A serventia das cinzas

Autor: Sandro Cerveira

Não é curioso que o ano novo real comece numa quarta-feira de cinzas?
No calendário litúrgico católico é justamente com a aplicação das cinzas, obtidas com a queima das palmas do Domingo de ramos, que se inicia o tempo da quaresma. Um tempo de jejum, sacrifício, reflexão e arrependimento que, em termos ideais, deveria servir de preparação para o ciclo da Paixão.
No calendário brasileiro é justamente a partir da quarta-feira de cinzas que finalmente as coisas começam a funcionar. Salvo honrosas exceções as coisas simplesmente não funcionam, ou se funcionam por obrigação, se arrastam de forma modorrenta e precária até o carnaval.
Passadas então as festas de fim e início de ano, passadas as férias, passado o carnaval finalmente parece que o ano vai começar. Desta vez me surpreendi pensando nessa coincidência: o re-início efetivo do mundo do trabalho, da rotina, dos deveres, coincide com as cinzas, ocorre sintomaticamente no momento em que se iniciam os dias e os ritos de arrependimento, de purgação.
Seriam essas cinzas um sinal de remorso pelos excessos cometidos nas muitas festas? Do ócio, devida e indevidamente gozado? Ou estaríamos diante do ancestral castigo associado ao trabalho? Da amarga maldição de comer o pão molhado no suor do rosto?
Talvez tudo isso junto, mas é possível também associar a cinza, símbolo da morte e da finitude com o recomeço da própria vida. O calendário, seja o litúrgico, seja o civil, tem mesmo esse poder. Dar a impressão/ilusão de que o tempo não é linear, não se esgota como o pó das ampulhetas, ele tem algo de cíclico. Essa percepção sugere que as coisas, portanto, re-começam e, justamente porque recomeçam, podem e devem ser feitas de novo, desta vez, quem sabe, de uma forma diferente.
Relembro do costume de jogar as cinzas do fogão a lenha na horta. “Pra espantar as lagartas e servir de esterco” dizia minha avó. Talvez aí esteja mesmo a serventia das cinzas. Vestígios tétricos dos incêndios que não desejamos nem planejamos, mas também lembrança morta das coisas que escolhemos dar fim, sua utilidade está, em nos fazer re-pensar se aquilo que foi deva mesmo continuar sendo assim, como nos fazer refletir se o que foi talvez precise morrer para dar lugar e suporte ao novo.
Não precisamos ser sempre os mesmos. Podemos nos converter e isso nos dá esperança mas não devemos esquecer que, para que a conversão ocorra mesmo alguma coisa precisará virar cinza.

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