Como a violência afeta a saúde mental da mulher

Autor: Joel Rennó Jr.
Ao iniciarmos a abordagem dos transtornos psíquicos do ciclo reprodutivo feminino, não podemos nos esquecer dos dados alarmantes e, até dramáticos, da violência contra a mulher, uma das maiores responsáveis, além das questões genéticas, pela gênese dos transtornos psíquicos femininos.

O termo violência contra as mulheres engloba vários comportamentos nocivos, que vão além das experiências humanas habituais e que gera desassossego e sofrimento marcantes em qualquer pessoa. Inclui atos de violência física, sexual e psicológica na família e na comunidade, como o espancamento conjugal, o abuso sexual, o estupro, a mutilação genital feminina e a violência relacionada a questões envolvendo status no ambiente familiar.

Dados epidemiológicos confirmam que pelo menos uma em cada três mulheres já foi espancada, coagida ao sexo ou sofreu alguma forma de abuso durante a vida. Em cerca de 50 pesquisas populacionais do mundo inteiro, de 10% a 50% das mulheres relatam terem sido maltratadas fisicamente. O agressor geralmente é membro da própria família. Tal problema precisa ser encarado com seriedade, pois se constitui em um grave problema de saúde pública, sendo uma grande violação dos direitos humanos.

Há vários níveis de violência, seja a macroviolência, de origem política, ou a microviolência, de origem familiar. Aspectos culturais ainda são coniventes com as diversas esferas de violência contra o gênero feminino, por conta da condição subordinada – imposta pelo machismo existente -, que a mulher ainda enfrenta. Muitas culturas têm crenças, regras e instituições sociais que aprovam e legitimam, perpetuando a violência contra a mulher.

Os níveis de abuso são, portanto, múltiplos, incluindo o sexual, o econômico, o físico, o emocional, o político e o cultural. Isto nos demonstra que a atuação coletiva e individual deva ser realizada em âmbito multidisciplinar, com o envolvimento de todo o corpo da sociedade.

Formas de violência mais sutis são também cada vez mais freqüentes no ambiente de trabalho. Estima-se que 7 em cada 10 mulheres são assediadas ao longo de suas vidas, dentro do ambiente profissional.

Há alguns rótulos – herdados culturalmente-, totalmente inadmissíveis e absurdos, atribuindo ao agressor uma função psicopedagógica benévola ao atuar de forma violenta. A própria vítima, em determinadas situações, pode compactuar com a agressão sofrida, negando quaisquer contradições existentes envolvidas no conjunto de contingências e instruções da armadilha existencial conhecida como “duplo vínculo”.

Duplo Vínculo

Exemplificando: a personagem Raquel (Helena Ranaldi), do folhetim Mulheres Apaixonadas (TV Globo) compactua, inconscientemente, através do duplo-vínculo, com a violência do seu ex-marido Marcos (Dan Stulbach), o tempo todo. Provavelmente, ela seja tão ou mais comprometida, do ponto de vista psicológico, que o seu agressor. Busca situações e vivências que reforcem e repitam as atitudes de violência. Ela já deveria estar fazendo psicoterapia há muito tempo, para que pudesse enxergar nitidamente o seu papel complementar nessa relação doentia.

O duplo-vínculo acaba funcionando como um mecanismo de defesa psicológica, do tipo negação, que existe no inconsciente. Se a Raquel, por um lado, de forma consciente, atua mostrando raiva ou ódio aos sucessivos espancamentos aos quais é submetida, por outro lado, de forma inconsciente, atua de forma passiva, tolerante e até sedutora ou provocativa, nas atitudes violentas do ex-marido, compactuando e até tendo um certo prazer sádico nesses espancamentos.

Observamos, pela história apontada pelo folhetim, que em Sâo Paulo ela já tinha tido um envolvimento com outro adolescente. Quando chegou ao Rio de Janeiro, o primeiro encanto afetivo dela foi aquele personagem adolescente Fred (Pedro Furtado), observando-o e até se insinuando a ele, remontando, inconscientemente, um novo drama e tragédia com o seu ex-marido. É bem provável, que em pessoas com esse perfil de personalidade, que elas, em suas fugas, até deixem sutis pistas para que o “predador” as encontre.

Tudo parece paradoxal, mas de qualquer forma somos todos dialéticos perante a vida. Temos, sim, que perceber os limites tênues entre a normalidade e a patologia.

Abuso sexual leva à tentativa de suicídio

As experiências de abuso sexual são as mais comuns entre as mulheres, principalmente, em crianças e adolescentes. Estudos científicos comprovam uma relação importante entre história de abuso sexual e tentativas de auto-agressão e suicídio. Esse é um dos fatores que explicam as maiores taxas de tentativas de suicídio e auto-agressividade entre as mulheres, quando comparadas aos homens. Grande parte desses abusos sexuais são realizados no ambiente familiar, até com a conivência dos próprios parentes.

Vários transtornos mentais podem estar intimamente ligados a uma história prévia de abuso sexual. A experiência corrói a auto-estima da mulher, aumentando o risco de depressão, estresse pós-traumático, transtorno do pânico, ansiedade generalizada, consumo abusivo de álcool, drogas e suicídio. Estas conseqüências psicológicas são consideradas bem mais importantes que as físicas, até mesmo as que envolvem um impacto na saúde reprodutiva da mulher, como as DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), TPM (tensão pré-menstrual), sangramentos vaginais, dor pélvica crônica e aumento dos riscos de abortamentos espontâneos.

Criançãs também são vítimas

As crianças que presenciam cenas de violência contra a mulher também são vítimas, apresentando riscos mais elevados de problemas emocionais e comportamentais como ansiedade, depressão, desempenho escolar insatisfatório, desobediência, agressividade, pesadelos, baixa auto-estima e problemas de saúde.

Outro impacto da violência doméstica contra a mulher ocorre no setor econômico. Isto ocorre por vários fatores: maiores períodos de desemprego, diminuição da produtividade no trabalho e maior índice de doenças físicas e mentais.

No Canadá, por exemplo, os custos da violência de gênero são bastante significativos, atingindo o valor de U$1,1 bilhão, decorrentes da diminuição da produtividade e dos gastos com os serviços de saúde. Poderíamos extrapolar e afirmarmos, com certeza, que a violência contra a mulher pode se constituir em um grande obstáculo ao crescimento e desenvolvimento econômico de um país.

Toda a sociedade deve estar envolvida no combate à violência, nos seus diversos níveis. Se não assumirmos essa responsabilidade, seremos colonizados pela violência contra a mulher, através de uma espécie de “lavagem cerebral”, compactuando com os sintomas e rótulos associados.

O combate à violência não engloba apenas o campo dos direitos humanos ou posições feministas, em ONGs responsáveis e atuantes. Nos próprios afazeres cotidianos, podemos atuar no combate a esse mal que perpetua e impede o crescimento humano em todos os estratos, coletivos ou individuais.

* Profº Drº Joel Rennó Jr – Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta. Especialista em Psiquiatria pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Doutor em Medicina (Psiquiatria) pela Faculdade de Medicina da USP. Coordenador Geral do Projeto de Atenção à Saúde Mental da Mulher-Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.

Fonte: http://www.uol.com.br/vyaestelar/mente.htm

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