Autor: Ricardo Wesley M. Borges
Encontro de Obreiros – Junho de 96 – (Cap. 1 de “Vida em Comunhão”, Dietrich Bonhoeffer)
I. Somos chamados a sermos peregrinos
Interessante que o texto começa, antes de falar qualquer coisa da comunhão entre os cristãos, dizendo que não é para a comunhão que fomos chamados, .
“Não é natural para o cristão poder viver entre cristãos”
“…o lugar do crente não é a reclusão da vida monacal, mas em meio aos inimigos”
“Viverá o povo de Deus em terras estranhas, entre os descrentes; no entanto, será a semente do Reino de Deus em todo mundo”
Vivendo dispersos no meio dos inimigos, estando no front da batalha, não nos esquecemos de nosso chamado e missão. Assim deve ser com o corpo de Cristo, assim deve ser com um movimento como a ABU quando se fala sobre a importância de comunhão, nunca se esquecendo da necessidade de inserção em nosso campo de missão, nunca confundindo indicativo com imperativo. Ou seja, não se trata de felicitar a nós mesmos porque somos luz, mas sempre obedecer ao imperativo de que devemos ser luz, onde ela precisar brilhar e iluminar.
II. A comunhão se dá pela graça
“É graça de Deus uma comunidade poder reunir-se nesse mundo, de maneira visível, em torno da Palavra de Deus e dos sacramentos”
“Para o crente, a presença física de outros cristãos se lhe constitui em fonte de alegria e fortalecimento incomparáveis”
“Não é vergonhoso quando o crente é assaltado de saudade da companhia de outros cristãos, como se isso fosse sinal de viver ainda por demais na carne”
Bonhoeffer vai contra uma má compreensão e exageros da tradição monástica, quando essa enfatiza demasiado o afastamento e a solitude. Certamente não concorda com exageros como o capítulo do livro “Imitação de Cristo” entitulado “Como se deve evitar a excessiva familiaridade”. Entre os seus conselhos para os monges há: “Não sejas familiar com mulher alguma(…). Deseja intimidade com Deus somente e com os seus anjos e evita ser conhecido dos homens. Devemos ter caridade para com todos, mas a familiaridade não convém.”
“Corre-se o perigo de esquecer que a comunhão dos irmãos crentes é um presente gracioso procedente do reino de Deus, presente esse que nos pode ser tirado a qualquer hora, que talvez um prazo muito curto nos separa da mais profunda solidão. Por isso, quem até hoje pode viver em comunhão cristã com outros crentes, esse louve a graça de Deus do fundo do coração, agradeça a Deus de joelhos e reconheça: é graça, nada mais do que graça o fato de ainda podermos gozar a comunhão de irmãos crentes”
Aqui, em 1938, cerca de 5 anos antes de ser preso pelo regime alemão, suas palavras são quase que proféticas, infelizmente, a respeito dele mesmo. As cartas registradas no livro “Resistência e Submissão” relatam seu drama nesse período, “É interessante como nessas horas noturnas os pensamentos vão, exclusivamente, para junto daquelas pessoas sem as quais não se deseja viver(…). É então que se sente o quanto a própria vida se acha entrelaçada com a vida de outras pessoas e como o centro da própria vida se desloca para fora da existência pessoal e quão pouco o homem, realmente, constitui um mero indivíduo”. E no sofrimento e na privação ele ainda é capaz de escrever palavras sábias, “importa que a pessoa saiba conservar aquilo que ainda pode ter – e isto sempre ainda é bastante – ao mesmo tempo se deve impedir o surto de pensamento naquilo que não se pode ter e o rancor sobre a situação e a inquietude geral”
III. A Comunhão se dá através da Palavra de Cristo que nos vêm pelos irmãos
“O crente vive inteiramente da verdade da Palavra de Deus em Jesus Cristo”
“Essa Palavra, porém, Deus a pôs na boca de homens, para que circule entre os homens.(…) Por essa razão o cristão precisa do cristão que lhe diga a Palavra de Deus, precisa dele sempre de novo quando a incerteza e o desânimo o assediam”
Aí se realça a importância do princípio hermenêutico que diz que a Bíblia deve ser lida, entendida e vivida na comunidade da fé. Uma leitura isolada, individual, nunca é completa. As verdades vêm quando nos edificamos uns aos outros. E como essas verdades são importantes de serem ditas e repetidas quando a “incerteza e o desânimo” atingem alguns.
IV. A Comunhão se dá através da mediação de Jesus Cristo
“O cristão pode chegar a outro cristão somente por meio de Jesus Cristo”
“Sem Cristo reina inimizade entre Deus e os homens e entre homens e homens“
“Sem Cristo não conheceríamos a Deus, não poderíamos invocá-lo nem vir a ele. Sem Cristo também não conheceríamos o irmão nem poderíamos ir ter com ele”
Que sem Cristo não conheceríamos a Deus é algo que faz parte do senso comum do cristão. Mas que sem Cristo também não conhecemos o irmão é algo que nos pode soar pouco familiar. Essa ênfase radical na necessária mediação de Jesus Cristo é marca característica de Bonhoeffer. Na obra “Discipulado”, ele escreve a respeito de Jesus, “Ele quer ser o mediador e tudo há que se processar através dele. Não se coloca apenas entre mim e Deus, mas está igualmente entre mim e o mundo, entre mim e os outros homens e coisas. Ele é o Mediador, e isso não somente entre Deus e os homens, mas também entre homem e homem, e entre o homem e a realidade. Por todo o mundo ter sido criado através dele e para ele (Jo.1:3; 1 Co.8:6; Hb.1:2), é ele o único Mediador do mundo inteiro.(…) Todas as nossas tentativas para lançar uma ponte sobre o abismo que nos separa dos outros, de vencer, por meio de laços naturais ou da alma, a distância intransponível, o caráter diferente e estranho dos outros homens, todas essas tentativas têm que falhar. Não há um caminho próprio de homem para homem. A mais amável tentativa de compreensão, a psicologia mais sofisticada, a franqueza mais natural, não conduzem ao outro; não há qualquer relação imediata entre as almas. Cristo é Mediador, e somente através dele é que há caminho para o próximo. Por isso: a intercessão é o caminho mais promissor para chegarmos aos outros, e a oração conjunta em nome de Cristo constitui a mais genuína comunhão”.
V. A Comunhão não é um ideal, mas uma realidade
“A fraternidade cristã está ameaçada, quase sempre logo desde o início, pelo perigo maior, pelo envenenamento mais íntimo: confundir fraternidade cristã com um ideal de comunhão piedosa”
“Vezes sem conta comunhões cristãs faliram porque viviam de um ideal. Justamente o cristão sério que se vê colocado pela primeira vez numa comunhão de vida cristã, trará em sua bagagem muitas vezes uma idéia bem definida de como deve ser a vida cristã em comum, e se empenhará por realizar essa idéia. No entanto, é a graça de Deus que logo levará tais sonhos ao fracasso. A grande desilusão com os outros, com os cristãos em geral e, se tudo correr bem, também conosco mesmos, há de nos vencer tão certo como Deus quer levar-nos ao conhecimento de comunhão cristã autêntica”
Como temos capitalizado as desilusões que sofremos com as nossas distâncias geográficas, com as nossas dificuldades de comunicação? O que temos aprendido quando os nossos sonhos particulares do que deve ser uma vida cristã comum dentro do movimento se esboroam e se perdem?
“Somente a comunhão que passa pela grande desilusão com os seus aspectos desagradáveis e maus, começa a ser o que deve ser diante de Deus(…). Quanto mais cedo o indivíduo e a comunidade sentirem essa desilusão, tanto melhor para ambos”
“Não entramos na comunhão de outros crentes com exigências, mas com gratidão e como agraciados”
“Somente quem dá graças pelas coisas pequenas recebe também as grandes”
“Como poderia Deus confiar grandes coisas àqueles que não querem receber gratos de sua mão as coisas pequenas? Se não agradecemos todos os dias pela comunhão cristã em que estamos colocados, também ali onde não há grandes experiências, nenhuma riqueza palpável, mas muita fraqueza, pequenez de fé e dificuldades; se outra coisa não fazemos que nos lamentar perante Deus por tudo ser ainda tão miserável e pobre, tão longe do que havíamos esperado, então impedimos a Deus de fazer crescer nossa comunhão segundo a medida e riqueza à disposição de todos em Jesus Cristo”
Que desafio é superar uma postura de lamento pelas dificuldades para uma atitude de gratidão pelas coisas, mesmo as mais pequenas, quem tem acontecido em nossas vidas, pelas nossas vidas e através de nossas vidas na bonita história do que Deus tem feito ao longo de muitos anos nesse movimento.
“Fraternidade cristã não é um ideal que nós devêssemos realizar. Ela é uma realidade criada por Deus em Cristo, e nós podemos ter parte nela”
“Nada mais fácil do que provocar o êxtase da comunhão em alguns poucos dias de vida em comunhão, e nada mais funesto do que isso para a comunhão de vida fraternal sadia e sóbria no dia-a-dia.
Provavelmente não existe cristão a quem Deus não tenha dado pelo menos uma vez em sua vida a sublime experiência de comunhão cristã autêntica. Nesse mundo, porém, semelhante experiência não passa de um gracioso adicional ao pão de cada dia da vida em comunhão cristã. Não temos direito de exigir tais experiências, nem convivemos com outros cristãos com a finalidade de as conseguir. Não estamos unidos pela experiência da fraternidade cristã, mas pela firme e certa fé na fraternidade. Deus agiu em todos nós e quer continuar agindo – é isso que, na fé, aceitamos como o maior dom de Deus. É isso que nos enche de alegria e bem-aventurança, mas também nos capacita a renunciarmos a toda experiência quando Deus não nô-la quer conceder nesse tempo. Unidos estamos na fé, não na experiência”
Ricardo Wesley M. Borges é secretário geral da ABUB.
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