Autor: Martin Weingaertner
A cada ano fiscais do Inmetro aferem as bombas dos postos de combustível. Com isto, visam garantir a exatidão da medida de litro usada. Procedimento semelhante é indispensável à Igreja! Ela não distribui combustíveis, mas “abastece” pessoas com o Evangelho. Em suas aferições o Inmetro recorre a uma medida padrão, a Igreja de Jesus Cristo, às Sagradas Escrituras! Continuamente ela precisa conferir seu ensino e suas práticas no Cânone Bíblico! Caso contrário, seu abastecimento ficará comprometido pelo desgaste do tempo ou corroído por interesses estranhos ao Evangelho.
Um assunto que as comunidades luteranas precisam submeter à aferição bíblica, é a recente Proposta de Regulamentação de Envio e Reenvio em estudo na IECLB. Nela propõe-se que as comunidades abram mão de seu centenário direito de escolher seus obreiros ordenados, direito que, aliás, já Martinho Lutero defendia como inalienável. A proposta ora em estudo delega o preenchimento de 50% das vagas ao Pastor Presidente e à sua assessoria. Da mesma forma propõe-se aos obreiros suspensão da sua liberdade de candidatar-se à vagas na mesma proporção.
A presente reflexão bíblica quer trazer alguns subsídios bíblicos para esta análise e debate deste assunto.
A LIBERDADE DAS IGREJAS
Ao sondar as Escrituras quanto à liberdade de uma comunidade de eleger seus obreiros e líderes logo deparamo-nos, no livro de Atos, com várias passagens que podem nortear-nos nesta reflexão.
Em Atos 6 nos é relatado que, em meio ao vertiginoso crescimento da igreja de Jerusalém, várias pessoas eram esquecidas na assistência dos pobres. Ainda que isto acontecesse nas barbas dos apóstolos, eles não se deram conta do problema antes do murmúrio tornar-se sonoro! Ao tomarem conhecimento deste descaso os apóstolos, de imediato, delegaram a tarefa da assistência dos necessitados, incumbindo a própria comunidade de escolher os diáconos para assumi-la.
Apesar de viverem numa época patriarcal e autoritária, a atitude dos apóstolos surpreende pelo seu caráter democrático. Eles não imitaram o Sinédrio do templo que impunha a sua visão, como, por exemplo, no envio de Saulo a Damasco (At 9, 1s.). Em vez de seguirem este modelo autoritário, os
apóstolos optaram pela via participativa e comunitária, propondo a eleição dos obreiros. Sua participação neste processo limitou-se a orientar a igreja acerca do perfil ético e espiritual adequado a esta função.
Mais tarde, na sua viagem pela Galácia, encontramos os missionários Paulo e Barnabé agindo da mesma forma (At 14.23)! Antes de regressarem à Antioquia eles visitaram as jovens igrejas, promovendo nelas a eleição de presbíteros (=pastores). Nas cartas a Timóteo e Tito também Paulo detalhou, para a Igreja de todos os tempos, critérios espirituais e éticos que devem orientar a escolha de suas lideranças.
Para entender a razão desta postura apostólica é necessário levar em conta dois fatores. O primeiro é um aspecto do contexto histórico da igreja primitiva. Quem lê Atos com atenção percebe que ela organizou-se, Império Romano afora, seguindo o modelo das sinagogas. Longe da hierarquia aristocrática do templo em Jerusalém, estas comunidades judaicas, há muito tempo, já ensaiavam procedimentos democráticos e participativos. O segundo fator a motivar os apóstolos é mais importante. Ele é decorrente da experiência de fé que tiveram. Eles provaram em Pentecostes (At 2) que não apenas eles, os apóstolos, mas que toda a igreja havia recebido o Espírito Santo. Esta dádiva divina integra cada cristão no sacerdócio real (1Pe 2.9; Ap 5.10) e, assim, capacita e incumbe-o de participar da missão Deus. Por isto, no entender dos apóstolos, a igreja reunida estava habilitada a eleger seus obreiros!
Como conclusão desta breve análise impõem-se duas perguntas:
1a Pode um grêmio eclesiástico privar uma comunidade local da liberdade de escolher o seu obreiro, sem insinuar que a esta falte o Espírito Santo para fazê-lo, ela mesma?
2a Pode uma comunidade que conhece as necessidades e os desafios da missão de Deus ao seu derredor abdicar da sua responsabilidade de orientar-se na vontade de Deus e delegar ao Pastor Presidente e à sua assessoria a decisão da escolha do seu obreiro?
O CHAMADO DOS OBREIROS
A questão do envio de obreiros, também merece uma reflexão bíblica no que tange ao próprio obreiro. Quanto a isto encontramos nas Sagradas Escrituras indicações muito claras para a nossa orientação:
Quando surgiu uma igreja em Antioquia, a comunidade de Jerusalém enviou para lá Barnabé (At 11.22). Foi nesta cidade que a evangelização propositadamente ultrapassou a fronteira étnica, de modo que pessoas sem costumes judeus passaram a integrar a igreja. Quando a notícia disto chegou a Jerusalém, Barnabé foi escolhido para assistir a estes cristãos. O fato de ele ser natural de Chipre o habilitava a entender e a inserir-se na cultura helenística daquela metrópole. Sua atuação sábia e ousada revelou que ele realmente tinha os dons necessários para o ministério naquela igreja.
Quando, dois anos mais tarde, Barnabé e Paulo foram enviados para a missão, não foram os apóstolos de Jerusalém, mas foi a igreja de Antioquia quem os enviou em obediência ao chamado do Senhor (At 13.2).
Um terceiro episódio relatado em Atos é o início da missão na Europa que se deu durante a segunda viagem missionária de Paulo. Em Trôade, Paulo numa visão, recebeu uma visão (At 16.6ss). Depois de compartilhá-la com os irmãos que o acompanhavam, todos concluíram que Deus os tinha chamado para … pregar o evangelho aos macedônios! Sem consultar ninguém mais, nem a Antioquia, nem a Jerusalém, eles iniciaram a missão no continente europeu, seguindo para Filipos na Grécia!
Vale lembrar ainda o envio de Apolo à igreja de Corinto. Atos relata que ele queria ir para lá e um casal de leigos(!), Priscila e Áquila, escreveu uma carta de recomendação aos irmãos daquela igreja (At 18.27). Mais tarde o próprio apóstolo Paulo, endossaria o ministério deste pregador, ao escrever Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem faz crescer(1Co 3.6)
Nos quatro casos fica evidente que a percepção do chamado de Deus pelo próprio obreiro é indispensável para o seu envio! Todos foram enviados para onde Deus os chamou! E, da história do profeta Jonas, sabemos que, quem ignora o chamado divino, incorre em juízo.
Assim perguntamos, se o chamado pessoal e intransferível de Deus não deve ser o critério elementar para um obreiro nas decisões sobre os rumos do exercício do seu ministério? Pode ele abrir mão da liberdade que o evangelho lhe confere?
O ESTILO DA LIDERANÇA CRISTÃ
Por fim ainda precisamos conferir, se a Bíblia dá sustentação à aglutinação de poder de decisão que a Proposta de Regulamentação de Envio e Reenvio pretende dar à presidência da IECLB e à Comissão de Designação e Envio que o assessora.
Para tanto precisamos olhar para o retrato que o Novo Testamento faz da maneira como os apóstolos em Jerusalém e, mais tarde, o apóstolo Paulo, exerceram sua liderança na igreja!
Nos relatos de Atos fica claro que os apóstolos não gerenciaram a igreja. Eles também não tinham uma visão do todo da obra de Deus! Isto fica evidente, por exemplo, na missão na Samaria (At 8.1ss) que não foi nem planejada, nem iniciada ou coordenada pelos apóstolos. Pelo contrário, esta iniciativa deveu-se ao segmento da comunidade que foi perseguido depois da morte de Estêvão. Também o surgimento da igreja em Antioquia e a missão entre os gentios, nascida naquela igreja, não estavam sujeitas à liderança de Jerusalém.
Os apóstolos enviaram, sim, Pedro e João para dar amparo espiritual aos cristãos espalhados pela Samaria, mas não para lhes impor lideranças. Mais tarde delegaram a Barnabé a tarefa de construir vínculos fraternais com a igreja em Antioquia, tarefa esta para a qual os próprios apóstolos não estavam preparados (cf. Gl 2.11ss). E, quando, mais tarde, a missão entre os gentios gerou tensões eles convocaram o Concílio dos Apóstolos para tratar do assunto diante da igreja reunida (At 15; Gl 2.1ss).
Nestas atitudes percebe-se que os apóstolos não detinham nem a estratégia da missão, nem exerciam o controle da igreja. Na verdade, eles nem almejavam isto, porque entendiam que Jesus Cristo é o Senhor que dirige a sua igreja. Em vista disto eles exerciam uma liderança que corre atrás, constrói vínculos, viabiliza caminhos de aceitação fraternal e deixa-se corrigir, sem ingerir no crescimento natural da igreja.
Aos nossos olhos a posição deles parece frágil. Mas os apóstolos, de modo algum, queriam ser poderosos. Por ordem de Jesus eles jamais poderiam ser confundidos com os que governam e dominam as nações (Mc 10.42). E, realmente, contrasta com os poderosos de todos os tempos que os líderes da igreja primitiva preferiram dedicar-se à oração e ao ministério da palavra (At 6.4).
Também o apóstolo Paulo enquadrou-se neste perfil de líder fraco no ministério que exerceu nas igrejas que fundou (1 Co 4.10; 2 Co 10.10; 12.10). Suas interferências nunca foram executivas ou impositivas! Pelo contrário, em suas cartas, ele dialogou com as igrejas. Explicava, argumentava, convencia, pedia e, até implorava com muitas lágrimas (2 Co 2.4). Também Paulo não recorre a ordens de comando para não ferir a subordinação e acesso diretos da respectiva comunidade ao Senhor. Isto valeu até para a tão problemática igreja de Corinto!
Assim cabe perguntar, se a IECLB pode atribuir à sua presidência a amplitude de direito de decisão pretendida pela Proposta de Regulamentação de Envio e Reenvio, sem descaracterizar o estilo de liderança fraca preconizado nas Escrituras e, com isto, negar o Senhorio direto de Jesus Cristo sobre cada comunidade?
* Diretor da FATEV – Versão Junho 2004
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