Autor: Jubal Neves
O Arcebispo de Cantuária, na década de 60 (D. Michael Ramsey), foi questionado por um jornalista a respeito do que nós, como anglicanos, defendemos e cremos, respondeu: -“Vem e reza (adora) conosco!” Na verdade, nós cremos o que rezamos e rezamos o que cremos (lex orandi, lex credendi).
Quem são vocês? Quem somos nós? A nossa identidade é o que nós somos e o que nós somos chamados a fazer (Is 29.13, Mt 15.8-9, Mc 7.6-7, Tg 1.17- 18, 22-27). Como cristãos é importante que conheçamos bem nossa identidade. E nossas ações falam mais alto que nossas palavras! (I Ts 1).
Não basta ser uma pessoa mística ou religiosa em geral. Pois que uma religiosidade indefinida é religiosidade nenhuma. A experiência religiosa resolvida é aquela que dá nomes, percebe os significados dos símbolos e gestos que utiliza – (como escreveu Gadamer, “o símbolo manifesta a presença de algo que está realmente presente”!) – e sabe em que e em quem acredita. Isso não pode e deve ser difícil para um cristão.
Em tempo de confusão, – (como nos diz o teólogo franciscano Luiz Carlos Susin – Família Cristã 10/98), – é necessário voltar à clareza das afirmações básicas que estão na raiz da experiência cristã: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14.9). O rosto de Deus, seus sentimentos e modo de agir estão tão transparentes em Jesus e se tornam tão familiares e cotidianos ao humano que podem até escandalizar (Os nazarenos tiveram dificuldade em aceitar que Deus se manifestasse no filho de uma vizinha que toda a aldeia conhecia; os judeus de Jerusalém desconfiaram de um profeta com sotaque interiorano da Galiléia; os gregos de Atenas, de Corinto e de Colossos, descendentes do helenismo filosófico, achavam loucura que Deus (a divindade) pudesse ser tocado na carne humana, que fosse cheio de compaixão e assumisse a mortalidade. Pelo Espírito Santo, reconhecemos Deus Pai e Mãe (Deus não tem sexo!) em Jesus Cristo que é Nosso Senhor, Caminho, Verdade e Vida (Jo 14.6). Esta jornada espiritual é muito simples e pode ser chocante também para nós, – a experiência de Deus (Jo 3.16) que se revela na face humana, onde a Palavra de Deus é critério, mas necessariamente envolve nossa experiência pessoal de Deus (e não individual, pois que envolve outras pessoas!), que é a nossa mística, a espiritualidade cristã. Como escreveu alguém, só faz sentido para mim o que for sentido por mim. E isso não é nada egocêntrico ou narcisista, mas profundamente solidário, fraterno e amoroso. O andar da espiritualidade tem o seu ponto de partida – disse Gustavo Gutierrez – “no encontro com o Senhor”. Todas as ciências perguntam pelo “como?” de um acontecimento, ficando desta forma no imanente. A pergunta teológica é pelo “quem?”. É uma pergunta pela transcendência, onde o ser humana pergunta pelo outro, por seus limites. Pergunta pelo outro ser, seu direito, sua necessidade, sua autoridade. É a pergunta do amor para com o próximo.
A espiritualidade cristã (cf. Dietrich Bonhoeffer) tem seu ponto de partida na preocupação pelo outro que se expressa nesta pergunta existencial que procura não dominar/oprimir o outro, mas escutar, receber, aceitar. Estar pronto a dar a vida pelo outro. Responsabilidade pessoal a partir do encontro com Cristo, nas suas pisadas! Aqui o sentido da comunidade! Como disse um poeta, “eu não me realizo na solidão, nem na multidão!” (Em Bonhoeffer, a espiritualidade cristã aparece como uma unidade entre a vida interior – tradicionalmente chamada de espiritualidade – e a ação política).
Espiritualidade e não espiritualismo. Em artigo na revista Família Cristã de março/98, o teólogo João Batista Libânio sublinha a verdade de que Espiritualismo nos fala do dualismo, da divisão, da separação; por sua vez, a espiritualidade fala da unidade, integração, do indivisível, do inseparável. São duas grandes linhas da espiritualidade, onde a bíblica é preferencialmente uma espiritualidade envolvendo a unidade de corpo e alma). A espiritualidade cristã (e bíblica) envolve igualmente nossa corporalidade e nossa alma. O ponto fundamental da espiritualidade é a presença do Espírito Santo (que opera a síntese).
O espiritualismo carrega em seu bojo uma prática de pedidos: se não rezamos, Deus não nos oferece suas graças! A espiritualidade cristã nos fala de ação de graças, intercessão, louvor, confissão, e petição.
Nesta compreensão se insere a nossa liturgia, onde a oração contínua não significa uma espera passiva, mas uma busca ativa de justiça (ora et labora). Penitência, louvor, perseverança, acolhida, atenção, ação de graças, alegria. missão e participação são palavras-chave.
Mas também é sobretudo chave o sentido da nossa liturgia, para não ser apenas rito! (A ação conjunta do Povo de Deus para celebrar a ação de graças em Jesus Cristo, pelo Espírito Santo). A liturgia começa com nossa caminhada para a igreja, quando deixamos os nossos lares para a reunião! Trazemos nossas ações de graça como resposta à graça de Deus. Somos uma oferenda. O que fazemos é oferenda! A liturgia diz e representa como viemos a existir, e para que existimos como igreja. E a liturgia continua, de forma contínua e inseparável, após o “Ide na paz de Cristo, sede…”(o envio), a missão, a outra liturgia. Tudo como parte da nossa espiritualidade, que para ser cristã tem que possuir em seu bojo a “Missio Dei.”.
Missão do ponto de vista anglicano
“As Cinco Marcas da Missão”: A missão da igreja é o trabalho de Cristo, a saber: proclamar as boas-novas do reino de Deus; ensinar, batizar e nutrir os novo fiéis; responder às necessidades humanas através de um serviço de amor; buscar transformar as estruturas injustas da sociedade; lutar para salvaguardar a integridade da criação, sustentando e renovando a vida da terra.
Estas cinco marcas dão aos anglicanos uma definição amplamente aceita de missão que tem nos ajudado a manter uma compreensão integral (holística) da missão nesta Década da Evangelização. Mas o Reverendo Michael McCoy, da Igtreja Anglicana da África do Sul, e meu companheiro de “Comissão Anglicana para a Missão” (Missio), nos faz alguns comentários sobre estas marcas, pilares, ou “balões”, em artigo publicado no início deste ano ( “Inter-Mission”):
1. Missão: anunciando o reino.
A primeira marca é realmente um resumo do que é a missão. Porque se baseia no próprio resumo que Jesus fez de sua missão (ver Mt 4.17; Mc 1.14-15; Lc 4.18 e 7.22; Jo3.14-17). Mas em virtude de ser a únicas marca explícita sobre proclamação, é facilmente equiparada com evangelização pessoal. Isso arrisca o rebaixamento das outras dimensões da missão, dando a impressão de que somente através da evangelização pessoal que nós proclamamos o reino de Deus. Também priva a proclamação de sua clara tendência para o lado dos pobres e marginalizados, deixando a impressão de que o evangelho não é contextual nem político. O próprio ensino e exemplo de Jesus, .entretanto, é que exorcismo, cura e libertação são indicativos do reino de Deus (ver Lc 7.22 novamente).
2. Missão contextualizada
As Cinco Marcas não nos apontam questões missiológicas como o diálogo com pessoas de outras fés, ou a relação entre evangelho e cultura. Estas são questões contextuais para as quais não há apenas uma única resposta. Mas uma abordagem anglicana da missão precisa nos alertar para a importância de tais questões, oferecendo-nos recursos para enfrentá-las. No Brasil, por exemplo, questões que hoje nos confrontam são com respeito a: (a) como acolhemos e apreciamos a espiritualidade da religiosidade afro-brasileira? (b) como reagimos frente ao individualismo emergente do neo-liberalismo e alimentado por idéias espiritualistas?
3. Missão como celebração
As Cinco Marcas não nos ajudam a apreciar a dimensão litúrgica (celebrativa) da missão, que se constitui num dos traços marcantes do jeito anglicano de ser cristão. A segunda marca menciona o catecismo (o processo educacional cristão) que é um importante recurso para o fazer discípulos e a nutrição cristã. Mas o todo da vida litúrgica do povo de Deus, especialmente a Eucaristia, é missionário. A despedida litúrgica ao final do rito eucarístico diz – “Ide na paz de Cristo, sede fortes e corajosos no testemunho do evangelho dentre todos, servi ao Senhor com alegria!” – explicita o desafio missionário que é tecido em todo o drama da reunião litúrgica para alimentar os peregrinos em sua caminhada. A compreensão anglicana de missão deixaria isso bem mais claro, se indicasse a liturgia que nutre, desafia e transforma o povo de Deus.
4. Missão como igreja
As Cinco Marcas Acentuam o fazer a missão, mas são menos explícitos em relação ao ser da missão. Nosso entendimento da missão deve indicar a natureza missionária da igreja; que missão não é simplesmente uma lista de atividades em que nos engajamos quando o tempo, a energia ou o dinheiro o permitem, mas um estilo de vida que tem sua própria espiritualidade; que a missão é fundamental para a vida e a resposta de vida da comunidade. Isso é uma das mais importantes aspectos que as igrejas do Sul têm a ensinar ao Norte, e acredito que a ausência de “ser missionário da igreja” nas cinco marcas são um reflexo do quanto elas são uma visão do Norte. Quem sabe uma visão muito ligada ainda à idéia de Cristandade.
5. Missão como Deus em ação
O ativismo que permeia as Cinco Marcas obscurece o discernimento fundamental de que a missão é nossa mas é de Deus (missio Dei). As marcas sugerem que a missão depende de nossa iniciativa e nossa ação, ao invés de se constituir antes em nossa resposta à iniciativa e ação de Deus. A Cristandade apenas percebe-se como o único agente da missão. Às vezes menciona a missão da igreja como se tratando de alguma coisa que realiza à sua própria discrição. A igreja emergente do novo milênio vê a si mesma como um sinal, instrumento e aperitivo do reino de Deus – uma comunidade que se deixa possuir pelo Deus que age.
6. Missão: não método, mas o significado
O principal problema das Cinco Marcas é que elas carecem de integração e coerência teológicas porque definem vários métodos de missão ao invés de definir a natureza fundamental da missão. Como, por exemplo, as marcas se relacionam mutuamente? Em princípio parece que elas podem aumentar em número na medida em que novas dimensões são detectadas ou descobertas, como aconteceu com a quinta marca no período entre 1984 e 1990. A Comunhão Anglicana deveria urgentemente buscar uma afirmação da natureza da missão que pode ser vivenciada em diferentes contextos de maneiras diferentes. Onde, então chegaríamos?
Além das Cinco Marcas
Uma opção é reformular as Cinco Marcas. E há um estudo visando isso no Departamento de Missão da Igreja Anglicana da Austrália:
Em missão todo o povo de Deus vive as boas-novas do reino de Deus na medida em que:
· testemunha entre todos o amor de Cristo que perdoa, salva e reconcilia;
· constitui comunidades acolhedoras, celebrativas e transformadoras;
· é solidário com os pobres e os necessitados;
· desafia a injustiça e a opressão;
· protege, cuida e renova a vida do nosso planeta.
Nesta forma as Cinco Marcas pelo menos ficam mais próximas da diversidade de possibilidade de formas da missão e se aproximam do próprio ministério de Jesus. Entretanto, minha preferência é partir numa direção diferente. Permitam que ofereça duas definições que ilustram a maneira que penso a Comunhão Anglicana deveria andar para expressar sua visão da missão em nossos dias. A primeira vem do livro de David Bosch, Transforming Mission (1991):
Missão são as boas-novas do amor de Deus, encarnadas no testemunho de uma unidade, por causa do mundo.
Nesta curta declaração encontramos unidos os três fundamentos básicos de uma teologia da missão, a saber, evangelho, igreja e contexto. É um bom ponto de partida. Os contextos são diversos, mas em todos eles o amor de Deus é para ser encarnado.
A beleza desta definição está no estabelecimento do caracter e natureza da missão sem detalhar as maneiras possíveis disso virar prática. Pelo contrário, oferece às igrejas locais a liberdade de discernir e formatar a missão em seu próprio contexto, trabalhando as questões de método, recursos, tempo, etc dentro de uma estrutura missiológica pré-estabelecida. Isso poderia ser bastante importante para nós, anglicanos, quando queremos falar da missão. Antes de buscar o provimento de uma definição exaustiva de tudo o que podemos fazer, sugiro que nossas energias sejam colocadas na procura por uma consenso a respeito de três pontos:
Missão em unidade
Necessitamos estar juntos e em acorde a respeito do caracter da missio Dei. Isso requer um novo compromisso com a missiologia como um campo de estudo, pesquisa e ação. Esta tarefa é prioritária para desenvolver nossos métodos de missão.
Missão em comunidade
Necessitamos concordar que a missão de Deus é a pedra fundamental de tudo o que nós somos, fazemos e dizemos como igreja. Quer dizer, missiologia é fundamental para uma eclesiologia para o terceiro milênio. Temos insistido numa eclesiologia baseada no paradigma da Cristandade, e por esta razão este ponto envolve uma mudança muito grande, e implicará numa re-descoberta da visão da igreja local como o sinal, instrumento e antecipação da missão de Deus através da igreja católica (universal, integral) em cada contexto.
Missão na diversidade
Necessitamos reconhecer que nosso compromisso com a missio Dei universal através da comunidade local do povo de Deus nos levará a uma enorme diversidade de modelos, estratégias e práticas de missão. Isso testará nossa unidade-na-diversidade. E certamente isso nos deixará nervosos, mas é a única maneira pela qual a missão será fielmente realizada no terceiro milênio, capacitando-nos a “ir em paz”, – isto é, a fazer a missão de Deus de maneira diferente um do outro, mas sempre com uma compreensão comum.
Ir em paz?
Talvez a melhor maneira de chegar a uma visão comum de “missão” não fosse tanto empenhar-se num debate teórico, mas ter tempo para ouvir as histórias uns dos outros a respeito da ação missionária de Deus entre nós, engajando-nos num diálogo onde o respeito e a cortesia sejam uma constante à medida em que ouvimos, discernimos e percebemos a ação do Espírito Santos nessas historias, e começamos a celebrar isso juntos. Essa jornada significa que, longe de esfacelar-se em partes, estaremos juntos como Comunhão Anglicana, onde a base de nossa vida comum será a missio Dei.
E, como bispo diocesano, espero que todos nós, irmãos e irmãs pela diocese afora, esta família que enfrenta tantas dificuldades financeiras mas ao mesmo tempo tão cheia de afeto, concordemos que podemos seguir a caminhada juntos na missão divina de levar a paz uns aos outros, a partir de uma espiritualidade muito profunda, o coração da nossa adoração, do nosso ministério e da nossa missão.
+ Jubal Neves
12° Encontro Diocesano de Mulheres UMEAB da Diocese Sul-Ocidental da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em Novembro/98, na cidade de Erechim/RS
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