A perda de si mesmo

Autor: Daniel Costa

Mateus 4:1-11

Poucos temas são tão relevantes nesses nossos dias quanto este da tentação. Pena que a nossa tradição religiosa dê ênfase, nesse texto da tentação de Jesus, no lugar errado, no simples confronto espiritual, transformando tudo numa mera manifestação de batalha de poderes entre a intenção maligna e o poder de Cristo de combatê-lo com a Palavra para não desvirtuar o seu ministério. Esse texto nos apresenta uma questão muito mais elementar e básica à vida: A pergunta pela forma como construímos ou onde está a nossa identidade. “Se és Filho de Deus”, essa é a confrontação repetida no texto, ou seja, quem você é?

Por que essa pergunta é tão essencial nesses nossos dias? Somos todos marcados pela globalização, pela perda da consciência do privado, pela massificação de valores e verdades que nos padronizam. A nossa identidade, nosso sentimento de individualidade, de propriedade e liberdade de sermos, está correndo perigo. Isso porque, pouca gente se dá conta que a identidade se constrói em meio a compulsão social, a expectativas projetadas pelo meio, transformando a nós todos em seres compulsivos, movidos por uma estranha, contínua, crescente e profunda necessidade de afirmação. Uma compulsão que se manifesta no medo oculto de fracassar e no impulso inabalável de evitar isso juntando mais das mesmas coisas que o meio valoriza: mais trabalho, mais dinheiro, mais influência, mais fama, mais amigos ou pessoas conhecidas, etc. Quem somos de verdade? Essa não é mais a nossa grande busca, o grande encontro conosco mesmos, mas como somos percebidos pelo mundo, como somos vistos e aceitos é a grande preocupação das pessoas. Talvez isso explique porque vivemos num mundo tão sem encantamento, tão pobre de propósito e ideologias que nos apaixone, porque é um mundo tão carente de identidade, cheio de gente perdida de si mesmo, que cederam às vozes da tentação. O problema é que se o meu senso de identidade, de individualidade depende, por um lado, do que os outros dizem ou pensam de mim, a violência é o subproduto ou reação natural a uma palavra de crítica, de desaprovação ou ao sentimento de exclusão do meio. E, se de outro lado, depende do que posso adquirir para ser valorizado, a disputa, o egoísmo, o individualismo, a avareza é que marcará as nossas motivações, se inflamando sempre em nós quando os nossos desejos forem frustrados.

Existe muita gente sendo vitimada pela sociedade, sendo tentada pelas compulsões do mundo capaz de lhes roubar a alma ou a identidade. Não podemos nos esquecer que Cristo veio para nos libertar. Ser cristão é ser eminentemente livre; é ter o direito de ser quem somos. E essa é sempre a tentação que enfrentaremos: o perigo de perder a nós mesmos. O próprio Jesus foi tentado com as três compulsões básicas que constrói a identidade falsa, aprisionada na aceitação do meio: Primeiro, a tentação de ser capaz, de mostrar o seu valor, a sua relevância, causar impacto: “Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se transformem em pães”. Segundo, a tentação de ser espetacular, reconhecido, famoso: “Se és Filho de Deus, atira-te abaixo”. A ambição de ser uma estrela ou herói individual, tão comum na nossa sociedade competitiva, numa cultura de “big brother”, mas Jesus se recusou ser um super-homem. Ele não veio para se mostrar. Terceiro, a tentação de ser poderoso, ter influência e dinheiro: “Tudo isso te darei, todos os reinos deste mundo e a sua glória”. Não fomos chamados para ser poderosos, mas simplesmente para amar. Essa é a nossa identidade.

Quando quem somos passa por nos mostrar a nossa relevância e impacto, por sermos espetaculares, por termos poder e influência é de um falso e vazio que estou falando. O que realmente somos não passa por nada disso, mas se constrói na aceitação de uma voz anterior: “Este é o meu Filho amado, em quem tenho prazer” (Mt 3:17). O amor incondicional de Deus é a única fonte da construção de nossa real identidade. Quando Jesus ouviu essa voz do Pai ele ainda não tinha tido tempo de realizar absolutamente nada: não tinha pregado qualquer palavra; não tinha feito qualquer milagre; não tinha curado ninguém, não tinha expulsado qualquer demônio, não tinha feito o seu sacrifício na Cruz. Ele era amado pelo que realmente ele era e não pelo que era capaz de fazer. Não somos o que fazemos ou o que temos, somos muito mais do que isso. Toda a nossa busca por relevância, reconhecimento e poder, é na verdade uma desesperada tentativa de suprir a nossa baixa-estima, a dúvida que temos quanto ao amor e a aceitação de nós mesmos.

“Tu és o meu Filho amado”. Isso nos basta para saber quem somos e tão somente vivermos em contemplação e doação da vida, como expressão do encontro com essa voz que nos identifica, que nos valoriza e constrói os valores da nossa identidade e felicidade por sermos quem somos.

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