Autor: Rosane Pletsch
JOSUÉ 24.1-2a,14-18
JOÃO 6.60-69
EFÉSIOS 5.21-31
Considerações exegéticas
Tudo indica que a carta aos Efésios não era destinada exclusivamente à comunidade de Éfeso. Ela foi enviada, muito provavelmente, a comunidades localizadas na região da Frígia.
Por muito tempo, acreditou-se que Paulo teria sido o autor da carta, mas tudo indica que o escrito reflete a situação da igreja em torno dos anos 90, e não no período em que Paulo atuou, ou seja, nos anos 50-60.
Na Carta aos Efésios, não são mencionados explicitamente nomes de mulheres, o que, em comparação com o que ocorre nas cartas às comunidades paulinas, sugere que elas foram afastadas dos cargos de liderança das comunidades cristãs.
A carta lembra, desde o início, que as pessoas cristãs são salvas pela graça de Deus e que isto implica um novo modo de vida, não mais “seguindo o modo de pensar deste mundo” (2.2). Isto certamente remete à experiência de Gl 3.28, à confissão batismal que formula e garante a participação plena de todas as pessoas na comunidade. As primeiras comunidades cristãs haviam alterado profundamente o sistema hierárquico, constituindo-se em comunidades de iguais. Substituíram as regras discriminatórias de gregos e judeus, homens e mulheres, escravos e livres e reconstituíram as relações sociais e familiares. O casamento não era mais constitutivo para a nova comunhão em Cristo.
Em seguida, o autor fala da reconciliação trazida por Jesus através do evento da cruz. Discípulos e discípulas devem edificar-se sob este princípio da unidade compartilhado por Jesus (2.19ss.). Esta colocação pode estar apontando para a existência de alguns problemas de relacionamento nas comunidades.
Na seqüência, reclama-se a prática do amor. Este deverá ser o critério dos relacionamentos. O autor precisa lembrar às comunidades uma série de conhecimentos que já haviam tido a oportunidade de conhecer e praticar, que muito provavelmente se referem a Gl 3.28. O autor lembra que todos receberam a graça de Deus e que a comunidade forma o corpo de Cristo. No entanto, introduz-se aí a idéia de que
uns foram estabelecidos para pregar, outros para ensinar e assim por diante (4.11). Há claros indícios, neste ponto, de que o autor estava introduzindo uma reformulação na compreensão da comunidade como corpo de Cristo. Se, na compreensão paulina, todos os membros juntos formavam o corpo da igreja e eram responsáveis pelo seu bom funcionamento, agora o seu crescimento e a sua edificação se dá a partir da cabeça, que é Cristo (Ef 4.16). O corpo está fragmentado, hierarquizado, sendo a cabeça a que exerce papel principal. Sendo o homem a cabeça, é ele que passa ocupar os papéis de liderança.
O texto que estamos estudando faz parte do código doméstico encontrado em Ef 5.21-6.9. Nele, contradiz-se uma teologia e práxis da igualdade, introduzindo regras para regulamentar o comportamento dos membros da casa cristã, sob o dever da submissão dos membros socialmente desiguais, como as mulheres, as crianças e os escravos.
Sabe-se que o movimento de Jesus e as primeiras comunidades cristãs foram boa nova, principalmente porque introduziram novas formas de relacionamento na família, na comunidade e na sociedade. O código doméstico de Ef 5.21-34 representa a introdução de estruturas hierárquicas na comunidade cristã. Com estas, as mulheres são incentivadas a retornar a seus lugares subalternos, a ser obedientes a seus maridos.
Mulheres devem ficar submissas aos maridos e destes se exige que amem as suas esposas.
Efésios 5.21-31 inicia convocando todos e todas a serem submissos uns aos outros. O critério de “sujeitar-se” é válido para todos, independentemente da posição que cada qual ocupa. Este princípio não sugere uma mudança na posição jurídica do homem, da mulher, do escravo, da criança. Na seqüência, o texto reclama a sujeição das mulheres aos seus maridos. Estamos aí no contexto dos relacionamentos matrimoniais; da relação entre homem e mulher. A submissão da mulher ao marido se deve por este ser o cabeça da mulher, posição esta justificada a partir da visão eclesiológica de que Cristo é a cabeça da igreja e que esta lhe deve ser submissa. A mulher aparece como paradigma da eclesiologia (ela é imagem da Igreja), enquanto o homem representa o paradigma da cristologia (ele é a imagem de Cristo). A submissão da mulher ao marido recebe, portanto, justificativa teológica. O argumento teológico serve para reforçar a tradição social da submissão das mulheres. Sabe-se que, na antropologia grega, a “cabeça” possui precedência sobre os demais membros do corpo; representa o princípio da autoridade e a razão. A mulher casada deve permanecer submissa ao homem, que detém a autoridade sobre ela; é ao marido que cabe o papel de liderança, sua autoridade deve ser aceita. Isso, sabemos todas e todos, tem conseqüências diretas sobre a estruturação e liderança na comunidade religiosa.
Quanto aos maridos, estes recebem a incumbência de amar as suas mulheres. Não se faz menção ao homem como cabeça, unicamente exige-se que este ame a mulher, o que ocorre três vezes (v. 25,28,33). Também aí a exigência do amor tem justificativa teológica: assim como Cristo amou a Igreja. Além do amor, é exigido dos maridos também o dever de cuidar e alimentar as mulheres, assim como Cristo cuida e nutre a Igreja (5.33). Sabe-se que todas estas exortações não alteram as relações hierárquicas. A solução ou a abordagem de conflitos, das divisões, é feita agora com base no código doméstico, fundamentado no princípio da submissão das categorias em condições sociais desiguais, neste caso, as mulheres, e no princípio do amor patriarcal por parte de quem está em posição de vantagem, como o homem. Gl 3.28 e o código doméstico são duas formas antagônicas de se entender e viver o Evangelho.
As mulheres nas cartas paulinas
Nosso objetivo é direcionar o olhar para o papel, a participação das mulheres na igreja primitiva. Para isto, escolhemos as cartas paulinas. Queremos apresentar um quadro aproximativo do lugar das mulheres nestas cartas, sabendo, de antemão, que não é possível abordar todos os textos. O objetivo deste estudo é destacar o papel e a participação ativa das mulheres.
As mulheres estão presentes no movimento em Jesus, e foram também instrumentos tanto para dar continuidade a este mesmo movimento depois de sua morte e ressurreição, quanto para expandi-lo no mundo grego. A história de At 6.1-8.3 revela que não é Paulo que iniciou a missão entre os gentios, mas o grupo dos Sete. At 11.20s. mostra que pessoas de Chipre e Cirene pregavam aos gregos em Antioquia, entre os quais se encontrava Barnabé, mais influente do que o próprio Paulo, historicamente colocado como o iniciador da missão cristã no mundo grego. O conflito refletido no primeiro texto mostra, muito provavelmente, que as viúvas de que fala o texto não eram mulheres esquecidas e excluídas da refeição diária, mas excluídas da liderança em torno da mesa: a mesa eucarística (Fiorenza, p. 198ss.). Na protocomunidade de Jerusalém, menciona-se uma assembléia na casa de Maria (cf. At 12.12-17), que, por ser mencionada pelo nome, uma vez que poderia simplesmente ser chamada de mãe de João Marcos, mostra a importância da liderança desta mulher. As mulheres, nas cartas paulinas, são consideradas “colaboradoras” de Paulo; apenas cinco homens encontram-se em situação de “auxiliares”, servindo-o ou estando sujeitos às suas instruções. As mulheres estão incluídas nas seguintes funções de liderança: cooperadora (Prisca); irmã (Ápia); diácona (Febe) e apóstola (Júnia). Em 1 Co 16.16ss., Paulo exorta a comunidade a reconhecer e permanecer “sujeita” a essas pessoas. Em Rm 16.6,12, o apóstolo recomenda Maria, Trifena, Trifosa e Pérside por terem “labutado” muito, termo este empregado por Paulo para caracterizar o seu próprio trabalho de evangelizar e ensinar. Fp 4.2-3 menciona que Evódia e Síntique trabalhavam como ele, lado a lado; a liderança delas era tão fundamental que Paulo teme que o conflito surgido entre elas possa prejudicar a missão cristã na comunidade de Filipos. Rm 16.7 dá a conhecer Andrônico e Júnia, que, assim como Prisca e Áquila, são chamados de apóstolos, parceiros missionários, convertidos antes do apóstolo Paulo, muito provavelmente pertencentes ao círculo dos apóstolos em Jerusalém, conforme 1 Co 15.7. Nota-se que nem Prisca nem Júnia são definidas como esposas; ressalta-se, isto sim, sua parceria na obra missionária. Os Atos de Paulo e Tecla, um escrito do segundo século, inteiramente dedicado à história de Tecla, mostra que esta discípula ensinava, assumia atividades missionárias, batizava. Ao seu redor, há também um grupo numeroso de mulheres que a apóiam, mostrando, com isso, ser líder de uma comunidade de mulheres ou, no mínimo, com uma grande participação de mulheres.
Fator decisivo no movimento missionário eram as igrejas domésticas. “As igrejas domésticas eram o lugar onde o cristianismo primitivo celebrava a ceia do Senhor e pregava as boas novas” (Fiorenza, p. 212). Estas igrejas contaram com a importante contribuição das mulheres. Na Carta aos Colossenses (Cl 4.15), o autor lembra a “igreja na casa” de Ninfa, em Laodicéia. Nas origens da fundação da comunidade em Filipos está Lídia, que se converteu e ofereceu sua casa para a missão cristã (At 16.15). Eminente missionária e fundadora de comunidades domésticas foi Prisca ou Priscila, que junto com Áquila divulgou o Evangelho. Este casal missionário, assim como Barnabé e Apolo, realizavam sua missão independentemente de Paulo, não estando sob sua autoridade. De Prisca ou Priscila e Áquila sabe-se que, por ocasião de sua expulsão de Roma, mudaram-se para Corinto, onde aceitaram Paulo como colaborador em sua atividade profissional e sua comunidade doméstica. Das vinte e cinco mulheres citadas em Rm 16, participantes da comunidade de Jerusalém, aproximadamente um terço são mulheres. A liderança de Febe chega a ser caracterizada por três títulos: irmã, diáconos e prostátis, todos usados para designar pessoas na qualidade de mestres, missionárias, profetas, pessoas cheias do Espírito de Sofia.
Considerações pessoais para a prédica
A realidade e as conseqüências de Efésios 5.21-32 certamente não nos são desconhecidas. O que o autor de Efésios propõe, através do código doméstico, é solucionar conflitos nas relações conjugais, mediante o silêncio das esposas e a “piedade e amorosidade” do marido. Trata-se de uma maneira de abordar o conflito sem colocá-lo em xeque, sem abordá-lo a partir de suas causas. Num contexto de violência contra a mulher, como é a atual realidade, esta forma de abordar o problema é prejudicial às mulheres. Exigir de quem sofre maus-tratos submissão ao agressor e de quem agride, maior amor é simplesmente contraditório. Não sabemos ao certo a problemática de fundo a que a carta se refere, mas sabemos que se trata de conflitos oriundos do contexto das relações entre marido e mulher. O fato de se exigir da mulher submissão, independentemente de sua situação, mostra o quanto esta recomendação é patriarcal. Da esposa exige-se obediência e sofrimento tácito; ela deve aceitar a situação em que se encontra. Do marido exige-se que ame e cuide da mulher. Dele espera-se que tome a iniciativa, pois ele, afinal, é o cabeça.
Lembro numerosas experiências femininas, que podem clarear o que estas recomendações representam para as mulheres. Mulheres geralmente são ensinadas a se contentar quando o marido compra o sabão e as vestimentas. Se assim o faz, é considerado um bom marido. Ela não deve reclamar; deve, isto sim, cozinhar, lavar, vestir as crianças…
Tampouco precisa saber o que se fez com o restante do dinheiro do mês ou da safra. Se a esposa tem o necessário para “administrar a casa”, que é sua tarefa, não tem de que reclamar; afinal, o marido é bom, pois providenciou tudo o que a esposa necessitava para cozinhar e lavar. Nada de cidadania à mulher, e ao homem o direito de mandar, de oprimir em nome de um aparente amor.
Nesta mesma lógica, as mulheres devem também agradar o marido em tudo o que ele exige, como, por exemplo, aceitar a quantidade de filhos e o número de relações sexuais que deseja ter; afinal, é um homem bom, pois deseja estar com a mulher, quando poderia ser pior: nem desejá-la ou, então, maltratá-la.
Outras vezes acontece que meninos e meninas brincam juntos. Também aí costumam se dar relações hierárquicas de poder. A menina geralmente é ensinada a ceder nas brincadeiras, a não aprofundar conflitos e a se retirar do local, deixando o campo livre para os meninos. Os meninos, quando muito, permitem às meninas que brinquem com os brinquedos que eles não querem, ou concedem a elas um pequeno espaço, desde que não lhes faça falta. Se o menino “deixa” a menina brincar é porque é bonzinho, sabe cuidar da irmã. Se não o faz, mostrou seu poder de “futuro homem” e discretamente é admirado ou então se considera esta cena normal, correta, sem questioná-la. Se a menina “luta” pelo seu espaço é chamada de “brigona” e aconselhada a se afastar do local.
Poderíamos ainda relatar muitos outros exemplos em que se aplica o princípio da submissão às mulheres e do amor patriarcal aos homens. Penso que o exposto até aqui basta para se perceber as seqüelas que estas recomendações trazem às mulheres.
A prédica e a liturgia
O texto de Jo 6.60-69 e de Josué 24.1-2a,14-18, sobretudo Js 24.14-18, são textos importantes para a pregação. Eles ajudam-nos a clarear a posição a assumir; ou o caminho da submissão das mulheres ou o caminho que conduz à libertação delas. Não há como conjugar submissão com amor; não há como servir a dois senhores. Conforme visto no estudo acima, em que se destaca a participação plena das mulheres, é possível resgatar, com base em Gl 3.28 e tantos outros textos, exemplos e enunciados teológicos que permitem assumir uma posição alternativa à sugerida pelo texto da Carta aos Efésios. O referido texto ensinanos pela via negativa: mostra o que a comunidade e família cristãs não devem ser. Sugiro, com base nas informações históricas sobre a participação das mulheres nas comunidades cristãs primitivas e na hermenêutica da “imaginação criativa”, conforme formulado por Elisabeth S. Fiorenza, que o texto seja recontado da seguinte forma: “Mulheres, sejam libertas. Tenham autoridade, assim como as discípulas de Jesus tiveram. Na família cristã, todas e todos têm direitos e deveres iguais. O relacionamento hierárquico de senhor e servo, marido e mulher foi substituído por relações igualitárias e, por isso, devem prevalecer relações de igualdade. Submissão e obediência não mais existem. Façam uso desta liberdade.
Maridos, respeitem as mulheres. Superem o orgulho. Valores como a superioridade não mais fazem parte do relacionamento entre homens e mulheres. Deus mesmo os substituiu, quando inverteu as relações sociais, apresentando-se como amigo. Não sigam mais a ideologia patriarcal que lhes impõe submeter outras pessoas, principalmente as mulheres de vocês. Valorizem-se. Amem a si próprios: seu corpo, seu ser. Estendam esse bem-estar àquelas e àqueles que os cercam. Façam isto e serão felizes”.
Bibliografia
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hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.
REIMER, Ivoni R. O Belo, as feras e o novo tempo. Petrópolis: Vozes;
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–. Women in the Acts of the Apostles: a feminist liberation perspective.
Minneapolis: Fortress, 1995.
SCHOTTROFF, Luise. Mulheres no Novo Testamento: exegese numa
perspectiva feminista. São Paulo: Paulinas, 1995.
STRÖHER, Marga J. Casa igualitária e casa patriarcal: espaços e perspectivas
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