A unidade como um fim

Autor: Ariovaldo Ramos

Após a ceia comunitária, conjunta, ecumênica – no sentido evangélico da palavra – programaram uma reunião para pastores e líderes com o objetivo de falar sobre as vantagens da unidade. Coube-me o privilégio de falar sobre o tema “A unidade e a evangelização”. Ao elaborar o que haveria de falar, comecei, obviamente, a tentar entender a relação entre uma coisa e outra. Como não poderia deixar de ser, recorri à oração de Jesus Cristo registrada pelo evangelista João, no capítulo 17 do livro que leva o seu nome, principalmente os versículos que se sucedem a partir do versículo 20, que diz: “não rogo somente por estes, mas também por aqueles que vierem a crer em mim por intermédio da sua palavra, a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim, e eu em ti, também sejam eles em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste.”

Procurei, nestes dois versículos (20 e 21, de João 17), trabalhar o que deveria ser a minha fala. Entretanto, tão logo comecei a trabalhá-los me dei conta de que, historicamente falando, unidade e evangelização não são necessariamente complementares entre si. Isso não é difícil de provar, tendo em vista que há milênios estamos divididos. Contudo, a Igreja continua a crescer, o Evangelho continua a ser pregado, as pessoas continuam a se converter. Então eu me dei conta de que unidade não é conditio sine qua non para uma evangelização eficaz. A evangelização tem ocorrido e produzido o adensamento da Igreja, a despeito de todas as divisões que sabidamente temos sofrido, por motivos que variam dos mais nobres aos mais mesquinhos, ao longo de nossa História.

O pior é que parece que o apóstolo Paulo concorda comigo, pois, em Filipenses, capítulo 1, do versículo 15 ao versículo 18, ele diz: “Alguns efetivamente, proclamam a Cristo por inveja e porfia; outros, porém, o fazem de boa vontade; estes, por amor, sabendo que estou incumbido da defesa do evangelho; aqueles, contudo, pregam a Cristo, por discórdia, insinceramente, julgando suscitar tribulação às minhas cadeias. Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo, sim, sempre me regozijarei.” Em outras palavras, o apóstolo Paulo está ratificando o que temos dito, que evangelização e unidade não são conseqüentes, entre si, ou interdependentes. Pode haver evangelização sem que haja um mínimo de unidade, até mesmo em termos de intenção de alcançá-la. Isto é o que a História tem nos ensinado e, segundo testemunho do apóstolo Paulo, desde priscas eras da Igreja cristã.

O que, então, evangelização tem a ver com unidade? Creio que, em termos de operacionalização, muito pouco. E acho que o que os irmãos mineiros, de fato, estavam buscando, não era a relação entre evangelização e unidade, mas sim, a relação entre evangelização e união. Neste caso, não há dúvida de que esforços conjuntos, promovidos por igrejas unidas num só propósito, facilitaria, e muito, a evangelização de qualquer cidade. Por exemplo, a cidade poderia ser dividida em áreas, e cada área ser alocada para uma igreja, de modo que esta se responsabilizasse pela evangelização de todos os indivíduos que habitam na sua proximidade. É óbvio que isso não só apressaria o trabalho de evangelização da cidade como o tornaria factível. Há exemplos históricos disso, não só no Brasil mas, também, no Exterior. Aqui no Brasil, um dos exemplos mais eficazes foi o da evangelização de Santo André, encabeçada pela Primeira Igreja de Santo André, quando o pastor Bartimeu era, então, o pastor titular daquela comunidade. Ele logrou envolver um grande número de igrejas evangélicas de Santo André no projeto e foi exatamente o que fez: dividiu a cidade em regiões e alocou uma para cada igreja, ou denominação, ou grupo de igrejas, o que, obviamente, não só acelerou o processo como o tornou possível.

Mas é óbvio que união e unidade não são exatamente a mesma coisa. Unidade fala de um só pensar, de um só sentir, de um único desejo e consciência. É algo muito profundo. A unidade fala de um homem coletivo, enquanto que a união fala da soma de esforços, da conjugação de esforços, da organização de esforços, independente do que sentem ou do que pensam individualmente os participantes (conjugados).

Temos então que concluir que, do ponto de vista da operacional, evangelização prescinde da unidade. Mas, quando observo a oração de Jesus Cristo, me dou conta de que se a operacionalização da evangelização pode prescindir da unidade, o resultado da evangelização não o deveria. E por quê? Porque no versículo 20, do capítulo 17, do Evangelho de João, Jesus Cristo, diz: “não rogo somente por eles, mas também por aqueles que vierem a crer em mim por intermédio da sua palavra, a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim, e eu em ti, também sejam eles em nós.” Ora, há um desejo explícito de Jesus Cristo aqui, e mais do que um desejo, há um propósito. O Senhor parece deixar claro que Ele espera que todos os que vierem a crer n´Ele, de fato, participem de uma unidade. Dessa forma, podemos dizer que o grande objetivo da evangelização é adensar a unidade que Jesus Cristo veio instaurar ou, melhor dizendo, restaurar.

Eu penso que é disso mesmo que estamos falando. Quando falamos de unidade da Igreja, não estamos falando de uma opção eclesiológica, ou de uma forma de ser Igreja, mas, falando da Igreja na sua essência. Porque Jesus Cristo, em Sua oração, parece não ver a Igreja de outra forma, senão, como uma grande unidade humana. Daí Sua oração para que todos os que vierem a crer n´Ele, adensem essa unidade, já preexistente em relação àqueles que vão chegar. Dessa forma, podemos perceber que “unidade”, para Jesus Cristo, é uma questão de essência. O que é a Igreja? Igreja é a unidade humana restaurada por Jesus Cristo. E parece-me que esse foi o grande objetivo de Jesus Cristo, ao ir à cruz. A gente pode perceber isso em Efésios, capítulo 2, versículo 15, onde está afirmado: “aboliu, na sua carne, a lei dos mandamentos na forma de ordenanças, para que dos dois criasse, em si mesmo, um novo homem, fazendo a paz, e reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por ela a inimizade.”

O que estes dois versículos, o 15 e o 16, do capítulo 2 de Efésios, estão nos dizendo? Que o grande propósito da vinda de Jesus Cristo ao mundo e de Sua subida ao madeiro era criar uma unidade humana que Ele chamou de Igreja – a Sua Igreja. Dá-nos, portanto, a impressão de que a visão de Jesus Cristo era muito maior que a Salvação de indivíduos, isoladamente, e muito maior do que a transformação destes mesmos indivíduos – porque, como é sabido, o movimento da Salvação é duplo: de um lado ele tira o sujeito do inferno e, do outro, tira o inferno do sujeito. Mas esta informação de Efésios parece nos dizer que não pára aí, porque, se parasse, estaríamos falando de algo meramente individual. Efésios, contudo, aponta-nos para o coletivo. Inclusive, a Bíblia de Jerusalém traduz este trecho, “um novo homem” como “um só novo homem” que, na minha opinião, é a tradução que capta o sentido mais profundo desta afirmação paulina. Ou seja, Jesus Cristo veio ao mundo para restaurar a unidade humana que foi quebrada no Éden, quando da rebelião da raça.

A impressão que este texto nos passa, portanto, é que Igreja, para Jesus Cristo, é o homem coletivo; que o grande objetivo de Jesus Cristo é ter um corpo de pessoas, como Igreja, que não apenas se amem, mas que, por tanto se amarem, tornam-se um só homem. Que têm, em si, inclusive como Paulo aconselha, um mesmo sentimento – “tende em vós”, diz ele, “um mesmo sentimento” – que, como também Paulo aconselha, referindo-se às duas irmãs que estavam em litígio, pensam a mesma coisa e são permeados pela mesma consciência, uma vez que o Cabeça, o Cérebro, e a Consciência da Igreja é Cristo.

Na Igreja, assim, as pessoas já se vêem como extensão umas das outras – ou ao menos deveriam -, mesmo porque, por definição, são “membros um dos outros” – o grande corpo de Cristo. A própria figura do corpo já nos aponta para esta realidade: a realidade da harmonia, da unidade, a realidade do homem coletivo que tem a Jesus Cristo como cabeça .

Portanto, evangelização está intrinsecamente ligada à questão da unidade, não necessariamente pela operacionalização, mas, pelo seu propósito de convocar e agregar o maior número possível de seres humanos à unidade humana que Jesus Cristo implantou, e que chamou de “Sua Igreja”.

Agora parece claro que, se o propósito da evangelização é o adensamento da unidade, era de se esperar que o movimento que leva esta mensagem de conversão aos seres humanos fosse caracterizado justamente pela unidade. Portanto, a unidade dá credibilidade à evangelização, e consequentemente, dá testemunho da obra de Cristo. Parece-me que é isto é o que está explícito na afirmação de Jesus Cristo em Sua oração ao Pai, quando Ele coloca a unidade como condição para que o mundo creia que Ele foi enviado pelo Pai. É uma colocação fortíssima, e nos leva a considerar que, se a unidade não é imprescindível para a operacionalização da evangelização, ela é imprescindível para que essa operacionalização goze de crédito, e mais, para que a evangelização, de fato, revele tudo o que Jesus Cristo gostaria de ver revelado a respeito de Sua obra a Seu próprio respeito. Jesus Cristo veio para restaurar a unidade humana, unidade esta que, uma vez restaurada, tornar-se-ia a casa viva do Deus vivo, porque um deus vivo tem que morar numa casa viva.

Assim, a Igreja, ao evangelizar, não apenas chama os homens à unidade, como está obrigada a evangelizar a partir da unidade, porque é na unidade que ela revela, de fato, o grande projeto de Jesus Cristo. Hoje, quando pregamos o Evangelho, a partir de nossas divisões e idiossincrasias, o que comunicamos sobre Jesus Cristo é que Ele está dividido; que Ele não consegue manter o Seu povo unido; que Ele, no mínimo, não conta com a fidelidade de todo o Seu povo. Porque, ainda que o Seu desejo explícito seja a unidade de Seu povo, ainda que o Seu clamor seja pela unidade, ainda que o propósito da Sua obra tenha sido a formação de uma unidade humana, Seus filhos não se submetem à Sua vontade, não se abrem a essa unidade proposta por Jesus Cristo. Pelo contrário, cada vez mais se dividem e por, cada vez, menos. É claro que a evangelização vai continuar a acontecer, que as pessoas vão continuar a se converter, até porque a conversão do ser humano é uma obra da graça de Deus e um ato soberano de Deus. Mas não há a menor dúvida de que esta evangelização está comprometida. Ela não revela a verdadeira natureza do projeto de Jesus Cristo, e ela não testemunha de Jesus Cristo o que Ele gostaria de ver testemunhado; ela não fala do grande projeto de Cristo que é a grande unidade humana, unidade esta, que tornaria possível ao homem a expressão de Deus Triuno.

Por isso, unidade e evangelização, realmente, têm muito a ver. A unidade é a base da evangelização, e é o fim, o propósito da evangelização. Além do que o Senhor Jesus Cristo deixa claro que a unidade é um lugar. Ele afirma, na Sua oração ao Pai, uma relação. Ele diz: “para que sejam um, como nós o somos; eu neles, e tu em mim.” Ele diz: “a fim de que todos sejam como és tu, ó Pai, em mim, e eu em ti, também sejam eles em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” Então, a unidade, aqui, é também um lugar: é o lugar espiritual da Igreja. Assim como Deus está em Cristo, Cristo está em Deus, e nós estamos n´Eles; assim como Eles são unidos, assim como Eles constituem uma unidade, nós, n´Eles, nos constituímos, ou fomos constituídos, também unidade. E isso significa que o nosso esforço, o nosso trabalho, a nossa evangelização, enfim, todos os nossos atos, deveriam expressar a nossa unidade, a que foi constituída na Trindade. Logo, quando evangelizamos sem levar em consideração a unidade, falamos de Deus como se Ele estivesse dividido; falamos de Cristo como se Ele não tivesse, de fato, tanta autoridade assim sobre os Seus filhos; e falamos do Evangelho como algo meramente individual. Parece-me que, ao perder a dimensão da unidade, fomos, necessariamente, relegados ao individualismo, que é a negação do Cristianismo. Penso que é hora de repensarmos esta relação entre unidade e evangelização, para que de fato a nossa evangelização tenha crédito e Jesus Cristo possa ser crido, como todos o desejamos.

1 Ramos, Ariovaldo – Igreja e eu com isso? – Editora Sepal – janeiro de 2000 – pg 41
2 Fp 2.5
 
Ariovaldo Ramos é missionário da Sepal
Fonte: SEPAL

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