A consciência missionária de João Calvino

Autor: Antonio Carlos Barro
Introdução

João Calvino, o reformador do século XVI, freqüentemente tem sido acusado por muitos historiadores de ter sido totalmente inoperante quanto ao mandato missionário dado à igreja de fazer discípulos de todas as nações. O propósito deste trabalho é oferecer uma reflexão com o fim de demonstrar que esta não é a verdade acerca do reformador. Podemos encontrar em Calvino elementos missiológicos reveladores de que ele possuía consciência de que o evangelho deveria ser anunciado em outros lugares e para outros povos.

I. Calvino é acusado de não possuir uma mente missionária

“Que Calvino e os seus seguidores de Genebra no século XVI não possuíam nenhum interesse em missões é freqüentemente tomado como axiomático, porque eles não enviaram imediatamente missionários para a Índia, África ou China quando introduziram a Reforma em Genebra.”(1) Será que essa afirmação é verdadeira em tudo o que representa? Podemos aceitar a idéia de que João Calvino foi um completo fracasso em missões e que nada fez para contribuir para o avanço do evangelho no mundo?

Durante os dias da Contra-Reforma, o cardeal Roberto Bellarmine incluiu entre as dezoito marcas da verdadeira igreja a sua atividade missionária. Ele disse: “Os heréticos nunca converteram pagãos ou judeus à fé, mas apenas perverteram cristãos. Neste mesmo século os católicos converteram muitos milhares de pagãos do novo mundo.”(2) Essas palavras foram ditas com o fim de demostrar que os reformadores eram hereges. Colocar a atividade missionária como marca da igreja verdadeira foi apenas um subterfúgio para afirmar isso. Foi também o historiador católico e professor de missões Joseph Schmidlin, de Münster, que afirmou que os reformadores não estavam conscientes da idéia de fazer missões e assim não mostraram nenhuma atividade missionária.(3) Como nós podemos ver, o pensamento de que Calvino e os outros reformadores não possuíam nenhuma consciência missionária teve início entre os católicos romanos, com o propósito de enfraquecer o movimento reformado ante a opinião pública da época.

Tempos depois, a mesma idéia foi esposada pelo protestante Gustav Warneck, quando afirmou:

Nos reformadores não encontramos nenhuma ação missionária, bem como a idéia de missões, no sentido em que entendemos missões hoje. O novo mundo de pagãos, que foi descoberto além mares, estava fora do alcance dos reformadores. Ainda que isto tenha algum peso, a razão fundamental que os bloqueou era mais teológica do que qualquer outra coisa. Essa razão teológica impediu que os mesmos tivessem uma atividade missionária e também uma direção missionária.(4)

William Hogg afirmou que “os reformadores não evidenciaram nenhuma preocupação com missões ultramarinas aos não cristãos.”(5) A mesma linha de pensamento é encontrada em Frank Littel quando diz que “a teologia de Calvino, com seu ativismo inerente, sua preocupação com a extensão do reino, e sua ênfase sobre a responsabilidade do eleito para com a humanidade e a sociedade, tem muitas implicações missionárias, mas Calvino não associou essas coisas com a obrigação missionária.”(6) Ainda que Littel seja mais complacente do que Hogg quando reconhece que a teologia de Calvino tem implicações missiológicas, ele conclui dizendo que “as evidências irrefutáveis e bem conhecidas demonstram que os reformadores não possuíam qualquer reconhecimento da dimensão missionária da igreja.”(7)

Mais recentemente, vimos o historiador e missiologista Ralph Winter afirmar que “a despeito do fato de que os protestantes ganharam no fronte político, e, em grande medida, alcançaram a capacidade de reformular sua própria tradição cristã, eles nem mesmo falaram sobre missões, e aquele período terminou com a expansão católica européia nos sete mares, tanto política como religiosa.”(8)

As opiniões formuladas até agora foram e têm sido questionadas por outros estudiosos. Missiologistas e teólogos de renome como Schlatter, Ernst Pfisterer, Walter Holsten, Samuel Zwemer, Stanford Reid, J. van den Berg, James Mackinnon, R. Pierce Beaver e David Bosch têm apontado para uma outra perspectiva e afirmado que podemos encontrar nos reformadores aquilo em que eles têm sido acusados de serem falhos.

Quando Calvino e os reformadores são acusados de não possuírem uma mentalidade missionária, o que é que isto realmente significa? Qual é o padrão pelo qual eles estão sendo julgados? É certo que Calvino não escreveu, entre os seus muitos livros, nenhum tratado missiológico, mas também é certo que ninguém virá a encontrar algo que tenha escrito contra a idéia de missões. O ponto que queremos ressaltar aqui é que se Calvino não escreveu sobre missões, isso não é motivo suficiente para afirmar que ele não reconheceu a dimensão missionária da igreja.

Quando Winter reconhece que a expansão católica romana se deu política e religiosamente em todos os cantos da terra, ele mesmo se esquece de analisar em quais circunstâncias esta expansão veio a ocorrer. Naqueles dias a Igreja Católica estava intimamente ligada ao poder dos governantes. Em 1493, o Papa Alexandre VI escreveu um documento afirmando a soberania da Espanha e concedeu-lhe a possessão de todas as terras descobertas, tanto passadas como futuras, no ocidente. O Tratado de Tordesilhas regulamentou em 1494 as novas descobertas, quando determinou-se o que seria da Espanha e o que seria de Portugal.

O preconceito contra os reformadores pode ser ainda encontrado em K. S. Latourette, historiador batista, quando diz: “Nenhum dos príncipes protestantes estava profundamente preocupado em saber se os povos não cristãos poderiam ser ensinados sobre a fé cristã, como estavam preocupados os monarcas de países católicos como Espanha e Portugal.”(9) Essa declaração é duvidosa e deve ser questionada, porque hoje nós sabemos muito bem que os reis da Espanha e Portugal estavam tão somente interessados nos bens e riquezas do novo mundo. Pouco interesse havia pelas almas dos seus habitantes.

Uma outra pergunta que deveríamos fazer é por que tão somente Portugal e Espanha estavam interessados na divulgação da fé cristã? Por que os outros países europeus não manifestaram o mesmo interesse naquele período da história? Quanto a isto o próprio Latourette responde: “Em algumas terras, como na França, os católicos romanos estavam por demais absorvidos na luta contra o protestantismo para vir a ter energias ou pensamentos quanto a missões estrangeiras.”(10)

Essa declaração é muito interessante e merece reflexão. Latourette, que é um historiador sério e protestante, encontra como desculpa para os católicos franceses não estarem envolvidos em missões o fato de que eles estavam absorvidos em lutas contra o protestantismo. Por que então o mesmo argumento não pode ser usado para os protestantes? Eles também estavam absorvidos lutando contra os católicos franceses para sobreviverem. Se os católicos franceses não tinham energias, por que teriam os protestantes? Se a desculpa é valida para um lado, também deve ser válida para o outro! A não ser que o preconceito do historiador o impeça de declarar essa verdade. Finalmente, encontramos nos escritos de G. Baez-Camargo, historiador mexicano, estas palavras:

As condições especiais nas quais o movimento protestante estava se desenvolvendo naquele tempo na Europa precisavam ser levadas em consideração. As igrejas reformadas foram colocadas sob provações severas na tentativa de preservar a sua própria existência contra uma oposição crescente e perseguição cruel. Era o período em que a consolidação local tinha que receber a suprema prioridade. O trabalho expansionista, em particular as missões em terras distantes, com meios de comunicação precários e perigosos , eram vistos não como urgência imediata e provavelmente então vistos como secundárias ou que o tempo ainda não era chegado.(11)

Uma outra questão interessante é se podemos chamar a conquista das Américas, como atividade missionária. Os missionários católicos, com raras exceções, estavam servindo muito mais aos tronos de Portugal e Espanha do que à igreja. “Debaixo do manto da cristianização, uma exploração inescrupulosa da população indígena e um genocídio sem paralelos foram estabelecidos.”(12) O historiador cubano Justo González, em seus escritos sobre a história da expansão romana no nosso continente, oferece uma descrição acurada do movimento missionário católico.(13)

Calvino jamais teve o poder de um papa ou o de um rei dando-lhe apoio. A verdade é que ele mesmo teve que ser um refugiado em Genebra para escapar das mãos dos religiosos católicos. Ao invés de culpar Calvino por não ter tido o mesmo sentimento missionário encontrado na Igreja Católica, devemos agradecer a Deus por tê-lo preservado e não ter legado a nós esse passado missionário de morticínio e dominação, que hoje é rejeitado por grande parte dos teólogos católicos, especialmente os ligados à Teologia da Libertação.

Outro aspecto a se ter em mente é que os reformadores são julgados com base nos padrões do que se entende por missões atualmente. Ou seja, usa-se um padrão contemporâneo para estabelecer se o que Calvino e os outros reformadores fizeram era missão ou não. A primeira coisa a ser feita então é definir o que é missão. Poderíamos aceitar que fazer missão é levar a salvação de Cristo somente a povos que vivem em terras distantes? Certamente esse é um dos aspectos da missão da igreja, mas a missão cristã é muito mais abrangente. Donald McGavran, conhecido como o fundador do Movimento de Crescimento da Igreja, afirma que missão “é a busca divina, vasta e contínua.”13 Afirma ainda mais:

Neste mundo, missão tem que ser o que Deus deseja. Não é uma atividade iniciada por mãos humanas, mas a missio Dei, a missão de Deus, que permanece no controle da mesma. Portanto, os problemas da missão devem ser vistos à luz da vontade revelada de Deus. Sendo o Deus que ele é e que foi revelado em Cristo, que tipo de missão ele deseja? Isto é o que significa missão, tanto na sua essência como na sua teologia.(14)

Devemos ter em mente que a idéia de missão em terras distantes é bíblica (Mateus 28), mas, no contexto do século XVI, essa idéia estava também intimamente ligada ao sentimento de superioridade encontrado no cristianismo ocidental. O sentimento de conquista e dominação foi um poderoso elemento motivador para as missões católicas. Zwemer está certo quando afirma que “João Calvino viveu no século XVI e não no século XIX. Nós não podemos esperar que ele tivesse uma visão mundial como aquela encontrada em William Carey.”(15)

A seguir, o nosso propósito é mostrar que Calvino possuía um conceito de expansão da fé cristã.

II. Pensamento missiológico em João Calvino

João Calvino foi um escritor incansável. Foi autor não somente das famosas Institutas, mas também de comentários de quase todos os livros da Bíblia, bem como de centenas de cartas e sermões. Quando lemos as suas cartas e os comentários bíblicos por ele produzidos, encontramos neles uma preocupação com a divulgação do evangelho e com a falta de pastores para as igrejas da época.

A. Cartas

O que nos impressiona quando lemos as cartas de Calvino é o tremendo fardo que pesava sobre os seus ombros. Em carta escrita a Sulcer ele diz: “Em todas as partes da França, os irmãos estão implorando a nossa assistência.”(16) De todas as partes surgiam cartas solicitando a Calvino que providenciasse pastores e ele sempre procurava um modo de atender a esses apelos. Ele escreveu, por exemplo, a M. de Passy sobre a necessidade urgente de se tornar um ministro do evangelho: “O Monsenhor, Conde d’Eu, e a igreja de Nevers, pediram-me para orar, exortar, convocar e, se preciso fosse, conjurá-lo para que você cumpra com o seu dever para com aquele pobre povo com o qual você está em débito.”(17) A favor da igreja de língua italiana em Genebra, ele escreveu um carta a Pedro Mártir apressando-o para vir a Genebra: “Quando os seus compatriotas compartilham comigo as suas necessidades, perdoe se me coloco ao lado deles… é meu dever exortá-lo para que venha em auxílio destas pessoas da sua nação…”(18)

Ralph Winter chama este tipo de missão de Evangelismo E-2.(19) Trata-se da missão em que a pessoa cruza barreiras geográficas, mas não culturais, para ministrar ao seu próprio povo. Esse tipo de missão Calvino já realizava há muito tempo, mas o próprio Winter deixa de reconhecer essa verdade no reformador quando afirma que ele não possuía consciência missionária.

B. Comentários

Com respeito à Grande Comissão, Calvino menciona: “O Senhor ordena aos ministros do evangelho que preguem em lugares distantes, com o propósito de espalhar a salvação em cada parte do mundo.”(20) Mais de uma vez ele afirmou esta convicção. Quando comenta 1 Tm 2.4 ele declara: “Nenhuma nação da terra e nenhum segmento da sociedade está excluído da salvação, porque Deus deseja oferecer o evangelho a todos e sem nenhuma exceção.”(21)

Quando nos familiarizamos com a teologia de Calvino, podemos concluir com certeza que ele entendia perfeitamente que Cristo era a única esperança para a humanidade. Exemplos disso podem ser encontrados nos seguintes textos bíblicos: o evangelho é oferecido aos sábios e não sábios (Rm 1.14-16); deve ser pregado em todos os lugares através da providência divina (Rm 10.14); deve ser pregado consistentemente entre todas as nações (Rm 16.26); Cristo é o Senhor bem como o Salvador de todos (Is 2.4); na cruz de Cristo, como num esplêndido teatro, a incomparável bondade de Deus é manifesta diante do mundo (Jo 13.31), e agora sabemos que fora de Cristo existe tão somente confusão em todo o mundo (Jo 12.31).

Por causa das circunstâncias da sua permanência em Genebra, Calvino fez uso de outros elementos para divulgar a fé cristã. Um destes foi a imprensa, que veio a se tornar o principal meio de comunicação nas mãos do reformador. Em 1557 ele permitiu que os seus sermões fossem impressos. Rapidamente, eles foram traduzidos para várias línguas como o alemão, latim, francês, italiano, tcheco, inglês, espanhol, holandês e até mesmo o grego. Apesar de não possuir um boa saúde e ser um homem muito ocupado, Calvino fez o que pôde para divulgar a fé cristã e mostrar a sua gratidão a Deus.

III. A prática missionária de João Calvino

Mostraremos agora que Calvino foi mais além do que escrever sobre a fé cristã. A verdade é que ele foi um instrumento poderoso para deixar alicerces que viriam a ser grandemente usados para a divulgação do cristianismo.

A. A Academia de Genebra

Em abril de 1538, Calvino foi expulso de Genebra e procurou refúgio em Estrasburgo, onde se tornou pastor de uma igreja de refugiados franceses. Em setembro de 1541 ele retornou a Genebra e ali morou até a sua morte em maio de 1564. Sob sua liderança, Genebra veio a se tornar uma cidade de refúgio. Pessoas que eram perseguidas por causa da fé cristã encontravam um lugar cristão e seguro naquela cidade.

Em 5 de junho de 1559 foi fundada a Academia de Genebra. Esta foi uma das grandes realizações de Calvino e por essa academia ele demonstrava um grande entusiasmo. Conforme aponta Mackinnon, “o estabelecimento da academia foi em parte realizado por causa do desejo de suprir e treinar missionários evangélicos.”(22) Charles Raynal afirma: “Desde o princípio a academia esteve cheia de estudantes. A maioria veio de outros países, e de todos os lugares onde havia comunidade de língua francesa chegavam pedidos de pastores e professores. O desejo de Calvino era preencher essas necessidades e espalhar os princípios da Reforma.”(23)

Com o fim de cumprir o seu propósito, Calvino impôs uma rigorosa disciplina acadêmica. Os estudantes recebiam uma educação humanista bem ampla, com ênfase em línguas e efetiva comunicação escrita e verbal. A idéia de Calvino “era de que, quando propriamente treinados, os estudantes poderiam voltar a seus próprios países e espalhar o evangelho como missionários. Nesse sentido, ele procurou tornar Genebra um centro missionário para espalhar a Reforma e os seus ensinos por toda a Europa e outras partes do mundo.”(24)

Ao estabelecer a Academia, Calvino teve a oportunidade de suprir a necessidade de pastores. Pedidos de auxílio eram constantes e chegavam de vários lugares. No dia 6 de setembro de 1557, por exemplo, chegaram cinco pedidos desse tipo. No dia 13 de julho de 1559, cerca de seis pedidos, e no dia 28 de agosto do mesmo ano foram registrados mais seis pedidos.(25)

De certa forma, existem muitas semelhanças entre a Academia de Calvino e a Herrnhut de Zinzendorf. As duas eram lugares para refugiados, devotadas a uma vida cristã autêntica e ambas tinham a intenção de preparar pessoas para a evangelização; entretanto, sempre existe a tendência de diminuir as conquistas de Calvino. A missão que a liderança da igreja de Genebra possuía era a de suprir novas igrejas com pastores. Essa “era a missão que foi colocada em suas mãos, e para a qual eles estavam preparados para responder com todos os seus recursos, tanto materiais quanto espirituais.”(26)

B. Europa

Devemos voltar nossa atenção para a Europa e ver que tipo de influência Calvino teve nesse continente. Os autores reformados concordam que a responsabilidade primária dos reformadores era a Europa, e isso é verdade quando falamos sobre Calvino. O nosso propósito aqui não é desenvolver uma compreensão profunda da história da Reforma na Europa, mas sim destacar alguns países aonde Calvino enviou pregadores, como forma de mostrar que ele preocupou-se com a obra da evangelização.

Assume-se geralmente que dentre os países influenciados pelo Calvinismo, principalmente na Europa, a Escócia é o que mais se destaca.(27) Quando o estudioso George Wishart, um discípulo de Calvino e de Zwínglio, foi queimado na fogueira em 1546, o seu guarda-costas era John Knox, que conseguiu fugir para Genebra e veio a tornar-se discípulo de Calvino. Mais tarde, ele veio a ser o grande reformador protestante da Escócia.(28)

O interesse de Calvino pelo progresso da fé na Inglaterra é bem conhecido. Ele escreveu muitas cartas de encorajamento aos líderes cristãos quanto ao trabalho de expansão do Evangelho. É também muito importante salientar a influência da Bíblia de Genebra, publicada em 1560. Ela tornou-se a Bíblia da família inglesa. Como Philip Hughes destaca, “apesar de Calvino não ter participado na produção ou nas anotações da Bíblia de Genebra, ele deve receber crédito pela existência e características da mesma. Pois não havia outro lugar, a não ser Genebra, no qual uma Bíblia como essa poderia ser produzida.”(29)

A respeito da reforma na Hungria, citamos o testemunho de Kalman D. Toth:

Nos idos de 1550, quando a Reforma Helvética fez a sua primeira conquista (1551-52) e se estabeleceu por volta de 1556, havia sinais de crescimento da autoridade e reputação de Calvino. Ambrósio Moibanus, um reformador em Breslau, em suas cartas datadas de 1º de setembro de 1550 e de 24 de março de 1552, assegurava a Calvino que o seu trabalho tinha sido recebido com muito entusiasmo na Polônia e na Hungria. Em 26 de outubro de 1557, Gal Huszar, um reformador húngaro, relatou a Heinrich Bullinger sobre a grande popularidade do trabalho de Calvino na Hungria.(30)

Outro país que Calvino influenciou significativamente foi a Holanda. Ele enviou para aquele país o primeiro pregador calvinista do qual se tem conhecimento. No final de 1554, solicitou a Pierre Brully para ir pregar em Tournai e Vallenciennes. Conforme W. Robert Godfrey, “Brully estava pregando na Holanda há somente três meses quando foi capturado e queimado por causa de sua fé. Porém, seu trabalho corajoso em construir a igreja visível iniciou uma penetração lenta mas constante do movimento reformador no sudeste dos Países Baixos.”(31) Além de Brully, outros pastores como Guido de Bres, autor da Confissão Belga, Peter Danthenus e Peter Marnix van St. Agldegone eventualmente voltaram à Holanda para pregar e freqüentemente sofreram perseguições por causa da fé cristã. Calvino também enviou uma carta para encorajar Lasco, Tricesius e outros líderes no trabalho de tradução da Bíblia para o polonês.(32)

A França foi o país no qual a influência de Calvino tornou-se mais significativa. A maioria dos refugiados era da França e eles tinham muitas coisas em comum com as pessoas de Genebra.

Os resultados do trabalho de Calvino não devem ser subestimados. Muito mais pode ser dito sobre a influência de Calvino na Europa, mas o que foi descrito acima nos dá uma idéia da sua importância no estabelecimento da igreja naquele continente. Estas palavras de Reid são de grande valia:

Apesar das dificuldades da geografia física, dos obstáculos causados por oposições políticas e da perseguição instigada pelas autoridades da Igreja Católica Romana, o Calvinismo obteve sucesso na expansão de sua influência e no alargamento de suas fronteiras, ao ponto de ser considerado o inimigo número um do Catolicismo Romano e do governo absolutista.(33)

C. Missão ao Brasil

A primeira tentativa missionária protestante é melhor sumariada por R. Pierce Beaver em “A Missão Genebrina ao Brasil,” escrito em 1967.(34) Mais recentemente temos o relato de Amy Glassner Gordon, “O Primeiro Esforço Missionário: Por que Falhou?,”(35) no qual tenta explicar as causas do fracasso da mesma. A seguir tentaremos mostrar que Calvino tinha consciência missionária e que a mesma foi demonstrada nessa viagem ao Brasil.

Em 1555, sob a liderança de Nicolas Durand de Villegaignon, um grupo de 600 franceses chegou à Baía da Guanabara, para estabelecer uma colônia francesa no Brasil. Cheio de problemas com seus homens, Villegaignon escreveu a Calvino em Genebra, pedindo que fossem enviados ministros para estabelecer ordem e trazer religião aos colonos.(36) Jean de Léry, que eventualmente tornou-se um pastor, declarou: “A Igreja de Genebra agradeceu imediatamente a Deus pela extensão do reino de Jesus Cristo a um país tão distante, tão diferente, e entre uma nação inteira sem o conhecimento do Deus verdadeiro.”(37) Esse testemunho de Léry mostra que a liderança em Genebra não estava cega ou surda ao mundo sem Deus.

A igreja enviou um grupo de ministros em 1556, acompanhados de colonos calvinistas. Vários problemas surgiram na colônia e Villegaignon decidiu expulsar os calvinistas do Forte Coligny, não sem antes matar vários deles. Os ministros foram viver com os índios tupinambás, enquanto esperavam por um navio para levá-los de volta à França. Quando um pequeno navio chegou, arranjou-se lugar para quinze pessoas. O navio ainda estava na costa quando afundou. Cinco calvinistas retornaram ao Forte Coligny e três deles, Jean du Bordel, Mathieu Verneuil e Pierre Bourdon foram mortos por Villegaignon. Este episódio ficou conhecido como o “Martírio da Guanabara.” “A curta missão,” comenta R. P. Beaver, “não teve frutos em conversões. Mas tem uma importância histórica. A Igreja de Genebra, quando desafiada a fazer missão, respondeu imediatamente.”(38) Amy Gordon declara:

Se a missão ao Brasil não obteve sucesso, pelo menos levantou sérios questionamentos para os calvinistas, e mesmo para Calvino, sobre assuntos que necessitavam ser tratados antes que as igrejas protestantes se envolvessem em missões e desenvolvessem sua vocação missionária. O episódio do Brasil, visto dessa perspectiva, tem uma importância na história missionária protestante que vai além da curta história da colônia em si.(39)

Se esse empreendimento tivesse obtido sucesso, a história das missões poderia ter sido diferente em relação ao destino de alguns países. Não há dúvida de que os países que foram colonizados pelos católicos estão entre os mais subdesenvolvidos no mundo de hoje. A pergunta que permanece e que não pode ser respondida é: Será que o Brasil seria hoje um país melhor se os calvinistas tivessem permanecido aqui desde o começo?(40)

Conclusão

Aqueles que concordam com a idéia de Warneck de que Calvino foi cego e surdo quanto a missões, não podem negar a tremenda importância da sua teologia e prática para o mandato missionário. J.van den Berg diz sabiamente sobre Calvino: “Nem sua teoria nem sua atitude prática sobre missões foram realmente negativas; ao contrário, debaixo de uma superfície de aparente desinteresse para com as missões, um potente fermento missionário estava escondido.”(41)

A paixão de trazer glória a Deus através do mandato missionário se tornou evidente quando os calvinistas tiveram liberdade e condições de avançar. Aqueles que desejam se aprofundar mais sobre o assunto devem ler os artigos de J. van den Berg e Samuel Zwemer. Vale a pena mencionar as palavras de Zwemer, quando ele ressalta que “as igrejas de tradição reformada, mais do que qualquer outro ramo da igreja, foram as pioneiras no mundo islâmico.”(42)

É óbvio que Calvino e o movimento que ele começou não foram perfeitos e a história está aí para comprovar isso, mas a sua mensagem ainda é relevante hoje. Seu amor a Deus e à sua Palavra também deve ser o nosso. Seu zelo vindo da Reforma e o mandato missionário que se seguiu ainda permanecem como desafio para as igrejas reformadas de hoje.

English Abstract

The main purpose of this article is to answer the charge usually made by some missiologists that John Calvin had no missionary awareness. In the first part, Barro attempts to refute the evidence brought by some authors, especially the historian Gustav Warneck. One is that Calvin did not write anything about missions. Other, that his theology produced a paralyzing effect because of its emphasis on God’s sovereignty. Still other, that the reformer did not follow consistently the missionary implication of his theology. Barro shows that some of these charges are prejudiced or represent a distortion of Calvin’s thought and actions. In favor of Calvin’s missionary concern, he argues from Calvin’s letters and commentaries, where samples of the reformer’s awareness are clearly stated. Then he goes on to give some historical evidence of that awareness, such as the role of Calvin’s Geneva Academy in preparing pastors and missionaries to supply workers for distant places. Other evidence brought by Barro is Calvin’s influence throughout Europe and his participation in the Brazilian missionary enterprise in 1555. His conclusion is that Warneck and his followers cannot deny the importance of Calvin’s theology and practice for the Church’s missionary enterprise.

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1 W. Stanford Reid, “Calvin’s Geneva: A Missionary Centre,” The Reformed Theological Review 42:3 (1983), 65. Minha tradução.

2 Stephen Neil, História das Missões (São Paulo: Vida Nova, 1989), 226.

3 Samuel M. Zwemer, “Calvinism and the Missionary Enterprise,” Theology Today 7:2 (1950), 206.

4 Gustav Warneck, Outline of a History of Protestant Missions (Nova York: Fleming H. Revell, (1901), 9. Minha tradução.

5 William R. Hogg, “The Rise of the Protestant Missionary Concern, 1517-1914,” em The Theology of the Christian Mission, ed. G. H. Anderson (Nova York: McGraw Hill, 1961), 95. Minha tradução.

6 Frank H. Littel, “The Free Church View of Missions,” em The Theology of the Christian Mission, ed. G. H. Anderson (Nova York: McGraw Hill, 1961), 99. Minha tradução.

7 Ibid. Minha tradução.

8 Ralph D. Winter, “The Kingdom Strikes Back: The Ten Epochs of Redemptive History,” em Perspectives on the World Christian Movement, eds. Ralph D. Winter e Steven C. Hawthorne (Pasadena: William Carey Library, 1981), 153. Minha tradução.

9 Kenneth S. Latourette, History of the Expansion of Christianity, Vol. III (Nova York: Harper and Row, 1939), 26. Minha tradução.

10 Ibid., 27. Minha tradução.

11 G. Baez-Camargo, “The Earliest Protestant Missionary Venture in Latin America,” Church History 21:2 (Junho 1952), 138. Minha tradução.

12 David J. Bosch, Witness to the World (Atlanta: John Knox, 1980), 116-117. Minha tradução.

13 Justo L. González, Uma História Ilustrada do Cristianismo, 10 vols. (São Paulo: Vida Nova, 1980-1996).

13 Donald A. McGavran, Understanding Church Growth (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), 24.

14 Ibid., 23. Minha tradução.

15 Zwemer, “Calvinism and the Missionary Enterprise,” 207. Minha tradução.

16 Jules Bonnet, ed., Letters of John Calvin, Vol.IV (Nova York: Lenox Hill, 1972), 130. Minha tradução.

17 Ibid., 254-255. Minha tradução.

18 Ibid., Vol. III, 313-314. Minha tradução.

19 Ralph D. Winter, “The New Macedonia: A Revolutionary New Era in Mission Begins,” em Perspectives on the World Christian Movement, eds. Ralph D. Winter e Steven C. Hawthorne (Pasadena: William Carey Library, 1981), 299.

20 João Calvino, Commentary on a Harmony of the Evangelists Matthew, Mark, and Luke, Vol. III (Grand Rapids: Baker, 1979), 384. Minha tradução.

21 João Calvino, Commentary on the Epistles to Timothy, Titus, and Philemon (Grand Rapids: Baker, 1979), 54-55. Minha tradução.

22 James MacKinnon, Calvin and the Reformation (Londres: Penguin Books, 1936), 195. Minha tradução.

23 Charles Raynal, “The Place of the Academy in Calvin’s Politics,” em Colloquium in Calvin Studies II, eds. John H. Leith e Charles Raynal (Davidson, North Carolina, 1984), 101. Minha tradução.

24 Reid, “Calvin’s Geneva,” 67. Minha tradução.

25 Mackinnon, Calvin and the Reformation, 196.

26 Reid, “Calvin’s Geneva,” 66. Minha tradução.

27 Lestringant é de opinião que Calvino e os seus seguidores amputaram o sul da Europa como campo de disseminação das suas idéias por ser idólatra e papista. Frank Lestringant, “Geneva and America in the Renaissance: The Dream of the Huguenot Refuge 1555-1600,” Sixteenth Century Journal 26:2 (1995), 289.

28 J. D. Douglas, “Calvinism’s Contribution to Scotland,” em John Calvin: His Influence in the Western World, ed. W. Stanford Reid (Grand Rapids: Zondervan, 1982), 219.

29 Philip E. Hughes, “Calvin and the Church in England,” em Reid, John Calvin, 201. Minha tradução.

30 Kalman D. Toth, “The Helvetic Reformation in Hungary,” em Reid, John Calvin, 167-68. Minha tradução.

31 W. Robert Godfrey, “Calvin and Calvinism in the Netherlands,” em Reid, John Calvin, 98. Minha tradução.

32 Mackinnon, Calvin and the Reformation, 203.

33 Reid, “Calvin’s Geneva,” 33. Minha tradução.

34 R. Pierce Beaver, “The Genevan Mission to Brazil,” The Reformed Journal (Julho-Agosto 1967).

35 Amy Glassner Gordon, “The First Protestant Missionary Effort: Why Did it Fail?” International Bulletin of Missionary Resarch 8 (Janeiro 1984), 12-18.

36 Ibid., 12.

37 Beaver, “The Genevan Mission to Brazil,” 16. Minha tradução.

38 Ibid., 20. Minha tradução.

39 Gordon, “First Missionary Effort,” 17. Minha tradução.

40 Uma posição contrária a esse empreendimento vem de John McGrath, quando afirma que “Crespin e Léry, e aqueles autores que os seguiram, foram motivados por um desejo de glorificar a causa calvinista. E enquanto o faziam eles tomaram a oportunidade de destruir a reputação de um indivíduo [Villegaignon] que havia rejeitado sua teologia e que mais tarde lutou contra seu partido durante a Guerra da Religião.” “Polemic and History in French Brazil, 1555-1560,” Sixteenth Century Journal 27:2 (1996), 396. Para McGrath é impossível detectar qualquer propósito religioso na missão de 1555 (p. 390), e o verdadeiro propósito da viagem foi a construção de um forte na Baía da Guanabara para facilitar o comércio francês e seus interesses estratégicos no Brasil (p. 391). Para o historiador Frank Lestringant o motivo da expedição ao Brasil foi imitar a Europa e implantar um centro de refúgio para os huguenotes no Brasil. Ibid., 289.

41 J. van den Berg, “Calvin’s Missionary Message: Some Remarks About the Relation Between Calvinism and Missions,” The Evangelical Quarterly 22:1 (1959) 172. Minha tradução.

42 Zwemer, “Calvinism and the Missionary Enterprise,” 214-15. Minha tradução.

= O Autor é pastor da Oitava IPB de Londrina (www.oitava.com.br) e fundador da Faculdade Teológica Sul Americana (www.ftsa.edu.br).

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