Autor: Carlos Mesters
Aqueles dois discípulos de Jesus, Cléofas e o seu colega, que seguiam pela estrada, em direcção a Emaús (Lucas 24, 13 – 35),
eram a expressão daquilo que se passou na vida dos apóstolos, depois que Jesus morreu.Eram, ao mesmo tempo, expressão daquilo que se passava na vida dos cristãos que andavam pela estrada da vida, no tempo em que Lucas escrevia este episódio no seu evangelho: gente perseguida, sem saberem colocar na sua vida a fé na ressurreição, pois a morte matava neles a esperança, e já não encontravam o Cristo vivo no qual acreditavam. São ainda a expressão daquilo que se passa na vida de muitos, hoje em dia.
«Nós esperávamos que Ele fosse o Libertador, mas hoje já é o terceiro dia…» (Lc. 24, 21). Essa foi a queixa amarga dos dois. Com a morte de Jesus, morreu algo na vida dos apóstolos, algo de fundamental importância. A vida, para eles, já não tinha sentido. Anteriormente, crescera neles uma tal união de vida com Jesus, que já não podiam conceber a vida sem Ele (cf. João 6, 68-69). Estavam dispostos a morrer com Ele (João 11, 16), a sofrer por Ele (cf. Mc. 10, 38-39), a morrer por Ele (cf. Mc. 14, 31, pois, sem Ele, tudo perderia o seu sentido. Por amor a Ele, tinham abandonado tudo o que possuíam (cf. Mc. 10, 28). Jesus tornara-se o eixo na roda da vida dos apóstolos.
A morte de Jesus foi a quebra do eixo. Ela impôs-se, tragicamente, como uma barreira intransponível, entre a situação presente e o ideal do futuro que tinham alimentado. Era melhor sair de Jerusalém (cf. Lc. 24, 13) e voltar, cada qual, para o seu canto e o seu trabalho (cf. João 21, 3). Nada feito. Foi uma ilusão, uma utopia, uma alienação, a de terem acreditado nesse Jesus e na mensagem que pregou. Agora, «já era o terceiro dia… » A Sua morte fê-los voltar ao chão duro da realidade.
Por outro lado , uma vez que o véu do futuro fora levantado e que haviam tido a ocasião de entrever as enormes possibilidades da vida humana, durante os três anos de convivência com Jesus, o desejo ficou. Depois que esse futuro se fechou, com a morte de Jesus, a realidade parecia mais escura do que antes. Um outro futuro já não os atraía. A morte destruiu todos os anseios e matou, radicalmente, qualquer tentativa de futuro.
E essa morte, não era só a cruz. Era toda uma situação que se encontrava na cruz e que conduzia à cruz a quem quisesse seguir pelo caminho de Cristo. As forças da morte estavam mais vivas do que nunca: o imperialismo romano, que com uma única palavra ratificou a condenação à morte; os soldados, que executaram a sentença do governador Pilatos, sem que houvesse possibilidade de impedi-los; os escribas, que com ela se alegraram; os faríseus e o farisaísmo, que a provocaram, manipulando a opinião pública; a mentalidade flutuante do povo, e tantos outros factores. Tudo isto contribuiu e se uniu, como uma força única, contra Jesus (cf. Act. 4, 24-28) e conseguiu vencê-lo. Matando Cristo, mataram o futuro no coração dos apóstolos. A morte estava personificada nessa situação, como uma força horrenda, ameaçando qualquer tentativa que os apóstolos fizessem, para continuar a fazer o que Jesus fazia. Acabou-se tudo. As sombras da morte instalaram-se na vida, impedindo a esperança e ameaçando oprimir tudo e todos.
Os apóstolos ficaram com medo, diante dessa força, e fugiram (Mc. 14, 50-52). Trancaram até as portas da casa (João 20, 19). Com esses homens apavorados, ninguém mais podia contar para nada. Foram derrotados pela realidade que os esmagava.
A morte de Jesus matou algo nos apóstolos, como a morte do marido mata algo na esposa que fica, a morte do amigo mata algo no amigo. Os apóstolos estavam mais mortos do que o próprio Cristo. Estancou-se a fonte, a água acabou. Destruíram a central eléctrica, a luz apagou-se.
Essa era também a situação dos cristãos, que andavam pela estrada da vida, cerca do ano 75, tempo em que Lucas escrevia o seu evangelho. Uma grande frustração lhes enchia o coração. Por algum tempo, tinham acreditado em Jesus Cristo. Dizia-se que Ele estava vivo, no meio da comunidade. Ele teria obtido a vitória sobre a morte, e quem n’Ele acreditasse participava dessa força vitoriosa sobre a morte. Mas onde é que Ele estava? Onde estava essa vitória? O Império Romano continuava a perseguir os que em Cristo acreditavam. Não permitia que os cristãos abrissem uma nova estrada para o futuro, dando um novo sentido à vida humana. Os cristãos estavam a morrer, como criminosos comuns, nas prisões e na arena. Onde estava Cristo? «Esperávamos que Ele fosse o Libertador, mas agora … ». Uma barreira intransponível interpunha-se entre a realidade e o futuro. A morte, personificada nas estruturas do Império Romano, matava a esperança no coração dos cristãos. Adiantava continuar a crer?
Assim, também hoje, muita gente anda pela estrada da vida: gente sem muita esperança, derrotada pela realidade que esmaga, que mata a esperança e destrói o futuro. Forças, diante das quais o indivíduo se sente impotente, que não consegue dominar e que o superam de longe, mantêm a vida presa, sem condições de expandir-se. Parecem querer levar a humanidade inteira para uma total escravização. Qual o indivíduo que pode algo contra o poder económico, contra o poder da propaganda e da opinião pública, contra o poder da ideologia e do estado totalitário, contra o poder da mentalidade flutuante do povo, contra o poder da moda e das convenções sociais, contra o poder da ironia e do sarcasmo, contra o poder da organização que concede privilégios a uns e marginaliza outros, contra o poder da mística do desenvolvimento, que por vezes parece contraditório? Tudo é feito para o Homem. «O Homem é a meta», assim se diz. Mas no coração do homem, morre a esperança, tantas são as barreiras e os limites com os quais se defronta na vida, tanto pessoal e familiar como social e internacional. Cresce a consciência, mas cresce o torpor, ao mesmo tempo. Cresce a multidão, mas aumenta o vazio, o desespero e a solidão. À medida que aumenta o poder das águas, aumenta também a resistência da represa que tenta dominá-las. São esses e outros, hoje, os postos avançados da morte que estende os seus braços sobre a vida, cobrindo tudo com o véu do luto e ameaçando oprimir tudo. Não temos meios para enfrentar tudo isto. A morte, essa morte personificada na situação, supera-nos. No horizonte apaga-se a última lâmpada que ainda brilhava. Cada um arranja-se como pode, para não ser tragado pelo nada e pela frustração total. Procura um lugarzinho ao sol. Muitos desacreditam de tudo e de todos. Consideram ridículas e infantis as tímidas iniciativas que se fazem para romper o círculo férreo no qual a vida morre asfixiada. Acomodam-se e tornam-se escravos satisfeitos, contentes e tranquilos, fechados numa gaiola de ouro, mas sem consciência. Voltou hoje, em nível mais elevado e mais civilizado, a antiga «luta pela vida». Sobreviver, custe o que custar… Adianta ainda continuar a crer em alguma coisa? …
Mas – e aqui está a absoluta novidade da ressurreição – no terceiro dia, após a morte de Jesus, aqueles onze homens tiveram a experiência certa e inconfundível de que Jesus estava vivo (Lc. 24, 5-34). Era Ele mesmo, Jesus, com o qual tinham convivido durante três anos (Act. 10, 40-41). As aparições confirmavam-no (Mc. 16, 9-14; l Cor. 15, 1-4). Era Ele mesmo. Jesus transpôs uma barreira que jamais homem algum tinha transposto. Este Cristo vitorioso sobre a morte estava agora com eles, amigo deles. Era a própria evidência, embora tivessem tido alguma dificuldade em acreditar logo nesse acontecimento novo e inesperado (Lc. 24, 10-11. 37-43; João 20, 25).
Agora já não havia razão para se sentirem derrotados diante da realidade. Eles também ressuscitaram. O véu do futuro abriu-se de novo, para nunca mais se fechar. Uma nova esperança nasceu. Uma nova força entrou na vida deles, a força de Deus, força tão grande que conseguia tirar a vida da morte (Ef. 1, 19-20). Força ligada à pessoa viva de Jesus Cristo, invisível em si mesma, mas visível nos seus efeitos. Força mais forte do que tudo aquilo que antes matava neles a esperança. Todas aquelas barreiras que impediam a vida e que matavam a esperança, tudo aquilo foi vencido: a força do Imperialismo Romano, do farisaísmo, da opinião pública, da mentalidade flutuante do povo. As forças da morte foram derrotadas. A guerra já estava vencida, embora a batalha continuasse ainda. Era apenas questão de tempo. Nada mais podia amedrontá-los: enfrentavam o povo, os judeus, o sinédrio, os romanos, os fariseus, a tortura, a prisão (cf. Act. 2, 14; 4, 8.19.23-31; 5, 29.41; etc). A vida que neles nascera, já transpusera a morte, já era vida nova e vitoriosa (cf. Ef. 2, 6). Mesmo que tivessem de sucumbir sob os golpes da morte, a vida nunca mais morria (cf. l Cor. 15, 54-58). Agora tinha sentido resistir, não se conformar à situação e agir para a transformar.
Mesmo assim, os cristãos, andando pela estrada da vida, perseguidos pelo Império Romano, levantavam a pergunta: «Mas onde encontrar esse Cristo vivo, onde descobrir essa força que Ele comunica?». Lucas responde, contando o episódio dos dois senhores, que caminhavam pela estrada, em direcção a Emaús. Estes descobriram Cristo e «reconheceram-n’O ao partir o pão» (Lc. 24, 35). É na hora em que os cristãos se reúnem, em torno da Eucaristia, onde o pão é partido e distribuído, onde celebram e tornam presente a morte e a ressurreição do Senhor (I Cor. 11, 26), é lá que está a fonte de onde nasce, ou devia nascer, essa água nova que pode irrigar a árvore da vida e torná-la capaz de produzir frutos. Essa convivência em torno da mesa é que abre os olhos (Lc. 24, 31) e faz perceber a voz de Cristo, seja na palavra da Bíblia (Lc. 24, 32), seja no companheiro anónimo que nos acompanha, na estrada da vida (Lc. 24, 15-16. 35).
Lucas aponta estes três canais de comunicação com Cristo e com a sua força: o irmão ao nosso lado, a Palavra de Deus e a reunião de amigos em torno da mesma fé e do mesmo ideal, na Eucaristia… Usando esses três meios, os cristãos encontrarão modos de vencer a crise e redescobrir, na sua vida, o sentido da sua fé na ressurreição, ou seja, da sua fé em Cristo, vivo no meio deles. Crer na ressurreição não é só aceitar um facto do passado e um outro do futuro, mas é, antes de tudo, uma atitude de vida, que nasce com a descoberta de um amigo, vivo na vida, graças ao poder de Deus…
Crer na Ressurreição, portanto, é crer, não numa coisa, não em argumentos, mas é crer em Alguém, que actua em nós e por nós, com poder imenso, capaz de tirar a vida da morte e de fazer com que o que é velho se torne novo, orientando-nos para um futuro de grandes dimensões.
Crer na Ressurreição quer dizer: transpor, desde já, pela esperança, que antecipa o futuro, os limites que foram transpostos ou rompidos pela ressurreição de Jesus crucificado. Nenhum limite, nenhuma barreira, nenhuma dificuldade, nada neste mundo, será capaz de matar a vida e a esperança, que assim nasceram no coração do homem.
Crer na Ressurreição nada tem a ver com fuga ou alienação do mundo para o além-morte ou com um cristalizar-se em torno de um facto do passado que já se foi. O objecto da fé na Ressurreição não é colocado nem na eternidade do céu, nem na impenetrabilidade do passado, mas no futuro da terra sobra a qual foi fixada e está fincada até hoje a cruz de Cristo. O facto do passado, testemunhado pelos Apóstolos, é o fundamento. Mas sobre este fundamento está o prédio da vida que não morre e que renasce das cinzas da morte, antecipando o novo que aparece sob as mãos dos que nela acreditam…
O ponto chave da fé na Ressurreição é o homem descobrir na sua vida esta força actual e permanente de Deus que é um Deus dos vivos. Só assim o homem ressuscita e, ressuscitando, perceberá o alcance da sua fé na Ressurreição. Não serão os argumentos científicos que darão valor à fé na Ressurreição, mas será a experiência concreta da Ressurreição que dará valor aos argumentos que em defesa da mesma encontrarmos. A única prova verdadeira da Ressurreição que convence, é a vida que hoje ressuscita e se renova, que hoje vence as forças da morte, fazendo com que as forças represadas e oprimidas da vida sejam descobertas e libertadas para alegria e esperança de todos. Esse é o comprovante de que, no homem, actua uma força mais forte do que a morte, a força de Cristo Ressuscitado…