A questão homossexual

Autor: Dom Robinson Cavalcanti
Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis.
Romanos 8.13

1. Durante 2 mil anos de sua história, a igreja cristã, em suas várias ramificações, nas diversas épocas, culturas e modos de produção, entendeu, com base nas Sagradas Escrituras, na tradição, na razão e na experiência, a normatividade heterossexual para a espécie humana: “E macho e fêmea os criou” (Gn 1.27). Tal entendimento foi precedido por 3 mil anos de judaísmo e mantido, a partir do sétimo século depois de Cristo, pela terceira grande religião monoteísta: o islamismo — entendimento não diferente das outras grandes religiões não-monoteístas. Iniciamos o século 20 com um consenso sobre o homossexualismo: espiritualmente, um pecado; moralmente, uma conduta desviante; clinicamente, uma patologia.

2. Em razão da mesma natureza pecaminosa, a heterossexualidade também foi marcada por desvios e patologias: pedofilia, zoofilia, necrofilia, prostituição, lascívia, estupro, violência e opressão. A teologia moral da Igreja, nesses casos, tem combatido os desvios, e não a heterossexualidade. Parte dessa pecaminosidade se manifestou, ainda, na homofobia ou mesmo em agressões aos homossexuais. Debates teológicos e morais também foram travados em torno de diversos temas, como o dote, a liberdade de escolha, a poligamia, as uniões de fato, o divórcio, o casamento de divorciados, o casamento misto, o aborto, os métodos anticoncepcionais, o patriarcado, o matriarcado etc.; mas essas situações e divergências são variações em torno da heterossexualidade.

3. A teologia reformada nos ensinou a inexistência de uma hierarquia de pecados (“mortais” versus “veniais”) e que “devemos rejeitar o pecado, mas amar o pecador”. O pensamento reformado progressista contemporâneo tem defendido a dignidade e o direito da pessoa humana e os direitos civis. Em relação às pessoas cristãs com inclinação homoerótica, essa teologia recomenda:

a) o celibato casto, abstinente e sublimado, operado pela assistência do Consolador;

b) a experiência de reversão de tendência (para a opção heteroerótica), atestada pelo testemunho de milhares de pessoas, pelo poder do mesmo Espírito.

Estas são opções a serem vividas na Igreja, família de Deus e comunidade terapêutica, que nem sempre soube honrar sua missão pastoral.

4. O século 20 testemunhou uma série de mudanças culturais, decorrentes de fatores como a urbanização, o cosmopolitismo e o secularismo. Como a natureza humana é ambígua, essas mudanças tiveram aspectos positivos e aspectos negativos. Na Igreja tivemos, em alguns círculos, um enfraquecimento das Sagradas Escrituras e da tradição, e uma nova valorização da razão e da experiência. Nas sociedades pós-industriais do Primeiro Mundo, o número de pessoas com inclinação homoerótica cresceu vertiginosamente. Essas pessoas se articularam, ocuparam espaço na academia, na mídia e nas esferas de poder, defendendo a normalidade da sua opção e fomentando a discriminação contra os defensores do entendimento histórico. Poderosos grupos de pressão levaram à desqualificação desse comportamento como patologia pelas sociedades médicas, psicológicas e psicanalistas. Pela primeira vez na história algo é excluído do rol das enfermidades, não em virtude de pesquisas científicas, mas de uma decisão política.

5. No campo religioso, além das religiões não-monoteístas, do judaísmo e do islamismo, a Igreja Romana, as igrejas do Oriente, as igrejas evangélicas e pentecostais, e a maioria das igrejas históricas mantiveram, apesar das pressões e das mudanças seculares, a sua tradicional teologia moral quanto ao tema da homossexualidade.

6. Nas últimas décadas do século 20, o debate tornou-se agudo em denominações históricas do Primeiro Mundo em torno principalmente de três pontos:

1) A “normalidade” da opção homoerótica (alegando ser a tendência de 3 a 10% da população);
2) A ordenação às sagradas ordens de homossexuais praticantes (não celibatários ou castos);
3) A criação de um rito para a bênção de “uniões de pessoas do mesmo sexo”.

Foi criada nos Estados Unidos a Igreja Metropolitana Universal, uma denominação com esses princípios. Algumas denominações tomaram decisões, “flexibilizando” suas atitudes. Atos de rebeldia localizados têm crescido. Tentativas de mudar constituições e cânones fazem parte do cotidiano de sínodos e convenções de algumas denominações históricas do Primeiro Mundo. Nesses casos, ou se tenta proceder a uma “releitura” dos textos bíblicos específicos, ou se descarta qualquer caráter normativo das Sagradas Escrituras, reduzidas à mera literatura religiosa, devocional e litúrgica.

7. Se, no passado, tivemos os desvios da teocracia (a igreja tutelando o Estado e a sociedade) e do “cesaropapism”o (o Estado tutelando a igreja e a sociedade), pretende-se hoje um “secularismo”, em que as decisões da igreja devem se subordinar às idéias e às práticas do Estado e da sociedade. Uma nova pneumatologia afirma o caráter iluminado e normativo dos concílios atuais, mesmo com a negação das decisões iluminadas do passado. O passado, na verdade (para esses “revisionistas”), é apenas um acúmulo de erros e ignorância. Alguns defendem a relatividade da verdade, ou a existência de “várias verdades”, ou a absolutização vaga, subjetiva, emotiva e inconsistente do “amor”.

8. No caso do anglicanismo, os documentos e decisões de dioceses, províncias e da própria Comunhão foram no sentido da reafirmação do paradigma heterossexual, culminando com a “Resolução sobre a Sexualidade Humana”, da Conferência de Lambeth, em 1998, que representa a ampla maioria da denominação, sob protestos e atos de rebeldia de setores localizados no Primeiro Mundo. Vantagens materiais (verba, ajuda, bolsas etc.) têm sido oferecidas a dioceses pobres para que calem a sua voz. Dá-se uma luta de poder. Os grupos de pressão, formados por pessoas de orientação homoerótica, ocupam amplos espaços nas cúpulas decisórias de dioceses e províncias. Há casos em que os que se opõem a essas teses são vedados à eleição e à ordenação. Como era de se esperar, milhões têm decidido sair, deixando essas denominações ou promovendo a fragmentação com uma série de cismas. A orientação de líderes como o Rev. John Stott é: “permanecer e resistir, com firmeza e com amor”.

9. A maioria das províncias e dioceses da Comunhão Anglicana acata e apóia a Resolução de Lambeth 1998. A tática atual dos “revisionistas” é evitar votações e normatizações e ir, na marra, criando “fatos consumados”, “forçando a barra”, como forma de confronto. Palavreado melífluo, como “espiritual” e “afetivo”, é usado por líderes provinciais e diocesanos para transformar a inclusividade em algo sem limites e a igreja, em uma “arca de Noé”. Talvez a igreja cristã esteja vivendo uma das maiores crises de sua história. Todos os pronunciamentos e resoluções dos órgãos responsáveis estão sendo ignorados. A disciplina interna das províncias e dioceses não se dá ou também é ignorada. Percebe-se a arrogância imperial do centro “iluminado” em relação à periferia “ignorante”. Há uma dimensão de geopolítica eclesiástica, com o deslocamento do eixo anglicano do Norte para o Sul, não aceito pelos primeiros. A heresia do destino manifesto e da missão civilizadora dos Estados Unidos, com a idolatria do patriotismo, manifesta-se tanto na política quanto na religião, na direita e na esquerda, no governo que despreza o direito internacional e a opinião pública mundial, e nos “revisionistas”, que desprezam as resoluções da Comunhão Anglicana e a opinião dos “ignorantes” do Sul.

10. Fala-se, já, em uma “balcanização” da Comunhão Anglicana: paróquias e dioceses revisionistas rebeladas, convivendo, dentro da mesma instituição, com paróquias e dioceses conservadoras inconformadas, que buscam liderança de outros bispos, dentro ou fora de sua província. É impressionante o que podem fazer as minorias organizadas, especialmente diante da omissão, do medo e do comodismo das maiorias desorganizadas.

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