.
A meu ver, a emergência da pergunta pela “identidade evangélica” um sintoma de que alguma coisa está mudando em nossas igrejas. De fato, o mundo está mudando rapidamente e as velhas e sólidas instituições são afetadas por essa mudança. E nessa hora é preciso encontrar algo que demarque e distinga uma pessoa, de outra; um grupo de outro grupo. Quanto mais nos sentimos abalados ou ameaçados com as mudanças aceleradas à nossa volta, mais nos sentimos compelidos a buscar algum ponto de estabilização, algum referencial de certeza ou de segurança para suportar os efeitos desestruturadores das alterações que o ambiente nos coloca.
Qualquer estudante de sociologia sabe que sociedades nunca são estáticas. Quando as percebemos desse modo, é porque não atentamos para as mudanças que acontecem lentamente em seu interior. A rapidez das mudanças varia de acordo com a solidez das estruturas que as sustentam. A Igreja, enquanto instituição já mudou muito em dois mil anos e vai continuar mudando. As denominações também estão sempre em mudança e é impossível não admitir esse fato. Ninguém aqui é ingênuo o suficiente para pensar que a Igreja Presbiteriana é hoje exatamente tal como era no início do século ou tal como Knox a estabeleceu na Escócia. Esse exemplo, naturalmente é aplicado a todas as outras denominações evangélicas. A própria Igreja Católica Romana mudou consideravelmente e continua mudando. Quando aconteceu a Reforma Protestante, por exemplo, o Papa convocou o Concílio de Trento. Esse concílio reafirmou antigos dogmas, reforçou estruturas, mas a Igreja Católica Romana nunca mais foi a mesma depois da Reforma protestante. Por mais que tenha se fechado num conservadorismo excessivo, as mudanças continuaram alterando o perfil e a “identidade” católica. O Concílio Vaticano II alterou de modo considerável o perfil, comportamento, hábitos, liturgia e teologia da Igreja Católica Romana. Por isso alguns historiadores católicos propõem uma nova periodização: antes e depois do Vaticano II.
O processo dinâmico da vida, com as novas demandas que o contexto nos coloca acabam por alterar sempre a nossa identidade e conseqüentemente a nossa teologia e nossa compreensão da missão. Não consigo compreender alguns líderes eclesiásticos que reagem às mudanças em nome da “identidade”. Identidade de quem e de qual época? Identidade dos reformadores do século XVI ou dos missionários protestantes que vieram para o Brasil no século passado? É um raciocínio anacrônico semelhante àqueles sermões que dizem que a Igreja hoje deve ser igual à Igreja Primitiva, especialmente a Igreja de Jerusalém. E ficam citando trechos de Atos dos Apóstolos para legitimar ingenuamente essa idéia. É claro que nossas igrejas não devem ser iguais. Não somos judeu-cristãos, não estamos em Jerusalém e nem vivemos no ano I da era cristã. Alguns se justificam dizendo que aquelas igrejas tinham uma grande vantagem em relação a nós em virtude da proximidade com os eventos que marcaram a origem do cristianismo, e isso lhes conferia maior poder espiritual e um testemunho mais legítimo. O problema é que tais pessoas têm uma visão muito simplista da história e desconhecem o fato de que muitas das igrejas neo-testamentárias não sobreviveram ao passar dos séculos. Se aplicarmos a elas alguns critérios institucionais que aplicamos hoje para aferir a espiritualidade de uma igreja, constataremos, atordoados que nossos critérios são falaciosos e enganosos.
Eu às vezes comento que uma determinada Paróquia fechou em algum lugar. Ou que uma igreja não conseguiu progredir num bairro, fechou suas portas e está tentando abrir um ponto missionário em outra região. Alguns dizem: “mas como a Igreja fechou? Se fechou, foi é porque não tinha o poder de Deus ou os dons do Espírito Santo”. O critério de juízo que essas pessoas utilizam para medir o grau de fidelidade daquele grupo cristão ao Evangelho é a expansão e o crescimento. Mas se usarmos esse mesmo critério para algumas comunidades neotestamentárias, verificaremos que muitas delas não conseguiram sobreviver às perseguições em algumas cidades. Simplesmente foram extintas à força da espada ou tiveram que mudar-se em movimentos migratórios de fuga para outras regiões menos hostis. Tais fatos não desqualificam em nenhum momento o grau de fidelidade daquelas igrejas a Cristo. Ao contrário, algumas comunidades acabaram por que acompanhavam o fluxo do sangue dos mártires. Sua fidelidade residia exatamente no martírio e na morte, como grão que morre debaixo da terra para produzir vida. A morte de algumas comunidades não significa a morte do Cristianismo.
Outras vezes ouço dizer que as igrejas evangélicas precisam voltar à Reforma Protestante. Isso significa, para alguns, estudar a teologia dos reformadores a fim de corrigir certos discursos teológicos do presente, e há quem chegue a propor a restauração da liturgia genebrina de Calvino, da missa alemã de Lutero ou, no caso dos anglicanos, do Livro de Oração Comum editado pelo Arcebispo Cranmer. Ainda que bem intencionadas, tais tentativas se revelariam fracassadas já na origem. Nosso contexto é outro; nosso ambiente cultural é totalmente diferente; nos séculos seguintes à Reforma muita coisa melhor já foi produzida em termos teológicos e litúrgicos, embora tenha surgido também muita coisa ruim. Além disso, há um dado básico que precisamos considerar: a Reforma foi um movimento tipicamente moderno. Nasceu com a modernidade e acompanhou a modernidade, legitimando teologicamente alguns desdobramentos políticos e econômicos. Reconstruir a Reforma hoje é impossível por um motivo muito simples: nós vivemos em plena crise da modernidade e advento da pós-modernidade. A Reforma foi um movimento moderno e nós vivemos em tempos pós-modernos. A meu ver, a crise do protestantismo é reflexo da própria crise da modernidade.
Isso não quer dizer que as igrejas de tradição reformada estejam fadadas a fechar suas portas. Longe de mim anunciar tal vaticínio. Creio que existe nas igrejas tradicionais uma reserva de sentido espiritual muito forte capaz de preservá-las não somente das ameaças externas da secularização, mas inclusive das ameaças internas de subversão total da identidade.
Voltamos, então ao conceito de identidade. Tudo o que eu disse acima se resume ao seguinte: todas as instituições têm uma identidade. São suas marcas peculiares, aquelas que fazem com que possam ser distinguidas umas das outras à primeira vista. Tais marcas são inapagáveis, assim como os traços de nossa fisionomia. Podemos envelhecer ou passar por diversas cirurgias plásticas, mas nossos traços, fisionomia, sorriso, modo de andar, sempre nos caracterizarão. Tais marcas são inapagáveis porque estão em nossa matriz, estão como que impregnadas “geneticamente” na estrutura das denominações. Essas marcas se modificam com o tempo, mas se tentarmos apagá-las definitivamente, isso significará o fim das denominações tradicionais.
A crise maior da identidade das igrejas evangélicas tradicionais reside, a meu ver, no advento de um novo modelo de cristianismo, mais adequado ao momento pós-moderno que não sabemos ao certo quanto tempo durará. Trata-se de um cristianismo mais flexível, mais “mágico”, mais popularesco, sem compromissos tradicionais com modelos litúrgicos reformados. O fato de crescerem rapidamente causa perplexidade a muitos pastores(as) e líderes de nossas igrejas tradicionais que tentam importar esse modelo e inseri-lo à força num espaço e numa instituição que não lhe é conveniente. Eis o motivo que leva muitas igrejas a se dividirem. Ao invés de tentarmos importar tais modelos que não nos servem, seria melhor adequarmos os nossos próprios modelos, padrões litúrgicos e instâncias institucionais às novas demandas do contexto. Precisamos de uma espécie de terapia institucional, capaz de analisar as marcas positivas e negativas de nossa identidade, com a consciência de que nunca poderemos renunciar a ela, mas que poderemos ajustá-la às novas demandas.
As marcas que caracterizam a “identidade” perene de uma denominação não mudam. O que muda é a maneira como nos relacionaremos com essa herança. Eu entendo que a identidade doutrinária, litúrgica e teológica de uma igreja precisa ser preservada, não de modo autoritário e fanático, mas de modo sensato, com a sabedoria daqueles que reconhecem que não é possível preservar para sempre o mesmo corpo que tínhamos aos vinte anos, mas que sempre seremos os mesmos e aquelas características que marcaram nossa infância e juventude podem perfeitamente ser revitalizadas de outras maneiras. Em termos filosóficos, diríamos que os acidentes podem afetar o ente, mas a essência do ente sempre permanecerá a mesma.
3. A globalização, o desafio da missão e as eclesiologias em conflito.
Tentemos agora amarrar esses dois fios que deixei soltos. A missiologia e a reflexão sobre a identidade do protestantismo. Pretendo amarrá-los à luz do fenômeno da globalização e dos modelos eclesiológicos que emergem em nosso tempo.
Não me interessam, no momento, os grupos neopentecostais ou pós-pentecostais, seja lá como queiramos chamá-los. Estão fora da minha esfera de análise. Não porque eu não reconheça sua significância teológica ou sociológica. Ao contrário. Sei que crescem bastante e que, aos poucos estão formatando uma identidade teológica que vai lhes caracterizar, se é que vão sobreviver. Digo isso, porque quem trabalha com história sempre deve estar aberto a diferentes possibilidades no futuro. Uma delas, bastante provável, é a de que tais grupos aos poucos se libertem da dependência da figura centralizadora de seus líderes e criem estruturas institucionais capazes de re-transmitir às gerações futuras aquelas matrizes que marcaram seu nascedouro. É uma possibilidade bastante viável, conforme nos mostra a sociologia da religião.
Porém, a mesma sociologia da religião também afirma que podem ser fenômenos passageiros, destinados a marcar um momento histórico, mas que podem futuramente se diluir e seus membros se dispersarem ou serem absorvidos por igrejas pentecostais “clássicas”, por igrejas evangélicas tradicionais ou mesmo voltarem desiludidos à suas filiações de origem, seja o Catolicismo Romano ou os grupos afro-brasileiros. Algumas pessoas que freqüentaram igrejas como a Universal ou algumas comunidades carismáticas, depois de certo tempo acabaram por procurar igrejas mais tradicionais, o que indica que isso ainda pode ocorrer em massa no futuro.
Mas não é minha intenção deter-me na teologia, eclesiologia ou missiologia desses grupos exatamente por serem muito novos e sua identidade não estar ainda claramente definida. Interessa-me muito mais, pensar no modo como as igrejas evangélicas tradicionais reagem ao crescimento e convivência com esses grupos. Essa relação está profundamente determinada pelo processo de globalização que impõe padrões culturais e tenta uniformizar tudo. Não pretendo repetir tudo o que já foi dito sobre a globalização. Apenas reforçar o fato de que esse fenômeno desencadeia processos impessoais e impositivos nas sociedades contemporâneas, inclusive nas igrejas. O mundo globalizado prioriza as grandes corporações que engolem as menores. É a lei da competitividade. Temos assistido no Brasil o crescimento dos hiper-mercados que compram as redes menores, englobam algumas ou simplesmente destroem e esmigalham os pequenos comerciantes. O mesmo acontece com os grandes bancos internacionais ou as grandes multinacionais que tomaram conta de nossas estatais.
Estamos acostumados a denunciar as estratégias missionárias do passado como sendo colonizadoras. Alguns missiólogos do Atlântico-norte atualmente preferem designar a nossa época como “pós-colonial” sugerindo que a colonização acabou. Porém, a globalização impõe a toda humanidade modelos norte-atlânticos de mercado, economia, etc. As estratégias de colonização ontem são as de padronização e globalização hoje. E essas estratégias incluem a padronização teológica, litúrgica e missionária.
A proliferação das multinacionais e de seus modelos de mercado não acontece apenas na economia, mas também no campo religioso. As mega-igrejas compram salas de cinema e as transformam em templos ou investem muito dinheiro na edificação de “Catedrais da Fé”. Em pouco tempo conseguem espaço na mídia e enchem seus templos de pessoas das mais diversas classes-sociais, desmentindo aquela visão frágil que muitos críticos tinham ao dizer que sua clientela é basicamente dos estratos populares. Hoje sabemos que isso não é verdade. As igrejas-empresa e as comunidades carismáticas novas têm entre seus simpatizantes e freqüentadores muita gente da classe-média, especialmente empresários em vias de falência ou desejosos de maior ascensão social.
O que mais me aflige, porém, é o fato de que as igrejas evangélicas tradicionais de repente se defrontam com suas dificuldades em aumentar a membresia, comparam a facilidade com que esses grupos crescem e passam a copiar e reproduzir suas estratégias. Algumas desafiam seus membros a contribuir mais a fim de comprarem algum galpão maior, um espaço maior capaz de competir com o concorrente. Também investem pesado na parafernália acústica, em bandas musicais para atrair jovens e, em último caso, recorrem a práticas que, no passado seriam consideradas supersticiosas por essas mesmas igrejas, como as correntes de oração (quase iguais às novenas católicas) e a manipulação do mundo espiritual nas chamadas “batalhas espirituais”.
Tais atitudes geram o empobrecimento daquilo que é mais peculiar na tradição evangélica: o lugar da Bíblia, a valorização da doutrina e da sobriedade litúrgica. Pastores desesperados com a pouca freqüência de membros, preferem transformar o culto num espetáculo de má qualidade estética, musical e teológica porque assim as pessoas irão afluir com mais freqüência. Em muitas igrejas a necessidade de extravasar as emoções ocupou definitivamente o lugar da Bíblia como condutora de nossa vida espiritual. Torna-se mais importante o fato de “sentir” algo no culto (um calorzinho, que seja), do que crer em algo consistente, saber explicitar essa crença e dar razão de sua fé. A Bíblia acaba sendo usada como fetiche de onde emerge a palavra pastoral que desencadeará as emoções naquele dia, sem qualquer preocupação com o estudo histórico-crítico, sócio-retórico ou comunitário da mesma.
A liturgia é parte integrante da missão. O que as Igrejas celebram e cantam é exatamente aquilo em que elas crêem. Por isso os hinos sempre desempenharam um importante papel pedagógico e doutrinário nas comunidades protestantes. Porém, em nosso tempo os cultos evangélicos têm primado pela superficialidade. Na reunião comunitária os hinos são substituídos por música mais jovem, cuja letra se sustenta apenas em chavões e slogans. E é significativo perceber que à medida que as liturgias passaram a ser invadidas por músicas aeróbicas nos anos oitenta, o enfraquecimento teológico das comunidades se acentuou. O grande mal das novas músicas eclesiásticas é sustentar-se em slogans de marketing tais como “Cristo Salva”, “Cristo é a resposta” e outros. Funcionam como jingles de propaganda na disputa pelo consumidor. E, infelizmente, como a maioria dos jingles, são canções de poesia e melodia medíocres. Os atuais cânticos que dominam os chamados “momentos de louvor” nas igrejas brasileiras são um triste exemplo da transformação da hinologia em jinglelogia – cânticos desprovidos de solidez teológica, mas com uma música de fácil aprendizado que é repetida ad infinitum como mantras e se incorporam ao ideário dos que a entoam.
Não estou defendendo a utilização apenas dos hinários tradicionais e dos padrões litúrgicos do passado. Longe de mim tal sugestão. Mas uma das missões da teologia é servir de consciência crítica da própria igreja. E hoje a teologia não pode dispensar os referenciais científicos que nos são dados pela estética para dizer que, infelizmente, nosso protestantismo é esteticamente paupérrimo. Nossos templos são galpões e poucos se preocupam com a arquitetura e decoração dos locais de culto a fim de manifestar ali a Glória e o louvor a Deus. O mesmo ocorre na produção das letras e melodias dos cânticos de louvor – repetitivos, cansativos, enjoativos, deprimentes e facilmente descartáveis. Basta ver a rapidez com que surgem e desaparecem. A cultura do descartável e a exigência de constante “modernização” são um padrão do mundo globalizado que tomou conta da música em nossas igrejas. Faço essa observação porque, para nós, anglicanos, a liturgia é o lugar privilegiado de toda reflexão teológica e missionária. Para nós é impossível dissociar a teologia da liturgia. O que rezamos, cantamos e celebramos, no fundo é o que cremos e vivemos. Nós costumamos expressar essa máxima com o antigo lema “lex orandi, lex credendi”. E infelizmente em nosso tempo as celebrações cúlticas nas igrejas evangélicas apontam para a substituição da reflexão missionária séria pela consideração de estratégias de propaganda e marketing.
Eu qualificaria a eclesiologia subjacente a esse processo de globalização como a eclesiologia do “exército de Deus”. Antonio Gouvêa Mendonça analisou os hinos que formaram a mentalidade teológica na época da implantação do protestantismo no Brasil e classificou um tipo especial de hinos como sendo do que ele chamou “protestantismo guerreiro” . Eram cânticos traduzidos das marchas militares da época da guerra civil americana em que Deus era representado como um general ou comandante a liderar seu exército na tarefa de exterminar os inimigos. O clássico hino “Vencendo vem Jesus” é o exemplo mais típico dessa hinologia, mas há também outros como “Avante, ó crentes, soldados de Jesus, contra hostes inimigas… o excelso comandante dirige os batalhões”.
Nos últimos anos esse protestantismo guerreiro ressurgiu com força especial, especialmente após a queda do muro de Berlim quando o comunismo já havia perdido o status de inimigo-mor dos protestantes. Os estudiosos do protestantismo brasileiro têm apontado para o fato de que as igrejas evangélicas no Brasil sempre dependeram de um inimigo contra o qual lutar a fim de mobilizá-la. Com a queda do comunismo, as igrejas ficaram meio que “órfãs” de um inimigo. A ética social nunca chegou a mobilizar poderosamente as igrejas evangélicas contra a pobreza e a injustiça e dificilmente iria conseguir fazer isso na década de noventa. Os inimigos mais próximos eram o movimento da “Nova Era” e as religiões afro-brasileiras. A partir daí o que se assistiu foi uma proliferação de estratégias de batalha espiritual, uma certa paranóia com o movimento da Nova Era e esses cânticos de protestantismo guerreiro, convocando os evangélicos a se alistarem no exército de Deus e marchar sobre a terra. As igrejas evangélicas perderam a grande oportunidade de solidificar uma ética social e transferiram suas energias para a batalha espiritual. Cristo novamente passou a ser definido como comandante, capitão ou general, cujos passos seguimos com a esperança de que nenhum inimigo nos resistirá.
De fato, as comunidades que assimilaram a eclesiologia do exército de Deus conseguiram grandes progressos quantitativos. Não há como negar que essa é uma estratégia capaz de mobilizar grandes contingentes, tal como foram as cruzadas e todos os movimentos de natureza conquistadora. As igrejas-exército cresceram rapidamente, embaladas por essas músicas, pelo louvor emotivo e por estratégias missionárias de clara inspiração bélica. Logo se tornaram poderosas, maiores e passaram a ditar os referenciais teológicos e a impor seu modelo como padrão para as comunidades menores. Dentro das próprias denominações algumas comunidades despontaram e cresceram rapidamente fazendo com que as menores se espelhassem naquele sucesso e os pastores saíssem correndo atrás do prejuízo como se fossem gerentes de filiais competindo pelos melhores lucros no balanço anual. O resultado que se vê hoje é essa crise de identidade à qual nos referimos, em que se misturam a rapidez das mudanças em nosso tempo, as novas demandas do contexto e o enfraquecimento teológico e litúrgico das denominações tradicionais.
Mas há outra eclesiologia presente na América Latina, que não se deixa seduzir pelo modelo do exército de Deus. Trata-se dos pequenos grupos, que preservam às duras penas uma espiritualidade mais sóbria e sacramental e tentam demonstrar com pequenos sinais a graça e o amor de Deus. Esses grupos não são muito visíveis por sua própria natureza. Muitas dessas pequenas comunidades não têm bandas com poderosas e ensurdecedoras caixas-de-som. Também não promovem cursos de batalha espiritual, pois sua batalha é muito mais concreta, travada no cotidiano. Simplesmente rezam confiantemente, agradecendo a Deus por ter Ele já vencido o Reino das trevas e suplicando seu auxílio no dia-a-dia. As grandes igrejas olham para esses pequenos grupos com um misto de pena e desprezo e consideram que tais grupos já perderam o bonde da história e estão fadados a morrer. Mas eu acredito que há nesses grupos que resistem à onda avassaladora da globalização evangélica, uma reserva de sentido inesgotável que é alimentada continuamente pela celebração litúrgica e a vida sacramental. Essa reserva de sentido tem feito com que muita gente cansada da eclesiologia do exército de Deus acabe buscando refúgio nessas igrejas. Elas ainda terão um importante papel a desempenhar no futuro do cristianismo brasileiro e latino-americano.
Para qualificar esse modelo eclesiológico eu usaria a clássica expressão de Carlos Mesters: “flor sem defesa”. De fato, são grupos pequenos e frágeis, que florescem em meio à adversidade de espinhos e a um ambiente hostil e sufocante. Porém, confiam no poder misterioso da semente, na vitalidade da seiva que corre no caule de antigas tradições e no testemunho caracterizado pelo perfume, a beleza e a suavidade. São como lírios do campo que dependem tão somente da graça do próprio Deus para continuar a existir.
Geraldo Vandré nos anos sessenta compôs uma clássica canção de protesto e resistência contra as ditaduras militares. Falava da resistência pacífica dos que caminhavam e cantavam seguindo a canção. Numa determinada estrofe, ele descreve a presença dos exércitos militares nas ruas com todo seu poder de fogo, seus inúmeros soldados e canhões. Mas fala também da presença de um pequeno grupo de resistentes nas ruas, que “fazem da flor seu mais forte refrão” e “acreditam nas flores vencendo canhões”.
É assim que eu vejo o cenário evangélico brasileiro no que se refere à eclesiologia e à missiologia. Alguns grupos se renderam ao modelo do exército e vivem traçando planos e estratégia de conquista. Naturalmente não falam mais em colonização e conquista à força, mas suas estratégias induzem a isso na medida em que trabalham no sentido de enfraquecer os ouvintes a fim de conquistá-los. E se alegram quando ao final do ano contabilizam o número de vencidos e conquistados para suas fileiras. Ao mesmo tempo, há outros grupos, bem menores e mais frágeis. Porém, também são grupos cristãos. Continuam a se alimentar da Palavra e dos Sacramentos e às vezes se envergonham da pouca visibilidade que têm na sociedade. Porém, alguns desses grupos estão seriamente empenhados e acompanhar a seu modo a Missio Dei. A resistência que demonstram frente ao modelo bélico que se impõe é uma resistência pacífica, sustentada pela celebração litúrgica e a vida sacramental à espera de um tempo mais favorável. Acredito sinceramente que no futuro, tais grupos que resistiram e que souberam remodelar sua identidade sem perder suas características essenciais hão de desempenhar importante papel no cristianismo brasileiro e latino-americano.
É por isso que, embora pareça utópico, eu sou um desses poucos que acredita nas flores vencendo canhões.
* Clérigo anglicano, Professor de Teologia na UNIFIL (Universidade Filadélfia de Londrina) e Coordenador do Centro de Estudos Anglicanos (CEA).
Email: ccalvani@hotmail.com
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