Autor: Josivaldo de França Pereira
Então, lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse, mas os discípulos os repreendiam. Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus. Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele. Então, tomando-as nos braços e impondo-lhes as mãos, as abençoava.
(Mc 10.13-16)
A passagem supra citada aparece também nos registros de Mateus e Lucas. João a omite, certamente por uma questão de propósito. Entendemos que cada evangelista procurava relatar, de tudo quanto Jesus dizia, o que era mais relevante à situação de seus leitores originais.
I
Marcos, apesar de entre os quatro escritores ser o autor do Evangelho mais curto, costuma enriquecer com mais detalhes os ensinamentos de Jesus. Nesta passagem (Mc 10.13-16) seu relato é mais longo, além de ser o único escritor a sublinhar o que Jesus sentiu quando os discípulos repreendiam aos que “lhe trouxeram algumas crianças para que as tocasse”. Diz ele que Jesus “indignou-se” (eganáktesen). Somente aqui se usa esta palavra indicando ira, com respeito a Jesus. “Com certeza a indignação de nosso Senhor era um complemento de seu amor. Estava indignado com seus discípulos porque amava de forma mui profunda e terna os pequeninos e aos que os traziam”.
Os discípulos subestimaram o valor das crianças e ignoraram a verdadeira natureza do reino de Deus. Não é preciso que a criança chegue primeiro à vida adulta para poder participar do reino; ao contrário, é o adulto que precisa se converter e se tornar como criança para entrar nele (cf. Mt 18.2-4).
O exemplo da criança não salienta a inocência nem a humildade dela, mas sua receptividade e dependência. Semelhantemente, Jesus não está dizendo que seus discípulos devem imitar “qualidades infantis” como inocência, pureza ou humildade. O que Jesus quis ensinar é que o reino de Deus não é ganho ou comprado por obras ou merecimento. É necessário “receber o reino de Deus” como dádiva, como a criança que recebe um presente de um adulto responsável. Assim, devemos receber o reino de Deus do mesmo modo como uma criança recebe alguma coisa. Da mesma forma que a criança é receptiva e dependente, devemos confiar em Deus e receber dele o reino como um dom de Sua graça.
II
Os discípulos não repreendiam diretamente as crianças, mas isso não os tornou menos culpados perante Jesus. Para o Mestre, repreender aqueles que querem trazer a Ele suas crianças é o mesmo que rejeitar as próprias crianças. Mais que isso, é impedi-las de entrar no reino de Deus.
Por que os discípulos os repreendiam? Provavelmente por acharem que o Mestre estava cansado e não queria ser incomodado e/ou porque pensassem que as crianças (paida, podem ter entre 8 dias e 12 anos) eram muito jovens para entender a Jesus, pois os meninos judeus só poderiam tomar sobre si a responsabilidade de cumprir a Lei aos treze anos. Um ditado rabínico dizia que dar atenção às crianças “era uma perniciosa perda de tempo”.
Na época do Novo Testamento os adultos normalmente ignoravam as crianças. As crianças eram consideradas insignificantes e indignas de atenção; não podiam reivindicar coisa alguma. Podiam somente receber o que lhes era oferecido pelos adultos. Naquela cultura as crianças não eram valorizadas. Jesus, no entanto, ficou indignado com seus discípulos, porque Ele valoriza as crianças. “Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus”, disse Jesus. A atitude dos discípulos desagradou a Jesus porque Ele é o amigo número 1 das crianças e sempre terá tempo para elas. Cristo ama as criancinhas. Ele as toma nos braços e as abençoa.
III
Mulholland comenta: “A desumanização da criança, tão comum na antigüidade, tem paralelo no abuso e no abandono de crianças de hoje”. São aterradoras as constantes notícias de exploração infantil em todos os sentidos. Da babá espancadora ao pai e mãe desalmados, do narcotraficante ao governo déspota que a utiliza como mero instrumento de guerra, do explorador da mão-de-obra barata ao pároco pedófilo depravado.
E nós, evangélicos, estamos honrando nossas crianças como deveríamos? Estamos aproximando nossas crianças do reino ou as afastamos dele com nossas palavras e exemplos? Na escola dominical elas estão nas melhores salas e com os melhores professores? Há espaço para elas no culto público da igreja? Inculcamos em suas cabecinhas a Palavra do Senhor (cf. Dt 6.7) e as ensinamos no caminho em que devem andar (cf. Pv 22.6)? Oramos com elas e por elas? Levamos a sério o culto doméstico? Enfim, o reino de Deus está sendo investido no coração de nossos filhos?
Muitas vezes vislumbramos um futuro profissional promissor para os nossos filhos, o que em si não é errado, mas lamentavelmente nem sempre temos a mesma disposição quando o assunto é o investimento de suas vidas no reino de Deus.
Pais crentes que pouco oram e lêem a Bíblia com seus filhos, que vão esporadicamente à igreja e acham que faltar na escola dominical e/ou no culto vespertino não tem tanto problema, não avançam na vida cristã e pouco contribuem para o progresso espiritual da família. Nossos filhos desejam e precisam ver em nós seriedade e compromisso com as coisas de Deus. Quer seja na igreja, fora dela, e principalmente em casa.
Josivaldo de França Pereira é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil em Santo André-SP. Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição – SP. Licenciado em Filosofia pela Faculdade Associada do Ipiranga – SP. Mestre em Missiologia pela Faculdade Teológica Sul Americana de Londrina-PR e Doutorando em Ministério pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper/Mackenzie – SP. É secretário de missões do Presbitério Santo André (PRSA), autor do livro Atos do Espírito Santo (Ed. Descoberta, 2002) e de vários ensaios e artigos bíblicos disponíveis na Internet.
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