Ali, no descaso – Meditação de natal

Autor: Milton Schwantes
1.

Para mim é um privilégio celebrar o natal com vocês. É parte do grande milagre de haver encontrado esta comunidade em minha vida.

À semelhança cada um ou cada uma de nós têm privilégios e milagres a comemorar. Temos muitos a festejar. Lembre-se nos que você experimentou.

Prevalecem os privilégios na vida de cada um e de cada uma de nós. Certamente. Seguramente. Evidentemente.

Louvemos a Deus por tão encantadores presentes: o maior de todos – nossas vidas, inteiras, integradas, faceiras.

Há também tristezas cá e lá. Mas, na soma e nos cálculos dos privilégios nem são tantos. Somem em meio às nuvens de bênçãos.

Nessa virada de ano, havemos de poder olhar desse jeito para nossas vidas. Sim, refiro-me ao natal, chamando-o de ‘virada de ano’, pois ele, de longas datas, vem sendo comemorado justamente como virada. Quando as noites mais longas estão por se acabar, e mais curtas virão a seguir – no hemisfério norte – aí o natal encerra um ciclo e novo começa. Aqui, nesta ceia, estamos fechando um ciclo e começando outro. Concluímo-lo na memória dos privilégios que nos agraciaram as vidas, desejando que, ao ultrapassarmos o limiar desta noite, outros se sigam.

Que Deus nos abrigue nos caminhos feitos e nos trilhos a andar! Sem suas bênçãos as estradas se entulham de pedras e postes, de lamaçais e atoleiros!

2.

É bênção o que compartilhamos, nesta noite, com outras tantas e tantas pessoas, nas igrejas e fora delas, na fé e longe dela. É que os privilégios de Deus são mesmo para todas suas criaturas, sem reservas. A fé não tem reserva de mercado.

Daí porque é gracioso e bom experimentar o jeito tão especial que nosso Deus se achega a nós. Deus há muitos. Mas, nosso Deus trilha caminhos inusitados e ousados, em meio a este mundo de tantos caminhos, também religiosos. Não precisamos atacá-los. Desculpem, meus bons cristãos, mas acho que isso seria perda de tempo. O que é bom e gostoso, é comemorar Deus do jeito que as Escrituras dele contam e cantam. Ao centrarmos nelas nosso foco, seus encantos preenchem nossa vista; enchem a tela.

Estamos a festejar em nossa liturgia[1] estes caminhos especiais de Deus. Enquanto escutávamos palavras da Bíblia Sagrada, ecoavam em nossos notícias especiais de nosso Deus.

Lá, nos distantes tempos do oitavo século, antes da era comum, um rei, de nome Acaz, desejava fazer guerras em nome de Deus, com ajuda daquele Deus de quem falam as Escrituras. Aliás, antes dele, muitos reis já haviam feito guerras muitas e horrendas pensando estarem acolhidos em Deus. Acaz quis imitá-los, aqueles seus soberbos soberanos ancestrais-generais.

Mas veio-lhe a surpresa pelas palavras de Isaías, o profeta: ‘tuas guerras só servem para cansar homens guerreiros’ (7,13)! Por isso, o profeta lhe apresentou o sinal de Emanuel, uma criancinha, de nome “Deus Conosco”: Deus está com gente de jeito profético não à moda guerreira. Este Deus-criança desiste da guerra, das enfadonhas armas que só fedem a enxofre. Este menino Emanuel estará no trono de Davi. Um menino no poder! Que graça! Que encanto! Fora, armas e generais!

Poder à criança! ‘Um filho se nos deu’ (9,6)!

1O povo que andava em trevas viu grande luz,

e aos que viviam na região da sombra da morte resplandeceu-lhes a luz:

6porque um menino vos nasceu,

um filho se vos deu.

O governo está sobre os seus ombros

e o seu nome será:

Maravilhoso Conselheiro,

Deus Forte,

Pai da Eternidade,

Príncipe da Paz.

(Isaías 9,2+6)[2]

O poder dos céus é mesmo de indefesos, não de adultos, menos ainda de prepotências. As forças de nosso Deus são as de quem não as têm. Estranho – mas maravilhoso – é, pois, o caminho de nosso Deus, pelas palavras da Bíblia. Nele celebramos que frutos vêm de rebentos:

1Do tronco de Jessé sairá um rebento

e um renovo de suas raízes tratará frutos.

4 Defenderá com justiça os fracos

e defenderá com integridade os oprimidos da terra.

(Isaías 11,1+4a)[3]

Daí porque o natal é tão gracioso de comemorar. Afinal, nele festejamos o avesso: frutos de renovos! Que milagre! No geral, frutos estão em árvores. Nos caminhos de Deus, os frutos são de raiz!

Tempos depois, quando o povo de Deus, uma vez mais, experimentava pesadíssimas opressões, havia em seu meio aqueles que desejavam pegar em armas. Queriam ir à desforra contra os senhores do mundo de então. Os domínios eram de persas e gregos. Funcionavam qual gafanhotos devoradores. Estava-se aí pelo quinto ou quarto século.

Nestes dias se levanta Zacarias, com suas comunidades de sonhadores e visionários. Tentam clarear a vista. Olham bem para o que se passava. E sentem por onde estão os caminhos de Deus. E se lhes desvendou a palavra que clareia a vista e a vida:

9Eis aí te vem o teu rei:

justo e libertador,

nobre montado em jumento,

num jumentinho, cria de jumenta.

10Destruirei os carros de Efraim

e os cavalos de Jerusalém,

e o cavalo de guerra será destruído.

Ele anunciará paz às nações!

(Zacarias 9,9-10)[4]

Do justo e do pobre tudo depende. Nem dá outra. Não há outro jeito.

Justos são os que apóiam comunidades. Lutam pela vida a seu redor. Pagam salários justos. E pobres são os que não têm; são quem os encontram em seus casebres. Eis o caminho estranho de Deus. Vem chegando por vielas. Apresenta-se pelo avesso, por trilhas pelas quais não se esperaria que viesse.

O novo rei, o rei nascido na manjedoura, amigo de pobres e indefesos, vem de modo diferente, avesso. Vem justo e pobre. Pois de casebres vêm luzes.

E bem assim é o natal de Jesus (Lucas 2,1-20), filho de Maria e José, este que o Espírito fez defender crianças e famintos, doentes e até soberbos.

1Ora, naquele tempo, foi publicado um edito de César Augusto mandando recensear o mundo inteiro.

2Esse primeiro recenseamento teve lugar na época em que Quirino era governador da Síria.

3Todos iam se fazer recensear, cada qual em sua própria cidade.

4José também subiu da cidade de Nazaré, na Galiléia, à cidade de David, que se chama Belém, na Judéia, porque era da família e da descendência de David,

5para se fazer recensear com Maria, sua esposa, que estava grávida.

6Ora, enquanto lá estavam, chegou o dia em que ela devia dar à luz.

7Ela deu à luz o seu filho primogênito, envolveu-o em faixas e o deitou em uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na sala dos hóspedes.

8Havia na mesma região pastores, que viviam nos campos e montavam guarda durante a noite junto a seu rebanho.

9Um anjo do Senhor se apresentou diante deles, a glória do Senhor os envolveu de luz e eles ficaram tomados de grande temor.

10O anjo lhes disse: “Não tenhais medo, pois eis que eu venho anunciar-vos uma boa nova, que será uma grande alegria para todo o povo:

11Nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador que é o Cristo Senhor.

12E eis o sinal que vos é dado: achareis um recém-nascido envolto em faixas e deitado numa manjedoura.”

13De repente, apareceu uma multidão da milícia celeste que cantava os louvores de Deus e dizia:

14 “Glória a Deus no mais alto dos céus

e sobre a terra paz para os seus bem-amados.”

15Ora, quando os anjos os deixaram, indo para o céu, os pastores disseram entre si: “Vamos, pois, até Belém e vejamos o que aconteceu, o que o Senhor nos deu a conhecer.”

16Eles foram para lá apressadamente e encontraram Maria, José e o recém-nascido, deitado na manjedoura.

17Depois de ter visto, deram a conhecer o que lhes tinha sido dito a respeito deste menino.

18E todos os que os ouviram ficaram espantados com o que lhes diziam os pastores.

19Quanto a Maria, ela retinha todos esses acontecimentos procurando-lhes o sentido

20Depois, os pastores voltaram, cantando a glória e os louvores de Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, segundo o que lhes fora anunciado.

(Lucas 2,1-20)[5]

Nasce à semelhança daqueles que vieram a ser seus amigos e suas amigas: a gente fragilizada Em sua manjedoura, ele já estava coberto pela sombra da cruz.

Não só o império, o de plantão era o romano, exigiu de seus pais apresentar-se para o censo. Só isso já bastava para dar calafrio. Pois, naqueles tempos, faziam-se censos para ampliar tributos. Todos tinham que pagar. Afinal, Roma, o centro do mundo de então, queria deleitar-se, festejar e guerrear. Impostos pagam deleites e ferozes armas. Censos serviam para calcular mais impostos, novas arrecadações.

Também os contemporâneos não acolheram aquela família de caminhantes. Foi enxotada para a estrebaria, para o cocho. É pra lá que vão os que não são. Maria e José não eram e nem tinham!

Foi aí – em meio aos enxotados – que nasceu Jesus. Na beira da vida, Deus se faz vida. Onde parece que já não há o que esperar, brotam rebentos. Faz-se plena a vida. Naquela estrebaria um casal chegava à quase ausência de dignidade. O humano se assemelhava ao animal. Ali, no descaso, Deus se torna caso, caso de vida e de luta por ela.

O milagre vem pelas avessas. Avança pelo contrario do poder, contrariando-o.

Não é acaso que quase ninguém o percebe. Não fossem os anjos, a notícia levaria tempo a se espalhar. Aliás, anjos são tais mensageiros de noticiário inusitado, de milagres à beira da vida. Há muito anjo por aí. Estes da noite do natal são especializados em notícias que vêm da beira, no avesso.

Foram a pastores. Esta é gente de profissão maldita naqueles tempos. Ser pastor de ovelhas era ser de todo marginalizado. Era ter uma ocupação desonrada. Lá foram os anjos, com suas asas aos farrapos, com os maus cheiros de estrebaria, a esta gente desonrada e maldita: ‘o salvador nasceu!’ (2,11). A ventura maior ecoou em meio à desventura pior.

E lá foram eles a comemorar o natal, o primeiro de todos, o mais típico para todos.

3.

Começamos conosco (1). Andamos, em seguida, na companhia da Escritura (2). Agora, voltemos a nós (3).

Seguramente até queiramos retornar para nós. Afinal, de acordo à tradição, natal é tempo de virada. Olhamos para o que foi e abrimos o coração para o que há de vir.

Até que neste final caberia um apelo, uma solene convocação à paz e à justiça.

Nada contra quem assim procede. Mas, sabemos todos, quão ineficazes são tais máximas morais. Valem sua ineficiência.

Por isso, antes caiamos maravilhados. De joelhos sejamos pedintes. Imploro para que Deus nos abençoe neste seu caminho da manjedoura, do Emanuel. Diante dos espelhos dos caminhos de Deus, caímos por terra como mendigos. Pedimos humildemente para que ele nos dê a graça de podermos caminhar em seus trilhos.

Sim, à manjedoura vamos maravilhados, encantados, boquiabertos. De modo inusitado Deus se faz presente em meio a nós. Graças a Deus! As viradas começam pela contemplação, no caso pela contemplação do menino na manjedoura da estrebaria. Viradas estão a caminho quando contemplamos ‘manjedouras’. Muito apelo não tem a forca de comoção que tem o encontro com casebres.

Isso não significa que não faça sentido querer adequar, na prática da vida, nossas trilhas aos estranhos caminhos de Deus. Isso só significa que estamos liberados de moralizar, de querer ter sucesso a qualquer custo, de exigir coisas impossíveis de nossas frágeis mãos. Não precisamos acertar. Basta tentar caminhar de novo. Busquemos. Ensaiemos. Afinal, um novo ano se descortina. As coisas antigas já passaram. Corramos para as novas. E, se não der para correr, vamos a passo lento, pé ante pé, do jeitinho que der.

Na manjedoura começa o novo, inicia um novo ano.

As bênçãos sempre vêm de Deus, para crentes e, por igual, para descentes. Para nós crentes, suas bênçãos vêm – como que estranhamente – de manjedouras pobres e fedidas, de pastores, trabalhadores à noite, sem hora extra paga.

É por aí que nos vem o terceiro milênio.

Fogos de artifício são lindos em lindas televisões. Gosto de vê-los. Mas o que é mesmo novo vem, milênio trás milênio, pela pobreza da manjedoura, deste alojamento para quem está sem alojamento.

Para poder olhar para alto, é melhor ir a um lugar bem escuro. Daí se vê melhor os céus e suas brilhantes estrelas. A estrela de natal, aquela que se pôs sobre Belém, era mais visível para quem ia pelos fundões das manjedouras de gente sem nada.

Milton Schwantes

mschwantes@bol.com.br

25 de dezembro de 2000

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[1] Os textos desta liturgia de 25 de dezembro de 2000 são Isaías 9,2-7; Isaías 11,1-5; Zacarias 9,9-10 e Lucas 2,1-20.

[2] Tradução de João Ferreira de Almeida, A Bíblia Sagrada – Antigo e Novo Testamento, São Paulo, 1993.

[3] Tradução literal do texto da Bíblia Hebraica.

[4] Tradução de João Ferreira de Almeida.

[5] O texto é da Tradução Ecumênica da Bíblia, Edições Loyola.

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