A África ou a morte!: o projeto civilizatório católico para a África Central (1864-1881)

Autor: Patrícia Teixeira Santos

Nesta comunicação, pretendo enfocar o projeto de evangelização para a África elaborado pelo Vigário Apostólico da África Central D.Daniel Comboni, no período de exercício desta sua função no continente (1864-1881). Este projeto se constituiu de uma série de postulados teológicos e práticas a respeito da atuação missionária na África e frisa a necessidade de eleger o negro africano como agente da própria evangelização. Acredito que este projeto de Comboni deseempenhou um papel dinamizador e revitalizador da cultura política católica na segunda metade do século XIX.
Os anos de 1864 a 1881 constituíram marcos cronológicos importantes na trajetória missionária de D. Daniel Comboni, pois compreenderam a elaboração do seu plano e a execução de uma série de medidas em prol da realização do seu projeto missionário na África. Foi um período rico em correspondências de D. Comboni para os bispos das principais dioceses italianas, a fim de conseguir missionários e recursos para a ocupação católica da África Central.
A morte de Comboni em 1881, transformou o destino das missões e dos institutos que fundara para a evangelização da África, na medida em passaram para a orientação dos Jesuítas. Além disso, a resistência islâmica no Sudão contra as invasões inglesas, fez com que os missionários tivessem que respeitar as pesadas limitações impostas as movimentações dos mesmos pelo colonialismo britânico após a vitória sobre os muçulmanos em1898.
Daniele Comboni, Vigário Apostólico da África Central, nasceu em Limone Sul Garda, cidade italiana ocupada pela Áustria, em 1831. Ingressou ainda bem jovem, no Instituto missionário do Padre N. Mazza em Verona, onde se preparou para o sacerdócio. Durante a sua formação, Comboni travou contato com a literatura martiriológica dos missionarios franciscanos na Ásia e com os relatos de diversos institutos missionários que tentaram instalar missões na África Central e que não obtiveram sucesso. Segundo Fidel González, os esforços para o estabelecimento de uma missão católica na África Central durante o século XIX, foram os maiores na história das missões, dado o número elevadíssimo de missionários mortos.
As missões se caracterizavam pelo anúncio do Evangelho e pela ação de se levar crianças africanas para a Itália, a fim de serem evangelizadas, preparadas e reinseridas, quando adultas, na realidade africana. Vale ressaltar, que o próprio Comboni conviveu na sua adolescência em Verona, com africanos no instituto missionário que estudou.
Os jovens africanos que eram levados para a Europa, foram afastados de suas famílias, pois o ambiente de origem era considerado nocivo, por não ser civilizado e evangelizado. No entanto, D. Comboni logo percebeu que os Resgatados, ao retornarem a África como missionários, não conseguiam se adaptar à realidade, na medida em que era muito difícil reencontrar todos os membros da família, por causa das fugas constantes ocasionadas pela a existência do tráfico interno de escravos promovido pelo islã sudanês. Além disso, havia também o problema da rejeição dos missionários pelas comunidades das quais os mesmos não faziam parte.
A partir disto, Comboni aprofundou seus estudos teológicos e missionários sobre a evangelização da África e do negro, tendo viajado a vários países europeus, a fim de conseguir recursos para o desenvolvimento de uma evangelização permanente. O prelado acreditava que esta só poderia ser engendrada pela criação de uma Igreja Católica nativa e para isto, era preciso permanecer na região. O Sudão foi o espaço primeiro para essa proposta, dado não ter sido até 1864, ocupado diretamente por uma potência européia.
Comboni recebeu apoio austríaco e de associações e irmandades católicas da França, Inglaterra, Rússia e EUA. Com os recursos que obteve, adquiriu propriedades em áreas não muçulmanas e nestas instituiu centros de estudos catequéticos para a África.
Diante de sua observação dos costumes dos povos islamizados na África, Comboni concluiu que o primeiro passo para a Igreja ser nativa, era cativar os muçulmanos através de suas famílias, base da manutenção da fé. Porém, a tentativa evangelizadora comboniana foi frustada, pois também as confrarias islâmicas sudanesas, diante da perda de influência política e religiosa, ressuscitou o Mahdismo, ou a crença islâmica na vinda do libertador.
Comboni incentivou a formação de famílias monogâmicas entre os convertidos não-muçulmanos que haviam sido cristianizados, para que as novas “células familiares”fossem “pequenas igrejas”. Aspectos fundamentais no processo de enraízamento da Igreja, foram o investimento na formação do clero nativo, baseada na tradição tridentina e a criação de uma sociedade cristã que seria o suporte da presença católica no continente africano.
A proposta de Comboni nasceu dentro do novo impulso missionário da segunda metade do século XIX e, ao mesmo tempo, fez parte de um contexto maior da discussão de uma raça negra universal, partilhada por alguns grupos de libertos e de protestantes negros dos EUA, na segunda metade do século XIX.
Segundo Schwacz, diversas teorias raciais produzidas durante o século XIX, tinham por influência, os modelos de reflexão do século das luzes.
Por estes modelos, os povos “selvagens”conhecidos pelos europeus, a partir do século XVI ao XVIII, eram considerados primitivos, no sentido de “primeiros homens”. Esta percepção reduzia a humanidade a uma única espécie, com uma evolução única e com uma perfectibilidade possível.
Com a Revolução Francesa e o Iluminismo, se estabeleceram as bases filosóficas para se pensar a humanidade enquanto totalidade. O homem americano, na condição de “primeiro da espécie”, passou a constituir um elemento de análise da própria evolução do estado de civilização. Este mereceu da visão humanista, a “compaixão”, segundo Schwacz, por ser distinto da experiência ocidental.
Tal visão humanista permaneceu no século XIX, ao lado das teorias oriundas do Darwinismo Social e influenciou intelectuais e religiosos protestantes negros dos EUA, que defendiam a idéia de uma “solidariedade racial” inerentes aos negros. Além disso, a África passou a ser tratada como a terra de origem e os negros, seu legítimo povo, e estes deveriam conquistar as condições para uma inserção na Modernidade, sem o merecimento da “compaixão ocidental”.
Entre os protestantes negros ideólogos da “solidariedade negra”, destacam-se E. Blyden e Crummell.
Estes pastores defendiam que o Cristianismo era a forma mais elevada de experiência religiosa. No entanto, o tratamento dado ao negro na América, com o qual os dois tiveram experiências pessoais, deram a eles a visão clara de como o cristianismo fora deturpado durante a Época Moderna, tendo sido usado para explorar, escravizar e discriminar racialmente o negro, induzindo-o a submissão.
Na avaliação de Blyden, tal situação era provocada pelo contato com o europeu e ,por isso , defendeu a repatriação dos negros da América para a África.
A África era considerada a origem. No entanto, o Estado burguês e liberal se desenvolvera na Europa e a África estava excluída desta experiência. Informados pelo pensamento político ocidental, Blyden e Crummel buscaram a constutição de Estados na África onde os negros seriam preparados para participarem da modernidade numa condição superior a de ex-escravos e libertos.
Os discursos de Comboni coincidem cronologicamente com os de Blyden e Crummel. A África sem o Cristianismo era vista pelo prelado como imersa numa “grande escuridão”. No entanto, Comboni não tinha um projeto de repatriação, mas de regeneração do negro na África. Para tanto, investiu na criação de Centro missionários e projetou a construção de diversas universidades em áreas estratégicamente importantes da África como um todo.
Outro ponto importante é que para Bl
yden e Crummell, o inglês era um veículo necessário para a divulgação da mensagem cristã.Foi nesta língua que se escreveu os grandes clássicos da civilização ocidental e esta era considerada superior aos dialetos africanos locais e ao árabe. Seria através do inglês que se reeducaria os negros.
Comboni, por sua vez, preocupou-se em aprender as línguas locais, dando destaque as mais hegemônicas, para que através delas se constituísse uma Igreja Nativa subordinada não a um Estado local, mas a Roma, considerada o centro da Cristandade. Os africanos cristãos, formados e preparados, estariam, na avaliação comboniana, regenerados e poderiam auxiliar os seus semelhantes na África a encontrarem o “caminho da civilização”.
Para isso, as contribuições das diferentes ciências desenvolvidas no Ocidente aliadas a uma formação católica de base tridentina possibilitariam o surgimento da civilização e do progresso na África. Para o Vigário Apostólico, as iniciativas comerciais e os acordos políticos entre as potências ocidentais e os diferentes reinos africanos, francamente desfavoráveis para estes últimos, distanciavam-se da perspectiva de uma obra civilizatória marcada pela misericórdia e pela cooperação e por isso, D. Comboni fez uma série de considerações e de críticas a uma ação expansionista que não privilegiava a possibilidade de um desenvolvimento próprio da África. Somando-se a isso, a não subordinação do prelado a um projeto colonial de uma nação específica por acreditar que a obra civilizatória deveria ser universal, custaram ao religioso o abandono, restrições ao seu trabalho evangelizador e possivelmente a instalação de um processo de debilitação orgânica que culminou com a sua morte em 1881 em Khartoum.

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