Espiritualidade e pregação

Autor: Carlos Eduardo B. Calvani

INTRODUÇÃO

Durante os anos setenta certos grupos evangélicos conservadores popularizaram no Brasil uma imagem distorcida de Tillich. Sempre que se referiam a ele, o faziam criticando a linguagem filosófica de sua teologia e acusando-o de não dar importância às questões ditas “espirituais” ou à espiritualidade. Por isso, pode causar surpresa para algumas pessoas a afirmação de que Tillich também se preocupava com esse assunto. Naturalmente, ele nunca utilizou seus livros para falar de sua vida devocional. Quem lê a Teologia Sistemática encontrará apenas algumas referências à oração na parte IV. Mas a obra de Tillich não resume à Teologia Sistemática. Se quisermos compreender um pouco do modo como o próprio Tillich lidava com a questão da espiritualidade, é necessário buscar especialmente os seus sermões ainda inéditos em português, além de outros textos pouco conhecidos. Quem leu apenas a Teologia Sistemática ou outras obras como A Era Protestante, A Coragem de Ser ou Dinâmica da Fé, certamente se surpreenderá com alguns de seus sermões. Ali aparece o Tillich pregador, tentando comunicar o que ele compreendia ser a mensagem do Evangelho de modo relevante aos ouvintes. No prefácio ao seu primeiro livro de sermões, The Shaking of Foundations, ele diz: “Agrada-me pensar que esses sermões talvez contribuam para mostrar que o caráter estritamente sistemático de uma teologia não constitui necessariamente um obstáculo para que essa seja ‘prática’, ou seja, aplicável aos problemas pessoais e sociais de nossa vida religiosa”. [1]

Pretendo abordar o tema da espiritualidade e da pregação em Tillich através da análise de alguns sermões e conferências, especialmente uma série de conferências pronunciadas em fevereiro de 1963 (Earl Lectures) e só publicada recentemente a partir das fitas gravadas e do material datilografado fornecido pelo Arquivo Tillich da Harvard Divinity School. [2] Sirvo-me também de um livro organizado por Mackenzie Brown, que reproduz trechos de uma semana de gravação de painéis de diálogo entre Tillich e os participantes de um seminário que discutia as implicações pastorais de sua teologia. O seminário aconteceu no verão de 1963 na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e foi restrito a um grupo de dezoito estudantes de pós-graduação e alguns professores. [3] Outro texto no qual me baseio é o artigo conclusivo do livro Theology of Culture. [4] Há ainda algumas referências a certos traços da personalidade de Tillich na interpretação de Rollo May [5] e no livro escrito por Grace Calí (ex-secretária pessoal de Tillich na Harvard University, de 1955 a 1963) [6] . São textos que nos ajudam a compreender melhor o ser humano que se escondia por trás dos textos teológicos e dos sermões e por aqui que começo.

1. Traços da personalidade de Tillich – o ser humano por trás do teólogo

            Rollo May que foi aluno e amigo de Tillich, tornou-se bastante conhecido nos círculos acadêmicos da psicologia norte-americana. Dentre os aspectos mais enfatizados por ele a respeito da personalidade de Tillich estão a intensidade com que se envolvia com um assunto quando este lhe interessava e a vitalidade que demonstrava, não se preocupando muito em esconder suas emoções publicamente. May comenta que em várias ocasiões, às vezes até mesmo durante aulas e palestras, a voz de Tillich se embargava e seus olhos lacrimejavam, o que surpreendia a muitos. Diz ele, “Paulus nunca tentava esconder seu constrangimento ou desconforto a ponto de corar-se, o que me surpreendia, pois eu estava habituado com pessoas eminentes, especialmente professores que encobriam suas emoções intimas. Na condição de estudante, eu vi Paulus em muitas reuniões em grupo, corando ou olhando de um jeito meio desesperado ou andando de um lado para o outro no hall durante um recesso na discussão. E perguntava a mim mesmo porque ele não controlava suas emoções de maneira mais efetiva”. [7]

Falando ainda sobre a intensidade desse amor pela vida, May recorda outro episódio – uma visita pastoral que Tillich fez a um hospital para encontrar uma amiga enferma. May o acompanhou e diz ter, ele próprio, saído mais confortado com as palavras que Tillich dirigiu à amiga: “Hellen, você deve amar a vida!”. Segundo May, ele comunicou a ela não apenas uma atitude em relação à vida, mas a vida em si mesma”. [8]

            Essa vitalidade, porém, misturava-se com uma indisfarçada timidez. Tanto May quanto Calí informam que uma das coisas que muito incomodava Tillich era a fama que havia angariado nos círculos acadêmicos norte-americanos. May diz que Tillich tinha um temperamento tímido e que nunca conseguiu lidar muito bem com a condição de celebridade. Isso é confirmado por Grace Calí, que narra uma conversa que teve com Tillich numa cafeteria na Harvard Square no início dos anos sessenta: Durante nosso café eu brinquei de leve com uma questão referente a um recente artigo de revista sobre ele. “E como é ser uma celebridade?”

                        “Esse Paul Tillich”, ele disse reflexivamente, “quem é ele? Ele é um estranho pra mim”.

                        “Como assim?”.

“Esse Tillich sobre quem eles escrevem – de fato não sou eu. Eu sou duas pessoas. E uma não tem nada a ver com a outra”.

                        “E como você se sente em relação a esse Paul Tillich famoso?”

                        “Curioso”, ele respondeu rapidamente.

Senti um sentimento de rejeição pela figura pública em seu tom de voz, junto com um atordoamento infantil. [9] 

A interpretação que May faz da personalidade de Tillich revela que o teólogo viveu de modo muito pessoal e intenso o significado da ambigüidade existencial. Freqüentemente era acometido por momentos de angústia e ansiedade que o levavam a se desligar dos acontecimentos à sua volta e se recolher em mutismo e solidão. Porém, sempre voltava do isolamento renovado por uma força misteriosa que o tornava ainda mais criativo. May chega a comparar a vida de Tillich à de alguém que pedala uma bicicleta: está continuamente sob o risco de cair e sabe que o único meio de evitar a queda é manter o equilíbrio através de constante movimentação.De fato, só alguém que experimentou de modo intenso o desespero, a ansiedade e a angústia e, ao mesmo tempo encontrou coragem para lidar com essa situação existencial, poderia escrever reflexões tão profundas como as que lemos em A Coragem de Ser. Os bons intérpretes de Tillich sempre são sensíveis o suficiente para compreender que as entrelinhas de seus textos revelam uma intensa luta criativa entre a fé e a dúvida. Ele mesmo costumava dizer: “Algumas vezes penso que minha missão é trazer fé aos incrédulos e dúvidas aos que crêem”. [10] Não se tratava, porém da dúvida como método intelectual à semelhança de Descartes, mas de dúvida existencial experimentada às vezes de modo angustiante, mas sempre criativo. Isso era possível porque apesar do caráter racional de seu sistema, Tillich entendia a palavra “razão” como logos, estrutura significativa da realidade e encontrava sinais da manifestação do logos na tradição dos místicos alemães e do pietismo que caracterizou sua infância e adolescência. Essa herança mística deu uma base cósmica à sua racionalidade.

No início dos anos sessenta, quando finalizava o volume III da Teologia Sistemática, Tillich experimentou de modo muito intenso a ansiedade e o desespero diante de impasses e brechas que ele mesmo encontrava em seu sistema. Escrevendo a um amigo, ele afirma: “Estou mais preocupado do que nunca. O sistema esfacelou-se. O que devo fazer? Recolher os pedaços? Declarar que a tentativa falhou? Tentar novamente – é o que provavelmente irei fazer… Tudo isso é semelhante ao que experimentei quando tinha 12 anos de idade: a opressão da ansiedade em relação ao trabalho inacabado!” [11] May recorda ainda outra frase dita certa vez por Tillich: “Toda manhã, das sete às dez, eu convivo com os demônios”. [12]

A estratégia de Tillich para enfrentar esses momentos de angústia e depressão estava no recolhimento e isolamento. Ele acreditava firmemente que a solidão é necessária para qualquer ser humano preservar sua capacidade de presença criativa. De fato, ninguém pode ser originalmente criativo se não preservar momentos de solidão. A solidão oferece a oportunidade de aprofundamento e clareza. May diz que Tillich era zeloso de sua solidão e fazia questão de preservar tais momentos em sua rotina diária de trabalho. Dependendo da época, esses momentos aconteciam no início da manhã ou após o jantar até o início da madrugada. Grace Calí, também comenta sobre essa necessidade de solidão:
 
Eu chegava geralmente às 10 horas. Tillich chegava antes porque sempre fazia questão de ter um precioso momento de solidão durante pelo menos meia hora. Eu às vezes imaginava o que ele fazia durante esse tempo em que ficava sozinho no escritório fechado… mais tarde descobri que ele lia a Bíblia e meditava nela e em textos budistas, de religiões orientais ou em obras de místicos. Sua sala particular era decorada com ícones, quadros e algumas estátuas de deusas, o que criava uma aura de misteriosa sabedoria e serenidade (…) Seu período de silêncio e renovação cada manhã era inviolável antes de começar os trabalhos e atividades do dia. Ele me recomendava não lhe passar ligações telefônicas durante esses momentos. [13]

A importância desses momentos de solidão é afirmada por Tillich num sermão baseado em Mateus 14.23 (a narrativa em que Jesus se afasta da multidão e sobe a um monte para orar, em solidão). No sermão, Tillich observa que a palavra “isolamento” tem uma característica negativa – expressa a dor de estar sozinho e é fonte de melancolia, porque ninguém escapa do isolamento da própria culpa e da morte que é só nossa e de mais ninguém. A palavra “solidão”, por sua vez, tem características positivas, pois expressa a glória de estar sozinho. Isso significa que, de certo modo, depende de nós, transformar a destrutividade do isolamento em solidão criativa. Falando de si mesmo no sermão, ele diz que freqüentemente se retira para estar só com sua solidão.

O que acontece em nossa solidão? Tillich diz que nesses momentos encontramos-nos no campo de batalha entre a criatividade e a destrutividade, entre Deus e os demônios. Por isso a solidão não é algo fácil. Muitos a temem e tentam superar a solidão com orações que acabam por transformar Deus em um parceiro na conversa, ou seja, nós usamos Deus para escapar da solidão. Mas Tillich observa que às vezes Deus mesmo nos afasta da multidão para que penetremos uma solidão que não desejávamos. Nesse ponto ele cita o profeta Jeremias: “- Sozinho eu permaneço, porque a Tua mão tem estado comigo” e acrescenta: “Deus quer que façamos a pergunta da verdade que pode nos isolar da maioria dos homens, e que pode ser feita somente em solidão. Ele quer que rompamos com os modos rotineiros (…) um rompimento que só pode acontecer em solidão. Ele quer que penetremos as fronteiras de nosso ser, onde o mistério da vida aparece, e ele só pode aparecer em momentos de solidão”. [14]

Essa insistência de Tillich na solitude ou “solidão criativa” corresponde a uma espécie de exercício devocional para a preservação de nossa unidade enquanto seres humanos, com vistas à nossa autocentralidade. Na parte final do sermão, Tillich afirma que uma hora de solidão consciente enriquece nossa criatividade mais que várias horas tentando aprender processos criativos e desafia os ouvintes a encararem de modo positivo e criativo a solidão, tomando-a como um momento na presença do eterno e afirma que “uma hora de solidão pode nos aproximar muito mais daqueles a quem amamos que muitas horas de comunicação”. Ao final do sermão, utiliza a técnica homilética da linguagem direta aos ouvintes: “Na pobreza da solidão todas as riquezas estão presentes. Ousemos experimentar a solidão – nos deparar com o eterno, encontrar o outro, ver-nos a nós mesmos”. [15]

À luz dessas considerações iniciais, vamos antes de comentar alguns de seus sermões, chamar a atenção para alguns princípios metodológicos de sua teologia e de sua prática homilética.

2. O método da correlação na prática da pregação.
 
            Por volta dos anos cinqüenta, Tillich passou a ser muito requisitado para pregar em cultos na capela das Faculdades onde lecionava e, eventualmente em Igrejas que o convidavam ou em cerimônias organizadas por amigos. Em geral, não recusava os convites porque esses eram recebidos como a oportunidade de aplicar seu método de correlação em contato direto com pessoas diferentes, o que exigia uma adaptação dos conceitos teológicos à linguagem dos símbolos da fé. A preparação de um novo sermão era para ele um desafio tão grande quanto o trabalho acadêmico:

Sempre caminhei para um púlpito ou uma escrivaninha com temor e tremor. Mas o contato com a platéia me dá um sentimento característico de regozijo, o regozijo da comunhão criativa, de dar e receber, mesmo quando os ouvintes não falam. [16]

A prática de Tillich enquanto pregador era bastante coerente com o método da correlação, diferindo apenas no tipo de linguagem utilizada, pois Tillich sempre evitava em seus sermões fazer longas digressões filosóficas ou explicações conceituais que seriam mais apropriadas para os textos acadêmicos. Para ele, “a verdadeira comunicação do Evangelho consiste em tornar possível uma decisão definitiva por ele ou contra ele”. [17] Acompanhando a conclusão da coletânea Theology of Culture, observamos que a argumentação de Tillich segue muito de perto o esquema tradicional da teologia luterana: o que possibilita a atualidade da pregação é o fato de que o Evangelho oferece a resposta divina à situação humana em todas as épocas e culturas. O pólo da “situação” é descrito sempre em termos existenciais: ansiedade decorrente da sujeição ao destino e à morte. Desse modo, a primeira coisa a ser feita quando se comunica o Evangelho é auxiliar o ser humano a compreender sua própria situação, mostrando como estamos envolvidos pelas estruturas da ansiedade, dos conflitos e da culpa. A primeira tarefa do pregador então seria oferecer uma descrição da existência humana que seja acolhida pelos ouvintes como um espelho para que contemplem a si mesmos de modo claro. Estamos aqui no próprio interior do método da correlação em sua primeira fase – a análise da situação.

Porém, a situação humana que é um dos pólos do método da correlação está, continuamente mudando em sua configuração social e cultural e por isso a tarefa teológica nunca está concluída, mas é sempre posta novamente de modo diferente devido ao constante dinamismo da história. Para Tillich, o movimento cultural que em sua época oferecia a melhor descrição da situação humana, incluindo os problemas da culpa, dúvida, absurdo, ausência de sentido, desumanização do ser humano através do acelerado processo da tecnologia e da própria morte era o existencialismo. A linguagem religiosa que caracteriza essa situação humana está expressa na palavra “pecado”, entendida como alienação existencial e hybris.

O existencialismo oferece, portanto, um caminho para identificar esses dois aspectos do pecado: alienação e hybris. Tillich parecia assustado com a corrida espacial do final dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta, encarando-a como uma forma de hybris coletiva com trágicas conseqüências para a visão sacramental do mundo: “A própria terra tornou-se um objeto que o astronauta observa de cima para baixo; e perdeu o que originalmente significava para a humanidade: a mãe natureza, que nutre e alimenta”. [18] O existencialismo proporcionou a Tillich, a possibilidade de penetrar as entranhas da cultura, analisar a razão calculista que domina o mundo e denunciar a desumanização do ser humano. Essa desumanização opera em vários níveis, particularmente o cientificismo que a tudo define (e ele evoca aqui a raiz latina definere, que significa “circunscrever a uma realidade finita”), o acelerado processo tecnológico e a psicologia comportamental de Skinner, a quem ele critica dizendo que “sua técnica de controle da mente e condicionamento, retiram até o direito à angústia. Os seres humanos são obrigados a ser felizes… Mas o que produz não é um ser humano feliz, e sim um animal abençoado. Esse é o propósito do skinnerismo”. [19] O existencialismo aparece então como

um diagnóstico da situação da personalidade moderna, da negatividade do mundo determinado apenas pela linha horizontal, pela razão calculista e técnica e pelo controle objetivo. E mostra algo mais: a importância da ansiedade, angústia, nossa culpa, finitude, solidão e absurdo (…) por isso devemos considerar o existencialismo como um sinal da providência divina. Se fizermos isso e soubermos utilizar a riqueza do existencialismo, então os símbolos cristãos poderão novamente ser relevantes”. [20]

Porém, é preciso lembrar que Tillich sempre frisou que o existencialismo oferece uma descrição acurada da situação, mas não oferece a resposta. Essa tem que vir de fora, ou do alto, do transcendente, do Eterno. Em todo caso, a análise existencial determina o tipo de resposta que a pregação cristã deve assumir, analisando o abismo entre nossa existência atual o que essencialmente somos.

Temos então a segunda parte do método da correlação: a tarefa do pregador cristão não é apenas descrever a situação humana para afundar os ouvintes em maior desespero. O evangelho deve comunicar uma resposta consoladora capaz de mostrar que o poder do Novo Ser tal como manifesto em Cristo, participou radicalmente dessa situação humana e a ela não sucumbiu. Sob as condições da existência, o ser humano é incapaz de vencer a alienação e religar-se novamente com Deus, o mundo e consigo mesmo; por isso a reunião de tudo o que está separado deve vir de outra fonte – o Novo Ser. Apenas o Novo Ser pode produzir novidade de vida. O Novo Ser aparece em Jesus como o Cristo, alguém que viveu sob as mesmas condições da existência humana e ainda assim foi capaz de resistir as forças da alienação e não perder sua unidade com Deus. Em Cristo o Novo Ser é real; ele reestabelece a unidade entre Deus e o homem. A vitória do Novo Ser sobre as marcas da alienação em Jesus enquanto o Cristo, possibilita a mesma experiência a todos que participam nele. Por isso, o cristianismo “é a mensagem de uma nova realidade que possibilita a realização de nosso ser essencial”. [21]

Na série de conferências sobre a relevância da mensagem cristã em 1963, Tillich diz que essa metodologia, que ele chama “teologia da mediação” sempre esteve presente na história do cristianismo, desde o quarto evangelho, passando pelos apologistas, Orígenes, Agostinho, Abelardo, Ockham e chegando a Schleiermacher. Ao mesmo tempo, reconhece outra linha que também sempre esteve presente no cristianismo: a teologia querigmática que enfatiza a oposição da mensagem cristã frente a toda situação e enfatiza o caráter absolutamente Outro de Deus. Essa linha procede de Tertuliano, Atanásio, Bernardo, em alguns movimentos sectários, no fundamentalismo e em Barth. Porém, aqui em 1963, o tratamento dispensado por Tillich à teologia querigmática é bem mais positivo que as palavras da Introdução à Teologia Sistemática. Ele reconhece, por exemplo, que o kerigma e a mediação sempre andaram juntas e são necessárias. Segundo ele, “isso indica que ambos os modos de pensamento são necessários para a Igreja Cristã no mundo, mas ambos portam o perigo de tornar o cristianismo irrelevante”. Tillich está em pleno momento auto-crítico, de revisão de sua obra e, usando um conceito muito caro a ele, eu chamaria a isso, a “ambigüidade da opção metodológica”. Observemos essa frase autocrítica de 1963:

A teologia da mediação corre o risco de distanciar-se da mensagem original. Por outro lado, a teologia da afronta pode negar a possibilidade de qualquer relação. A primeira torna-se irrelevante por adaptação, a segunda por oposição. Ambas são igualmente perigosas se permanecerem isoladas. Avaliando o sentimento que muitos têm sobre a irrelevância da mensagem cristã, encontro alguns que afirmam que o motivo disso é que não há relação ou conexão com nossa situação. Mas, surpreendentemente, também encontro muitos que dizem que ela nada comunica porque não tem o poder da proclamação, da afronta, que pertence a tudo o que é divino. Portanto, a mediação e a ofensa devem ser mantidas vivas na pregação e no ensino cristão. [22]

            A relevância da pregação cristã, porém, não é provada pela freqüência habitual aos sermões. Isso não significa que a mensagem cristã esteja sendo relevante para as pessoas. Tillich reconhece que freqüentemente, as pessoas que assistem regularmente aos serviços religiosos simplesmente precisam participar de algum ato sociologicamente significativo”. O que torna a mensagem cristã relevante é a resposta que ela oferece às questões existenciais da humanidade, possibilitando esperança, sentido e coragem para viver. Isso nos remete à consideração sobre o conteúdo da mensagem cristã.

2.1. O conteúdo da pregação

            O cerne da pregação do evangelho é a mensagem da salvação através do Novo Ser manifesto em Cristo e em sua cruz. Tillich não se cansa de repetir que “Cristo é o lugar onde a Nova Realidade está completamente manifesta porque nele, em todo momento é vencida a ansiedade da finitude e dos conflitos existenciais”. [23] Avaliando a linguagem ontológico-existencialista da cristologia de Tillich, Maraschin pergunta se a pregação do Novo Ser não seria “demasiadamente abstrata para efetuar o que pretende, ou seja, a transformação das pessoas e das estruturas do mundo?”. [24] Tillich não era ingênuo quanto a essa limitação. De fato, o conceito é abstrato e, por isso, sempre o utilizava nos sermões, Tillich apontava também para a linguagem religiosa (Jesus enquanto o Cristo), frisando que “Jesus Cristo” não é simplesmente um nome e um sobrenome, mas uma linguagem simbólica derivada do mito-de-origem do cristianismo – o “evento Cristo” no qual o Novo Ser se manifestou para a história.

Tillich sempre foi acusado de transformar o Jesus histórico no Cristo mítico ou de privilegiar o que alguns chamam “Cristo da fé”. Uma piada que não se sabe se tem fundamento histórico, mas que circulou amplamente nos EUA, conta que, certa vez perguntaram-lhe o que ele diria caso os antropólogos encontrassem um corpo em Jerusalém e comprovassem ser o corpo de Jesus de Nazaré; ao que Tillich teria respondido: “Eu me surpreenderia muito, e diria: Ah! Então ele existiu mesmo?”

Para melhor compreendermos essa questão, é preciso verificar o que Tillich entendia por “evento Cristo”. Esse sempre tem dois lados: o fato histórico de Jesus de Nazaré e a recepção do impacto dessa vida por aqueles que o reconhecem como o Cristo. Na conferência de 1963, ao falar das possibilidades de tornar a mensagem cristã relevante para seu tempo, ele menciona o “evento Cristo” e enfatiza:

Eu repito: o evento tem dois lados: o lado factual e o lado da recepção; e ambos são necessários. Cristo, em termos estritamente teológicos, não poderia ser o Cristo sem a igreja, ou seja, a comunidade que o recebe. E a igreja não pode ser a igreja sem o Cristo sobre quem ela está baseada e fundamentada. Isso significa que o cristianismo não está baseado simplesmente em uma idéia ou um conjunto de símbolos. Eles estão ali e são utilizados. Mas a igreja está baseada em algo que aconteceu no tempo e no espaço – o aparecimento de um homem que é chamado Jesus, que foi recebido pelos discípulos como o Cristo esperado (…) Esse é o pano de fundo da relevância essencial do Cristianismo, a relevância de um evento histórico com significado universal para toda história humana ” [25] .

A título de exemplo, Tillich destaca o quarto evangelho como modelo de relevância da mensagem cristã, argumentando que o mesmo não traz uma história da vida de Jesus à semelhança dos sinóticos, mas uma interpretação da relevância de sua mensagem e do modo como ela foi recebida pelas comunidades da época. O que interessa, portanto, é a imagem bíblica do Cristo como portador do Novo Ser e a recepção desse poder.

Não tenho certeza dessa afirmação, mas parece que no final dos anos cinqüenta e início dos sessenta, Tillich acompanhou com atenção o movimento de retorno ao “Jesus histórico” empreendido por Ernst Käsemann (1953), Günther Bornkamm (1956) e Joachim Jeremias (1960). Em todo caso, para ele, a discussão sobre o Jesus histórico é apenas periférica porque o fundamento da fé não pode ser confirmado ou negado pela historiografia. O conteúdo salvador do evento Cristo como Novo Ser é dado pelo impacto do significado da Cruz de Jesus e de sua ressurreição. Na Teologia Sistemática, Tillich observa que a ressurreição de Cristo é a permanente e indelével fusão da graça salvífica em toda história com Jesus e sua cruz e, juntamente com a teologia da cruz forma o núcleo do “evento Cristo”. Assim, a teologia da cruz e a teologia da ressurreição se implicam mutuamente.

O critério da cruz é utilizado por Tillich para apontar outro sinal da irrelevância da mensagem cristã: o paradoxo das igrejas. Essa questão é abordada no III volume da Teologia Sistemática, publicado no mesmo ano das Conferências Earl (1963). Opto aqui por citar um trecho dessa conferência, porque a linguagem mais devocional se aproxima mais dos propósitos deste trabalho:

Quando olho para as igrejas atuais, freqüentemente fico escandalizado pela profundidade desse paradoxo: representar o Reino de Deus ou, em outras palavras, a Comunidade Espiritual, e ao mesmo tempo, distorcê-lo tanto. Mas quando esse sentimento me abate, inclino meus olhos para fora das igrejas e, de repente, num culto em uma pequena comunidade ou em um ato de amor inspirado pelos símbolos bíblicos ou pela figura de Jesus, algo rompe toda fraqueza, banalidade e corrupção das igrejas atuais. Isso tem acontecido provavelmente com todos nós. [26]

A herança luterana aparece na consideração sobre o paradoxo das igrejas cristãs – essas são, simultaneamente santas e pecadoras. Esse paradoxo reside no fato de que suas formas institucionais encobrem e ocultam o sentido último do evento de Jesus enquanto o Cristo. Glorifica-se o invólucro em detrimento do conteúdo. Por isso é necessária a mensagem da cruz, que anuncia o juízo divino contra toda religião: “A relevância do cristianismo será assegurada por essa autonegação. Sem essa contínua autonegação, o cristianismo não é verdadeiro cristianismo e não será relevante”. [27]

Só é possível compreender os sermões de Tillich se atentarmos para sua compreensão do conteúdo da mensagem cristã, o kerygma essencial do Novo Ser (em termos paulinos, a “nova criatura” ou a “nova criação”) em Jesus Cristo como “poder de salvação” (Teologia Sistemática vol. II, parte II) capaz de vencer o conflito entre o ser essencial e a existência distorcida comunicando o caráter tríplice da salvação: Regeneração (participação no Novo Ser), Justificação (aceitação do Novo Ser) e Santificação (transformação pelo Novo Ser).

            A coletânea The New Being, traz um sermão intitulado “O Novo Ser”, baseado em Gálatas 6.15 (“nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura”). Seguindo a argumentação paulina, Tillich afirma que “não importa ser judeu ou gentio. A única coisa que importa é a união com Aquele em quem a Nova Realidade está presente”, por isso o cristianismo enquanto religião particular pouco interessa, por ser tão importante quanto a circuncisão ou a incircuncisão, nada mais, nada menos. Observemos novamente a técnica homilética da linguagem direta: Nenhuma religião particular interessa, nem a minha nem a sua. O que eu quero lhe dizer é que algo aconteceu que realmente importa, algo que julga a você e a mim, sua religião e a minha religião. A Nova Criação começou; o Novo Ser apareceu; e nós somos chamados a participar dessa realidade”. Aqui ele remete novamente à imagem do Cristo, dizendo que “O Novo Ser se manifesta em Cristo porque Nele as forças da alienação nunca foram capazes de superar a unidade entre Ele e Deus, entre Ele e a humanidade, entre Ele e Ele mesmo… Ele representa e media o poder do Novo Ser porque Ele representa e media o poder de uma união inseperável”. O uso da linguagem direta é retomado na conclusão, numa espécie de “apelo” aos ouvintes: “A reconciliação acontece agora… Aceite-a, deixe a tomar conta de você”. [28]

2.2. A forma da pregação e o problema da linguagem

No livro organizado por Mackenzie Brown, a questão da pregação cristã, especialmente da linguagem, aparece num diálogo travado entre Tillich, um professor e um aluno não identificados. Reproduzo abaixo um trecho desse diálogo para compreendermos melhor como Tillich lidava com essa questão:

PROFESSOR: Então se você tivesse um grupo que aceitasse os literalmente os símbolos, você iria falar a eles naquela linguagem, se possível. Mas uma vez que não é possível falar apenas para aqueles que estão em uma categoria ou outra, é inevitável que aqueles que aceitam o Cristianismo em um sentido fundamentalista e literal ouvirão e interpretarão mal uma parte do que está sendo dito?

TILLICH: Sim. Realmente este é o problema da pregação. Eu creio que seria muito difícil para você encontrar em meus sermões quaisquer declarações diretamente negativas, até mesmo contra o literalismo. Eu simplesmente me controlo nessa situação. Por exemplo, os relatos da ressurreição: eu não critico em meus sermões as histórias altamente poéticas da sepultura vazia, embora eu o fizesse em minha teologia e tenha criticado em meus livros. Mas eu falo o que aconteceu com Paulo e os outros apóstolos, como Paulo descreve isso em I Coríntios 15. Esse é um método de pregar que eu recomendaria para todos os sermões.

ALUNO: Dr. Tillich, este problema não me ocorreu até agora, mas desde que você o mencionou, eu não vejo como você poderia falar a um grupo de pessoas que aceita literalmente os simbolismos da Bíblia sem se conscientizar sobre a idolatria que é expressa em sua interpretação literal.

TILLICH: “Você tem razão. Minha resposta é muito simples: se eles perguntam, eu respondo. Se eles não perguntam e esperam que eu lhes dê ajuda e conforto em alguma situação da vida, como em funerais, então há aquelas grandes palavras de Paulo em I Coríntios 15:” Ó morte, onde está o seu aguilhão? Ó sepultura, onde está a sua vitória?”. Em tais circunstâncias a questão sobre literalismo e não literalismo não existe, porque nós temos o poder da palavra.·

Em outro diálogo reproduzido nesse livro, Tillich esclarece que se preocupa primeiramente com os ouvintes que estão em dúvida e questionam a validade dos símbolos cristãos, mas que reconhece haver também outros dois tipos de pessoas que o escutam: os que não questionam os símbolos cristãos (e quanto a esses Tillich diz ser sensível o suficiente para não se tornar uma pedra de tropeço à sua fé) e os que já passaram por esses dois estágios e sabem que, embora ele utilize a linguagem dos símbolos, não as interpreta de modo literal. Na mesma resposta, ele acrescenta que a atmosfera litúrgica na qual o sermão é pregado, não é apropriada para a discussão teológica e, mais à frente adverte que não se deve usar conceitos como “Fundamento do Ser” ou “Ser em si” na linguagem devocional:

TILLICH: Eu considero a situação daquelas pessoas que estão em dúvidas ou separadas ou em oposição a tudo que é eclesial e religioso, incluindo o Cristianismo. Tenho que falar a elas. Meu trabalho é com aqueles que questionam, e é por eles que estou aqui. Pelos outros que não questionam tenho o grande desafio de ser sensível… devido ao temor de me tornar uma pedra de tropeço para os novos crentes. Quando estou pregando um sermão – então estou bastante consciente do que estou fazendo – eu falo às pessoas que são inabaláveis em suas crenças e sua aceitação dos símbolos, em uma linguagem que não irá minar sua crença; e para aqueles que, de fato, estão em uma situação de dúvida e desespero. E espero falar também para um terceiro grupo, que já passou pelos dois estágios e agora está habilitado novamente a ouvir a mensagem, libertos das velhas dificuldades. Posso falar para essas pessoas, e elas são capazes de me entender, mesmo quando eu uso os antigos símbolos, porque eles sabem que não os uso em sentido literal… Liturgias têm uma atmosfera de santidade necessária, boa e muito importante para um culto devocional. Mas tal atmosfera não é apropriada a uma discussão teológica. [29]

            Para ser comunicativa e eficaz, a linguagem própria ao ambiente homilético, portanto, não pode ser a mesma dos textos acadêmicos. Pode causar surpresa a alguns imaginarem Tillich em um púlpito dizendo palavras e frases muito semelhantes a algumas que ouvimos em pregações de evangelistas televisivos: “Há algum lugar vazio em sua alma? Benditos são aqueles cujas mentes e corações estão abertos. Vamos manter nossos ouvidos e corações abertos. Há uma Palavra do Senhor, uma palavra para mim, aqui e agora; uma palavra para você e para nosso mundo.” [30]

2.3. A preocupação para com a relevância do cristianismo

Na conferência de 1963, Tillich identifica alguns sintomas da irrelevância da mensagem cristã em seu tempo, chamando a atenção para o problema da perda do poder original dos símbolos cristãos decorrente da confusão entre fé e crença. Fé, já sabemos, é o estado de ser tomado pelo último. A pessoa participa nesse estado com toda sua personalidade, incluindo os elementos teoréticos, práticos e emocionais. Nada tem a ver, portanto, com a aceitação de doutrinas. Aí reside, para Tillich, o problema central da linguagem cristã: a identificação do poder salvífico comunicado pelos símbolos cristãos com as doutrinas formuladas a partir dos mesmos. A “verdade cristã” não é a “verdade doutrinária”, mas a verdade que é o próprio Cristo enquanto portador e comunicador do Novo Ser. Isso é esclarecido de modo brilhante no sermão intitulado “O que é a verdade?”. Partindo da pergunta de Pilatos a Jesus (“o que é a verdade?”), Tillich busca no evangelho joanino alguns ditos de Jesus sobre a verdade, sempre apontando para Ele mesmo: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida… a verdade vos libertará” (João 14.6 e 8.32). Em um trecho do sermão ele vai dizer:

Jesus não é a verdade porque seu ensino seja verdadeiro. Mas seu ensino é verdadeiro porque expressa a verdade que é Ele mesmo. Ele é maior que suas palavras. Ele é maior que qualquer palavra sobre Ele. A verdade que nos faz livres não é o ensino de Jesus nem o ensino sobre Jesus. Aqueles que são chamados a ensinar a “verdade de Jesus” acabam por escravizar as pessoas à servidão de uma nova lei. São aqueles que aceitam Jesus como pregador infalível ou doador de uma nova lei. Os ensinos de Jesus não devem ser usados como uma coleção de prescrições infalíveis para a vida. Eles apontam a verdade, mas não são a verdade. Também não são as doutrinas sobre Ele que nos libertam. E eu lhes digo isso na condição de alguém que tem dedicado a vida e o trabalho em prol de uma verdadeira expressão da verdade que é Cristo… tudo o que aprendemos de nossos mestres e do ensino da Igreja em todas as gerações, não é a verdade que nos liberta. A Igreja muito cedo esqueceu a palavra do evangelho de que Ele é a verdade; e passou a confundir suas doutrinas sobre Ele com a verdade que Ele é. [31]

             Outros motivos da irrelevância da mensagem cristã hoje seriam a deformação do conteúdo da pregação cristã em moralismo ético, o ensino conformista das escolas dominicais, a falta de vitalidade, coragem, alegria e visão sacramental do mundo nos próprios líderes cristãos, o desinteresse da igreja para com os problemas sociais especialmente das classes oprimidas e a falta de paixão na liderança cristã, mais ocupada na preservação institucional. Ainda assim, Tillich manifesta profundo otimismo ao dizer: “A despeito de todas essas manifestações de irrelevância, há indivíduos para quem a mensagem crista continua sendo significativa”. E pergunta: “A mensagem cristã pode voltar a ser significativa? Eu acredito que é possível”. [32]

           Talvez seja a hora de inserir um pequeno parêntese sobre a aplicação do método da correlação à nossa situação hoje. Em sua época Tillich identificou no existencialismo a possibilidade de decifrar as entranhas de nossa civilização ocidental e utilizou vastamente a linguagem existencialista nos textos acadêmicos e nos sermões. Quase quarenta anos após sua morte, nosso desafio é outro. Higuet considerou oportunamente que “não podemos, enfim, esquecer-nos do fato que Tillich elaborou as questões e as respostas de uma situação diferente da nossa. Mesmo assim, é possível que no desencanto característico da nossa época em relação aos grandes projetos coletivos, as questões existenciais da alienação e da perda de sentido encontrem surpreendentemente uma nova relevância, vinculada aos sofrimentos e às opressões suportadas pelas grandes massas da humanidade”. [33] A frase de Higuet aponta para um conjunto de preocupações geradas pelo desencanto para com a modernidade que, por falta de melhor terminologia, vem sendo chamada “pós-modernidade”. Seria esse então o grande desafio para o primeiro momento do método da correlação: a compreensão de nossa situação em termos pós-modernos e a resposta cristã oferecida também em termos pós-modernos. Resta saber se a própria pós-modernidade aceita os termos nos quais o método da correlação foi elaborado, ou seja, num paradigma ainda “moderno”. A esta pergunta não tenho ainda uma resposta precisa.

3. O método da correlação na prática homilética e algumas considerações sobre “espiritualidade”

Tillich acreditava que as pessoas faziam perguntas sobre a natureza do ser em relação com suas próprias vidas. Sempre atento ao “espírito” de sua época, ele mesmo tendia a abordar nos sermões, questões sobre vida e morte; ansiedade ontológica e abandono. Coerente com seu método, Tillich nem sempre começava com o texto bíblico e sim com análises culturais da situação do mundo ou da congregação. As perícopes ou versículos nos quais baseia seus sermões são tomados como “inspiração” para um diálogo com a comunidade e há poucos indícios de algum esforço exegético nos textos bíblicos. Essa questão da hermenêutica bíblica foge aos propósitos deste trabalho embora seja bastante instigante e fica como um desafio ao pessoal que lida com hermenêutica bíblica.

Temos, ao todo, sessenta e três sermões publicados nos três livros. A grande maioria baseia-se no Novo Testamento, especialmente os evangelhos. Há onze sermões baseados no evangelho de João, dez em Mateus, cinco em Lucas e quatro no evangelho de Marcos. Dos textos paulinos, Tillich privilegia especialmente Romanos (oito sermões) e I Coríntios (sete vezes). O Antigo Testamento serve como base vinte e duas vezes, com especial predileção pelos profetas (seis sermões baseados em Isaías, quatro em Jeremias e um em Ezequiel) e os Salmos (oito sermões baseados nos Salmos). Não é possível, portanto, analisar um a um. Selecionei alguns que me pareceram mais relevantes para nosso propósito de buscar pistas sobre a linguagem homilética que não pode ser a mesma do ambiente acadêmico e também sobre o que costumeiramente chamamos “espiritualidade” ou “vida devocional”:

3.1. A situação humana – as marcas da alienação, as preocupações preliminares e a possibilidade de salvação.

            No segundo volume da Teologia Sistemática, Tillich discute as marcas da alienação humana e o conceito de pecado, lembrando que a palavra “alienação” não pode substituir “pecado” porque este termo expressa com mais agudeza o caráter pessoal da alienação, terminando por dizer que “a palavra ‘pecado’ pode e deve ser restaurada”. Verificamos que, no contexto litúrgico, ele evita o termo “alienação” e opta pelo uso do conceito teológico tradicional, reconhecendo que às vezes nos envergonhamos em usar essa palavra por sabermos o quanto ela foi distorcida. Ainda assim, afirma que não adianta amenizar o termo substituindo-o por um conceito menos agressivo como “fraqueza humana”. Essa argumentação está no sermão baseado em Romanos 7 (“o bem que quero, isso não faço”). Ali ele descreve “pecado” como um poder que repudiamos e, ao mesmo tempo aceitamos. Somos fascinados por ele e o obedecemos, embora saibamos que ele nos destruirá. Isso significa que “estamos fascinados por aquilo que pode nos destruir, e em certos momentos, acalentamos o desejo secreto que ele, de fato, nos destrua”, [34] o que gera culpa. Pecado é tomado no singular, como um poder que habita em nós, nos controla e nos faz agir como não desejamos.

            Uma das marcas da alienação humana é a perda da preocupação última em detrimento das preocupações preliminares. Ultimate Concern é um dos conceitos mais conhecidos de Tillich. Parece que o próprio Tillich nunca se satisfez com uma só definição desse conceito, pois faz várias tentativas de esclarece-lo na Teologia Sistemática e em outros textos. Em linhas gerais, designa aquilo que é incondicional, total, infinito, que não depende de condições de caráter, desejo ou circunstância e que opõe a toda preocupação preliminar ou finita. A palavra “preocupação” ou “interesse” aponta para o caráter existencial da experiência religiosa. É matéria de paixão e interesse infinitos. A preocupação última do ser humano é estruturante e seu objetivo na existência. Tillich encontra na narrativa de Lucas 10.38-42 (Marta e Maria), a possibilidade de esclarecer o conceito aos ouvintes. Sua analogia acompanha as interpretações tradicionais: Maria está preocupada com algo que é de caráter último, infinito, a presença de Jesus. A preocupação de Marta com os afazeres diários denota, por sua vez, ansiedade pela vida. Essa é a ponte para Tillich dizer que preocupamo-nos com nosso trabalho, com nossos relacionamentos e amizades, conosco mesmos, com nossa sobrevivência, com nosso país. Essas preocupações parciais são tirânicas porque exigem a totalidade de nossos corações, mentes e forças e tentam tomar o lugar da preocupação última. Maria torna-se modelo para a existência humana que reconhece a parcialidade e finitude de nossas preocupações diárias e que, diante da presença do Eterno, percebe que nada é mais importante que estar aos seus pés. [35]

            A ambigüidade humana é destacada também em outro sermão baseado no Salmo 8. Aqui há vários temas, entre eles a teologia da criação. Tillich fala da superioridade humana sobre outras formas de vida e da fraqueza e insignificância humana quando esse se depara com a grandeza do cosmos e da criação. Esse choque ontológico gera angústia. Nesse ponto, Tillich apela para o Cristo: “Há um homem em quem Deus encontrou sua imagem de forma não distorcida… – o Cristo – a terra, contaminada pelo homem, é purificada e consagrada através de um homem”. A resposta para o sentido da vida humana sobre a terra está em reconhecer o Eterno no tempo presente, onde o passado e o futuro se encontram: “Somente o eterno pode nos dar a certeza de que a terra e, com ela a humanidade, não têm existido em vão, mesmo que a história chegue a um fim amanhã. Pois o fim último está onde o primeiro início está, nEle, em quem um século é como um dia”. [36]

3.2. O agir de Deus: perdão, conforto e graça.

            A linguagem usada na Teologia Sistemática ou em A Coragem de Ser sobre Deus como “Fundamento do Ser” que transcende todo ser e a totalidade dos seres (a criação), “O Ser-em-Si”, além do contraste entre ser essencial e existencial ou “Deus-além-de-Deus” desaparece completamente nas homilias. Uma delas, baseada no Salmo 139, apresenta Deus em categorias muito semelhantes à idéia do Sagrado em Otto. Deus interpenetra tudo e não é possível evitar sua presença nem mesmo fugindo para o Sheol. Usando a linguagem bíblica, Tillich pergunta: “para onde me ausentarei do teu espírito?” e diz:

O homem que nunca tentou fugir de Deus é aquele que nunca teve a experiência do Deus que é realmente Deus. Quando falo de Deus, não me refiro aos muitos deuses de nossa própria criação, aos deuses com quem podemos viver com certa tranqüilidade. Não há nenhuma razão para fugir de um deus que é a imagem perfeita de todo que o homem considera bom em si mesmo. Por que fugir de um Deus assim? Por que fugir de um Deus que nos serve tão bem? Não, estas não são as imagens do verdadeiro Deus, mas sim as do homem que tenta fazer um Deus à sua própria imagem e para seu próprio consolo (…) Um deus a quem podemos suportar com facilidade, um deus de quem não temos que nos ocultar, um deus a quem nunca odiamos, um deus cuja destruição nunca tenhamos desejado, esses deuses, não são em absoluto Deus e não tem realidade alguma. [37]

            A consciência da diferença qualitativa entre Deus e o ser humano no estado de alienação (pecado) é fonte de culpa e tormento. Como vencer essa culpa? Somente pelo recebimento do perdão divino. Dois sermões tratam especificamente sobre esse tema e neles, Tillich esforça-se por apresentar uma mensagem positiva de consolo e esperança para os ouvintes. No primeiro, baseado em Filipenses 3.13 (“esquecendo-me das coisas que para traz ficam, avanço…”), Tillich afirma que só há um tipo de esquecimento capaz de nos libertar da culpa e do sofrimento: o arrependimento no sentido bíblico (voltar atrás, deixar o caminho errado e trilhar o rumo certo). Esse tipo de perdão é decisivo para nossa vida. Servindo-se da experiência de Paulo, ele afirma que só podemos prosseguir à frente porque nossa culpa é “eternamente perdoada”. Somente isso pode nos tranqüilizar frente ao que a linguagem bíblica chama “juízo final”. Aqui, ele sente a necessidade de explicar o sentido da expressão (juízo final):

a separação em nós – e em todas as coisas – daquilo que é verdadeiro e decisivo do que foi meramente transitório e vazio de significado último (…) Esse julgamento acontece todos os momentos em nossas vidas, mas o processo está oculto no tempo e se manifestará apenas na eternidade. Por isso é preciso empurrar para o passado e esquecer o que deve ser esquecido para sempre, e caminhar à frente, para aquilo que expressa nosso verdadeiro ser e que não será esquecido na eternidade. [38]

            O arrependimento que traz o perdão não é um ato sentimental de remorso perante más ações, mas um ato integral da pessoa, através do qual se experimenta espiritualmente a integração no momento presente daqueles elementos de bondade e retidão perdidos no passado. Desse modo, o sentido dos fatos passados pode ser mudado na experiência presente e o nome desse processo é perdão. Essa argumentação se encontra no sermão baseado em Apocalipse 21.6 (“Eu sou o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim”). É uma mensagem de consolo e orientação espiritual. A experiência do perdão tem a ver com a consciência espiritual da presença graciosa de Deus no momento presente, redimindo o passado e reunindo tudo com vistas à glorificação futura, ou a essencialização. O perdão assim compreendido tem um poder curador e apaziguador das ansiedades. Conforme Tillich, “pessoas que nunca estão conscientes do eterno, perdem a possibilidade de descansar no presente… Mas Aquele que Era e que há de vir, o começo e o fim, perdoa o passado e nos dá coragem para o que há de vir. Ele nos dá descanso em sua Presença Eterna”. [39]

            O perdão oferecido por Deus tem o efeito de produzir amor em quem é perdoado. Esse tema aparece no sermão baseado na perícope de Lucas 7.36-47 (a mulher pecadora que ungiu os pés de Jesus). A interpretação que Tillich dá ao dito de Jesus no versículo 47 é bastante original: “Não é o amor da mulher que traz seu perdão, mas é o perdão que ela recebe que cria seu amor. Jesus não perdoa a mulher. Ele declara que ela está perdoada”. A influência da teologia de Lutero é bastante explícita. Enquanto nos sentirmos rejeitados por Deus, não poderemos amá-lo. Ele aparece a nós como um poder opressor, como aquele que nos dá leis de acordo com seu prazer, que julga de acordo com seus mandamentos e que condena de acordo com sua vontade. Mas, diz ele, “aquele que ama a Deus é também capaz de aceitar a vida e amá-la… aquele que está reunido com Deus, o fundamento criativo da vida, o poder da vida em tudo o que vive, está reunido com a vida”. Assim, “ser perdoado e ser capaz de aceitar a si mesmo são a mesma coisa. Ninguém pode aceitar a si mesmo enquanto não sente que é aceito pelo poder da aceitação maior que ele”. Essa é a função do ministério cristão. “O perdão é maior experiência que alguém pode ter”. Isso não acontece freqüentemente, diz Tillich, mas quando acontece, “ela decide e transforma tudo”. [40]

            Através da iniciativa do perdão, Deus manifesta sua graça eterna para com o ser humano. A graça qualifica toda relação entre Deus e o ser humano. Procede de Deus e não depende do desejo das criaturas. A experiência da graça é a recepção do perdão no centro de uma personalidade. O amor divino em relação com uma criatura injusta é graça; é aceitação total por parte de Deus, do inaceitável. Como infusão do amor, graça é o poder que vence e reúne o que está separado por causa do pecado. Ela pode ser vista em dois aspectos: provê participação no ser de todas as coisas infundindo amor e plenificando o que está incompleto.

            Tillich também se preocupava em transmitir aos seus ouvintes palavras de esperança e conforto. Um dos sermões em que essa intenção está bastante explícita baseia-se nas famosas palavras de Paulo em Romanos 8.38-39 (“nada pode nos separar do amor de Deus”). Ele inicia a mensagem dizendo que essas palavras estão entre as mais poderosas já escritas e que em sua própria experiência pessoal essas palavras demonstram força e poder consoladores. Porém, o que as faz tão poderosas não é seu sentido literal, mas o fato de anunciarem que Cristo conquistou os poderes que governam o mundo. A partir daí, o quadro da vida em nossa sociedade é pintado em tons fortemente existencialistas, destacando a insegurança e a sujeição aos poderes impessoais que governam o mundo e que tentam nos afastar do amor de Deus. Esses poderes, chamados “anjos e principados” apontam para realidades que são simultaneamente gloriosas e terríveis; realidades plenas de beleza, mas também de destrutividade. Essas realidades estão em todos nós, em nossas famílias, em nossas nações, em nosso mundo e o sinal que a identifica é a mistura de “uma fascinação irresistível e a ansiedade inconquistável”. Por isso, “nenhuma segurança é garantida a ninguém; nem casa, nem trabalho, nem amigos, nem família, nem países – nada garante a salvação”. Mas é nesse momento que surge a adversativa: “apesar de…”, “a despeito disso…”, a mensagem cristã anuncia “a coragem de dizer sim à própria vida, a despeito das forças destrutivas, a despeito da insegurança da existência diária, a despeito das catástrofes da existência e da perda de sentido no mundo”. Ninguém compreende adequadamente a teologia de Tillich sem dar atenção a essa importante adversativa: “apesar de…”, “a despeito de…”. O tom confortador da mensagem de Tillich se torna mais forte quando ele fala da fé enquanto coragem de aceitar a vida em um poder maior que a vida, capaz de nos dar a certeza de que os poderes que dominam o mundo, ainda que possam destruir nossas vidas na existência, não podem destruir o sentido último de nossas vidas. Ao final, reproduzindo as palavras de Paulo, ele frisa que esse poder salvífico e vitorioso, está “em Jesus Cristo, nosso Senhor”. [41]

3.3. A Presença do Espírito no ser humano:

            Na mesma linha de mensagens direcionadas a oferecer palavras de conforto, segurança e paz em meio às dúvidas, temos dois sermões cujo foco central é a presença do Espírito de Deus no espírito humano. O primeiro, baseia-se no versículo: “O próprio Espírito testifica com nosso espírito que somos filhos de Deus”. Conforme Tillich, quando Paulo escreve essas palavras, está reconhecendo que nosso espírito é incapaz de nos dar segurança da filiação divina: “Nosso espírito, ou seja, nossa mente natural, nosso pensamento, nossa vontade, nossas emoções, a totalidade de nossa vida interior, não podem nos dar a certeza de que somos filhos de Deus”. Novamente temos a adversativa: “apesar disso”, o Espírito de Deus toma conta de nossa debilidade – “No momento em que nos sentimos separados de Deus, em que nossa vida carece de sentido e em que estamos condenados ao desespero, mesmo nesse momento não estamos sós”. [42]            

O mesmo tema volta a ser abordado com palavras mais diretas aos ouvintes no sermão “Presença Espiritual”, baseado em 2 Coríntios 3.5-6 (“… nossa suficiência vem de Deus que nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica”). Aqui sua pneumatologia é anunciada em palavras mais simples: “O Espírito não é uma substância misteriosa; não é uma parte de Deus. É Deus mesmo; mas não é Deus enquanto fundamento criador de todas as coisas e nem Deus dirigindo a história e manifestando-se a si mesmo num evento central; e sim Deus enquanto presente em comunidades e personalidades, tomando-as, inspirando-as e transformando-as”. Esse talvez seja um dos sermões em que mais transparece a base mística da teologia de Tillich. A influência do misticismo germânico lhe deu uma base cósmica capaz de temperar a racionalidade. De fato, quem lê esse sermão sem saber que é de Tillich, poderia dizer que é a mensagem de algum líder místico ou dos movimentos de renovação carismática. A declaração de Paulo de que “nossa suficiência vem de Deus” é a ponte para Tillich estabelecer um diálogo com os ouvintes com palavras bastante diretas:

Você pode dizer: ‘nunca esperimentei esse poder’… De fato o poder do Espírito pode provocar êxtase de um modo que nunca experimentamos. Pode nos conduzir a um tipo de auto-sacrifício que não estamos dispostos a fazer… pode nos inspirar a insights da profundidade do ser que permanecem inalcançáveis para a maioria de nós… mas onde está o Espírito, aí há uma possibilidade, ainda que mínima, de êxtase; um elemento, ainda que fraco, de consciência do mistério da existência. Mas o Espírito pode trabalhar de outras formas e em outros graus ou níveis – através de uma leve, mas insistente voz, fazendo-lhe ver que sua vida é vazia de significado, mas que há uma chance de nova vida esperando atrás da porta; o Espírito pode lhe dar a coragem de dizer sim à vida, a despeito da destrutividade que você experimenta em si mesmo e ao seu redor; o Espírito pode lhe fazer amar, com o amor divino, alguém que lhe desagrada profundamente, ou alguém em quem você não se interessa; o Espírito pode te libertar da inimizade oculta, pode lhe dar a vitória sobre a ansiedade e pode lhe dar um poder de orar que ninguém tem, exceto através da Presença Espiritual. (…) Você não pode forçar o Espírito sobre si mesmo… Podemos esperar por ele; podemos clamar por Ele; mas não podemos forçá-lo. [43]

3.4. Características da vida sob o Espírito: coragem, sabedoria e doação.

            Uma das características da vida sob o Espírito é a coragem de aceitar, pela fé, o paradoxo de nossa insuficiência ontológica, a insignificância e até mesmo o desespero: O ato de aceitar a insignificação é em si um ato significativo. É um ato de fé porque “no ato da coragem de ser, a potência do ser é efetiva em nós. Cada ato de coragem é uma manifestação do fundamento do ser”. [44] Dificilmente tal linguagem seria compreendida pelas pessoas que freqüentam igrejas e que não estão acostumadas ao vocabulário filosófico. Mas o tema é abordado num sermão, a partir das palavras de Paulo: “permanecei firmes na fé, fortalecei-vos. Todos os vossos atos sejam feitos em amor” (I Coríntios 16.13-14). Aqui, Tillich enfatiza a necessidade de aceitar nossa covardia, falta de fé e o fato de que não somos capazes de amar. Esse é o primeiro passo para tornar-se forte: aceitar a própria fraqueza. A recomendação bíblica – “permanecei firmes na fé” – não significa “permanecer firmes nas doutrinas cristãs”. Nesse sentido, é bastante coerente com as palavras do livro A Coragem de Ser: “A fé que cria a coragem para incorporar a dúvida e a insignificação não tem, em si, um conteúdo especial. É simplesmente fé, não dirigida, absoluta”. [45] Trata-se de “permanecer em algo que é mais forte que o universo físico, social e espiritual, algo que não pode ser abalado, porque todos os níveis do universo repousam nesse algo, seu fundamento divino. Permanecer nesse fundamento é, nas palavras de Paulo, permanecer na fé. Permanecer firmes na fé não é aderir a uma série de crenças; não requer de nós a supressão da dúvida. Ser forte, conforme Paulo, inclui coragem”. [46]

            A vida sob o Espírito também outorga sabedoria. Sabedoria, porém, não deve ser confundida com racionalidade. Tillich sempre diferenciou razão técnica de razão ontológica e nunca admitiu a redução da religiosidade aos limites da razão. O conhecimento outorgado pelo Espírito não é meramente “racional”. Por isso, ele prefere o termo bíblico “Sabedoria”, num sermão baseado em Provérbios 9.10 (“O temor do Senhor é o princípio da sabedoria”), enfatizando que ninguém se torna sábio sem um encontro com o Sagrado: “Sem a experiência com o mistério da vida, não há sabedoria”. [47]

Essa diferenciação entre sabedoria e racionalidade aparece novamente num sermão sobre a capacidade da autodoação, da entrega e da generosidade absolutas. Esse tema é desenvolvido a partir de Marcos 14.3-9 (o relato da mulher que unge Jesus em Betânia com perfume caro e é reprovada pelos discípulos). Em sua analogia, a mulher representa o elemento estático em nossa relação com Deus, enquanto os discípulos representam o elemento racional. Na interpretação de Tillich, Jesus repreendeu os discípulos porque viu o coração abundante da mulher e o aceitou sem analisar outros elementos. Ou seja, sem abundância de coração nada de grande pode acontecer. O Messias defende a mulher porque ele mesmo deveria perder a si mesmo para se tornar o Cristo. Aqui aparece de forma veemente a crítica a uma religião dentro dos limites da razão ou da razoabilidade. Para Tillich, essa “é uma religião mutilada” porque “amor calculado não é amor”. A linguagem direta surge novamente na parte final com um apelo aos ouvintes: “não reprima em você mesmo os impulsos a fazer o mesmo que a mulher de Betânia fez. Você será repreendido pelos discípulos de Jesus como a mulher foi. Mas Jesus estava ao lado dela e estará também ao seu lado”. [48]

3.5. Espiritualidade: O paradoxo da oração e o reconhecimento da presença de Deus em tudo através da ação de graças.

            A oração é parte tradicional da vida devocional cristã. Esse tema é abordado diretamente em pelo menos duas mensagens. A primeira, baseada em Romanos 8.26-27 (“não sabemos orar como convém, mas o Espírito intercede por nos com gemidos inexprimíveis… segundo a vontade de Deus”) inicia criticando a superficialidade das chamadas orações “espontânea” ou daquelas fixadas em formas litúrgicas. Se oração litúrgica corre o risco de tornar-se mecânica, a chamada “oração espontânea” tende a transformar Deus num interlocutor com quem se conversa para pedir favores, deteriorando o mistério da oração. Seguindo Paulo, Tillich afirma que é humanamente impossível orar: “Nunca devemos nos esquecer disso quando oramos: estamos fazendo algo humanamente impossível. Conversamos com alguém que não é simplesmente alguém ao lado de outros, mas que está mais perto de nós que nós mesmos, que nos conhece melhor que nós mesmos”. A solução para esse paradoxo é apresentada de forma misteriosa: o abismo entre nós e Deus só pode ser vencido por Deus mesmo e por isso é Deus mesmo quem ora em nós e através de nós. A afirmação “Deus mesmo em nós” é o que significa Espírito. Espírito é outra palavra para designar a “Presença de Deus” no ser humano. Tillich afirma ainda: “Porque a oração é humanamente impossível, ela nos leva a um nível profundo de consciência, algo acontece que não pode ser expresso com palavras. Palavras, criados por e usadas em nossa vida consciente, não são a essência da oração. A essência da oração é o ato de Deus que está agindo em nós e nos conduz à totalidade do seu próprio ser.” [49] Por isso é que a verdadeira oração pode ser encontrada em formas não especificamente religiosas, principalmente nas artes.

Um dos elementos da vida religiosa que melhor expressa a fé, a coragem da auto-aceitação “apesar de” e a esperança, é a gratidão. No sermão sobre gratidão baseado em I Tessalonicenses 5.16-17 (“Orai sem cessar. Em tudo dai graças…”) afirma que o sacrifício de ação de graças testemunha nossa transitoriedade e finitude e é importante para nos manter conscientes de que tudo vem de Deus. Tillich reconhece que “freqüentemente não sabemos como agradecer, mas que a abundância de um coração grato louva a Deus mesmo que não o faça através de palavras”. Nesse sermão ele serve-se de uma ilustração: “Perguntaram a alguém se ele orava e ele respondeu: ‘sempre e nunca’. Isso é estar consciente da presença divina, mesmo que raramente sejam usadas palavras de oração e gratidão para expressar essa consciência”. Desse modo, o imperativo “em tudo daí graças” não é uma ordem para se orar a toda hora, mas para estar consciente da presença de Deus em todas as situações e momentos da vida. Citando I Timóteo 4.4, Tillich lembra que dar graças tem a função de consagrar ou transferir algo que pertence ao mundo secular para esfera do santo. Por isso costumamos consagrar o alimento diário. É um ato devocional importante porque testemunha que “tudo o que é criado se torna portador da santidade. Podemos dar graças por tudo isso a despeito de nossa rejeição por aqueles que, sendo fanáticos ascetas e puritanos, blasfemam contra o Deus da criação. Tudo pelo qual agradecemos com boa consciência é consagrado a Deus por nossa oração”. [50]

3.6. A Salvação no presente: consciência da unidade última de todas as coisas em Deus.

Muitos já observaram que Tillich manifesta em seus textos um forte anseio por unidade. Higuet pergunta se nesse anseio não encontramos “o perigo do monismo emanentista, do panteísmo, o risco de apagar a distinção entre Deus, o mundo e a humanidade?”. [51] Esse “monismo” seria a crença de que tudo o que existe, tudo o que faz parte do mundo criado e da existência, está relacionado nas profundezas e participa da tragicidade existencial, mas também da salvação universal. De fato, algumas declarações de Tillich nos sermões reforçam tais suspeitas. Por exemplo, quando ele se pergunta sobre as injustiças sociais, as desigualdades e a miséria, afirma: “Não há resposta para tais questões na história. Apenas na unidade de todos os seres no tempo e na eternidade, pode haver uma resposta possível para a humanidade. Há uma unidade última de todas as coisas, enraizada na vida divina da qual emerge e para a qual retorna. Todos os seres, não humanos e humanos, participam nela. E assim participam uns nos outros. Quando nos tornamos conscientes dessa unidade de todas as

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