A teologia da libertação acabou?

Autor: Michael Löwy




Confrontada com uma ofensiva conservadora do Vaticano, com o crescimento extraordinário das seitas evangélicas na América Latina e com a nova conjuntura internacional (desmoronamento do socialismo real, derrota dos sandinistas na Nicarágua), a teologia da libertação ainda existe? Muitos observadores não hesitaram em fazer o necrológio de um movimento que abalou a vida religiosa e política do continente. Não há dúvidas de que estes acontecimentos colocam formidáveis desafios aos partidários de uma Igreja dos Pobres, mas o atestado de óbito é pelo menos prematuro.

Antes de mais nada, é preciso constatar que, como movimento cultural e como grupo de pensadores engajados, a teologia da libertação passa muito bem. Nenhum dos grandes teólogos latino-americanos – ao contrário de alguns dirigentes da esquerda leiga desorientados pelo fim pouco glorioso da URSS – renegou suas convicções, ou sua opção pela luta emancipadora dos pobres. Nenhum se incorporou à cruzada romana de restauração e muito menos aos dogmas neoliberais em moda. Se Leonardo Boff preferiu deixar a ordem dos franciscanos e a Igreja, foi para reconquistar sua liberdade de expressão – entravada pela censura e pelas provocações de Roma – e para prosseguir sua luta em melhores condições.

É verdade que podemos constatar, há alguns anos, uma evolução nos seus temas e preocupações: uma maior atenção à espiritualidade e à religião popular, uma ampliação do conceito de pobre para incluir não apenas as vítimas do sistema econômico, mas também os atingidos por outras formas de opressão, como índios, negros ou mulheres. Enquanto alguns têm a tendência a relativizar o marxismo – por exemplo, apresentando-o simplesmente como uma das formas da ciência social -, outros desenvolveram uma nova relação com o pensamento de Marx, referindo-se à sua teoria do fetichismo na sua crítica ao capitalismo como falsa religião, idolatria do mercado e culto do deus Mamon (Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Pablo Richard).

Entretanto, a questão-chave não são os escritos dos teólogos, mas antes a força do movimento social de que são porta-vozes. De fato, a teologia da libertação não é senão a ponta visível de um iceberg, isto é, de um imenso movimento social composto por comunidades de base, pastorais populares – da terra, operária, indígena, da juventude – por redes do clero progressista (especialmente nas ordens religiosas), associações de bairros pobres, movimentos de camponeses sem-terra etc. Este movimento, que poderíamos chamar de cristianismo da libertação, nasceu no curso dos anos 60, com a primeira esquerda cristã brasileira (1960-62) e com o sacrifício de Camilo Torres, o padre guerrilheiro morto em combate em 1966. Encontrou sua expressão religiosa mais avançada na teologia da libertação, a partir de 1971, ano da publicação das obras pioneiras de Gustavo Gutierrez e Hugo Assmann. Enfim, forneceu boa parte dos militantes e simpatizantes da Frente Sandinista, da FMLN salvadorenha e do Partido dos Trabalhadores brasileiro.

Em que medida este cristianismo da libertação ainda tem uma influência social significativa no seio das camadas populares na América Latina? Alguns acontecimentos recentes parecem indicar que este fogo está muito longe de se extinguir.

Em 1990, um partidário da teologia da libertação, o padre Jean Bertrand Aristide, foi eleito presidente do Haiti com 67% dos votos – um acontecimento sem precedentes, não apenas neste pequeno país, mas em todo o continente. Jamais na América Latina um homem de esquerda tinha obtido uma vitória tão impressionante e nunca uma figura religiosa identificada com a teologia da libertação tinha sido o principal dirigente de um movimento popular. Aristide foi escolhido pelos pobres que constituem a maioria esmagadora da população haitiana porque encarnou, enquanto dirigente reconhecido das comunidades de base – as kominoté ti-legliz -, a luta intransigente contra as ditaduras militares herdeiras do duvalierismo, os sinistros bandos paramilitares (tonton macoutes) e a oligarquia de negociantes que controla o país. O empenho dos bispos conservadores, dos dirigentes de sua ordem religiosa (os salesianos) e de Roma para reduzi-lo ao silêncio, assim como as numerosas tentativas de assassinato pelos duvalieristas, conseguiram apenas reforçar sua popularidade.

Uma outra explosão inesperada foi o levante zapatista em Chiapas: uma rebelião armada de vários milhares de índios, sob a direção de uma organização até então desconhecida, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Os insurgentes foram descritos pelos meios de comunicação e pelo governo mexicano como inspirados pela teologia da libertação (ou manipulados pelos jesuítas), enquanto D. Samuel Ruiz, o bispo de San Cristóbal de las Casas (Chiapas) era acusado de ser o guerrilheiro de Deus. As duas acusações são evidentemente falsas. Qual foi exatamente o papel da Igreja progressista de Chiapas na gênese do movimento zapatista? D. Ruiz, autor do livro Teologia bíblica da libertação (1975), realizou por muitos anos – com a ajuda dos jesuítas, dominicanos e de ordens religiosas femininas – um trabalho pastoral de educação popular. Uma vasta rede de 7800 catequistas indígenas e 2600 comunidades de base foi criada, o que contribuiu poderosamente para a conscientização das comunidades indígenas, ajudando-as a tomar  conhecimento de seus direitos e a lutar para defendê-los. Esta atividade provocou conflitos crescentes de D. Ruiz com as associações locais de grandes proprietários e criadores, com o governo mexicano e com o núncio papal (que tentou revogar seu posto). Pacifista, D. Ruiz nunca pregou a insurreição. Foram militantes marxistas que criaram o EZLN, que não se refere ao Cristianismo, mas antes à cultura maia. Mas é evidente que o trabalho de educação e auto-organização impulsionado pelos agentes da pastoral e pelos catequistas indígenas da diocese criou um ambiente favorável para a expansão do movimento zapatista.

Isto vale também para um outro levante indígena, menos espetacular mas também importante, que teve lugar no Equador em junho de 1994. Durante anos, a corrente progressista da Igreja, representada por D. Leonidas Proano, bispo de Riobamba (Chimborazo) – conhecido como o bispo dos índios – trabalhou em solidariedade estreita com as comunidades quechuas. Com a ajuda de 1300 agentes pastorais, criou uma rede impressionante de comunidades de base, escolas, equipes médicas, centros culturais, favorecendo a formação, em 1982, do Movimento índio do Chitnorazo (Mich) e, mais tarde, da Confederação Nacional dos índios do Equador (Conaie). D. Proano e seus partidários rejeitavam o modelo capitalista de desenvolvimento destruidor da cultura e da sociedade indígenas.

Em junho de 1994, o governo equatoriano decretou uma lei agrária de estilo neoliberal, que dava grandes garantias à propriedade privada e excluía toda futura distribuição de terras; a lei tinha também o objetivo de parcelamento e venda das terras comunitárias e até da privatização da água. O movimento indígena – o Mich, a Conaie, cooperativas e sindicatos camponeses – mobilizou-se contra a lei, com o apoio de D. Victor Corral (o sucessor de D. Proano) e da Igreja dos Pobres. Durante duas semanas, as regiões rurais do Equador estiveram em estado de semi-insurreição: estradas cortadas, aldeias ocupadas, manifestações. O Exército tentou em vão suprimir o movimento prendendo seus dirigentes, fechando estações de rádio da Igreja que apoiavam os indígenas e enviando tropas para reabrir as estradas. Mas diante da resistência massiva foi obrigado a recuar e a introduzir modificações profundas na lei agrária. Seria falso pretender que a revolta indígena tenha sido dirigida ou promovida pela Igreja progressista, mas é verdade que o cristianismo da libertação – representado por D. Proano, seu sucessor e seus agentes pastorais – foi um fator decisivo no desenvolvimento de uma nova consciência e de um desejo de auto-organização nas comunidades quechuas.

Poderíamos citar outros exemplos, como o Brasil, onde as comunidades de base reuniram em 1992 sua maior assembléia até aqui, do ponto de vista da participação de delegados e de bispos favoráveis ao movimento. Nas eleições presidenciais de 1994, Lula, o candidato do Partido dos Trabalhadores, apoiado pela Igreja progressista, teve 27% dos votos no primeiro turno (em comparação com os 16% do primeiro turno de 1989).

Ofensiva conservadora

O maior desafio para o cristianismo da libertação é a ofensiva conservadora do Vaticano na América Latina que, bem entendido, faz parte de um processo mais geral de restauração doutrinal e centralização autoritária na Igreja romana sob o pontificado de João Paulo II. A arma decisiva de Roma contra os desvios doutrinais e a atividade excessivamente política dos cristãos latino-americanos é a nomeação de bispos conservadores, conhecidos por sua hostilidade à teologia da libertação. Estes bispos se apressam a dissolver ou deslegitimar todas as redes e pastorais engajadas numa atividade social conseqüente do lado dos pobres. Ao mesmo tempo, o Vaticano toma medidas diretas contra os religiosos ou teólogos mais avançados, excluindo-os de suas ordens religiosas – os irmãos Cardenal na Nicarágua, o padre Aristide no Haiti – ou obrigando-os a escolher a ruptura (Leonardo Boff). Enfim, seminários progressistas foram fechados, notadamente no Brasil e medidas de intervenção por cima tiveram tiveram lugar contra a Clar, Confederação dos Religiosos da América Latina, considerada excessivamente próxima da teologia da libertação.
O objetivo de Roma é a normalização da Igreja latino-americana: as nomeações de bispos e cardeais conservadores visavam mudar a correlação de forças no seio do episcopado e chegar, na Conferência dos Bispos Latino-americanos de São Domingos (outubro de 1992), a uma verdadeira virada, que poria fim ao parêntese representado pelas Conferências de Medellin (1968) e Puebla (1979). Em que medida o objetivo foi atingido?

A Cúria romana fez tudo para aferrolhar a Conferência de 1992, excluindo a participação dos teólogos da libertação, nomeando para a presidência o muito conservador Cardeal Angelo Soldano – antigo núncio papal no Chile, onde mantinha excelentes relações com o general Pinochet – e se recusando a levar em consideração os documentos elaborados pelas conferências episcopais dos diversos países do continente. Os representantes romanos em São Domingos foram algumas vezes mais papistas do que o Papa, recusando categoricamente que a Igreja peça perdão aos índios e aos afro-americanos pelos sofrimentos que lhes foram infligidos em nome do cristianismo, enquanto João Paulo II, numa audiência em Roma em 21 de outubro de 1992, não hesitou em formular um pedido de perdão deste tipo…

Como é freqüente em reuniões como esta, o documento final foi um compromisso que não satisfez completamente nem os conservadores nem os
progressistas. Segundo Clodovis Boff (irmão de Leonardo), o documento representa em diversos aspectos um recuo com relação às conferências anteriores: São Domingos foi, na sua opinião, "música latino-americana tocada
com uma guitarra romana". Ele convida os cristãos do continente a fazer uma leitura ativa, seletiva, corretiva e criadora do texto.1

Gustavo Gutierrez faz um balanço bem mais favorável, sublinhando a importância da reafirmação solene, pela Conferência, da opção preferencial pelos pobres e a denúncia, pelos bispos, do modelo econômico neoliberal que amplia o fosso entre ricos e pobres na América Latina. A seus olhos, o documento de São Domingos se situa na continuidade doutrinal e pastoral de Medellin e Puebla, mesmo se não tem o vôo profético do primeiro nem a densidade teológica do segundo. Sua conclusão não é muito diferente da de Boff: o significado da Conferência depende "da recepção que formos capazes de dar aos documentos de São Domingos".2

Enfim, segundo Pablo Richard (um dos fundadores do movimento Cristãos pelo Socialismo) o resultado de São Domingos não é negativo, na medida em que a Igreja latino-americana continua a se afirmar como uma igreja do Sul. Dito isto, o documento aprovado é contraditório: enquanto a nova evangelização de que se trata neste texto é pensada em termos cristológicos e eclesiais, ela é produto de um fundamentalismo romano que não é muito diferente do das seitas evangélicas. Por outro lado, quando esta evangelização é pensada em termos de promoção humana e de opções pastorais, ela é a expressão mais autêntica da identidade própria da Igreja latino-americana.3
Em conclusão: é difícil, senão impossível, prever qual será o futuro do cristianismo da libertação na América Latina. Isto depende de várias variáveis desconhecidas, como a identidade do próximo papa ou o tipo de movimento social ou revolucionário que se desenvolverá no continente. De qualquer maneira, esta corrente já deixou sua marca na história da América Latina durante a segunda metade do século XX, como um dos principais protagonistas dos mais importantes movimentos dos últimos 35 anos, especialmente no Brasil e na América Central. O cristianismo da libertação moldou várias gerações de cristãos engajados, cuja maioria dificilmente vai abandonar suas convicções éticas e sociais profundamente enraizadas. O grão que ele semeou na terra fértil da cultura religiosa e política latino-americana continuará a germinar no curso dos próximos anos e pode ainda nos reservar muitas surpresas. 

*Michael Löwy é pesquisador do  Centre National Scientifiques de Reserches, em Paris.

Notas
1. Clodovis Boff, "Um ajuste pastoral", em Santo Domingo. Ensaios Teológico-Pastorais, Petrópolis, Vozes, 1993, pp.9-54. (voltar para o texto)

2. G. Gutierrez, "Documento: um corte transversal", in op.cit., pp.55-68. (voltar para o texto)

3. P. Richard, "La Iglesia Catolica después de Santo Domingo"~ Pasos, ng 44, Costa Rica, novembro-dezembro 1992. (voltar para o texto)

Fonte: http://www.fpa.org.br/td/td31/td31_ensaio.htm


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