Autor: Isaltino Gomes Coelho Filho
Nas décadas dos sessentas aos oitentas, a denominação batista enfrentou um problema muito sério: a influência da doutrina e da liturgia pentecostal. Livros foram escritos, teses foram produzidas, congressos foram realizados e muita discussão se deu ao redor deste tema. Parece-me, porém, que esta situação foi absorvida, após muita tensão. A maior parte dos crentes não está ligando muito para doutrina, mas para celebração. A questão doutrinária tem sido minimizada. E, quanto à liturgia, há igrejas batistas com liturgia mais ruidosa que a de muitas igrejas pentecostais. Não se pode, hoje, dizer que a forma de culto caracteriza a doutrina de uma igreja.
Na presente década, duas são as dificuldades com que lidamos. A primeira é a tendência presbiterianizante em nosso meio, tornando as igrejas locais, que na ótica congregacional são o ponto central da denominação, em satélites da estrutura. No caso batista (não creio que seja assim no presbiteriano) boa parte das instituições só se lembra das igrejas locais para pedir dinheiro, não para ajudá-las. As igrejas são, cada vez mais, pagadoras de contas e não senhoras do processo denominacional. A voz das igrejas é fraca, na denominação batista. E não se diga que elas mandam nas convenções e juntas, devido ao nosso sistema convencional. Isto é uma falácia. Quem comanda a denominação são pessoas que têm capacidade de articulação política e que manobram em bastidores. Nosso sistema, na realidade, não é congregacional. É oligárquico. E muitas vezes, conduzido de forma a-ética e até mesmo anti-ética. Desestabilização de secretários executivos e presidentes, sonegação de plano cooperativo e atitudes mundanas para impor sua vontade, tudo isto sucede em nosso meio. Por vezes de forma como nem no mundo se vê. Foi por isso que um líder da Convenção Batista Brasileira, após ocupar certa função, declarou, desgostoso: “Estou convencido que o reino de Deus não passa pelas nossas estruturas denominacionais”.
Concordo com ele. Estivesse fisicamente em nosso meio, Jesus Cristo viraria muitas mesas e diria que seu reino se tornou um “covil de aproveitadores”.
A segunda dificuldade com que lidamos é o mundanismo que entrou na administração das nossas igrejas. Não me refiro ao mundanismo moral, com coisas como bebidas, fumo, diversões, roupas, etc. Não é disto que falo, agora. Falo do mundanismo na administração, no modus faciendi, não no modus vivendi denominacional.
Sou um batista histórico, preso às doutrinas históricas dos batistas. Conheço-as, e quanto mais leio sobre nosso passado mais me rejubilo por minha opção doutrinária. Respeito as demais denominações, mas sou batista e da Convenção Batista Brasileira por convicção. Não há nenhum outro grupo onde eu poderia me sentir melhor e expressar minha fé. E, exatamente por isto, ouso discordar de muito do que vejo e apontar os desvios doutrinários que marcam a denominação, e por tabela, invadem nossas igrejas.
Destes dois problemas citados, vou falar hoje, por causa da circunstância, do mundanismo administrativo em nossas igrejas. É a tendência de ver, cada vez mais, as igrejas como empresas e não como agências do reino de Deus. De aplicar regras de administração empresarial no corpo de Cristo, em vez de buscar os princípios bíblicos pelos quais uma igreja deve nortear não apenas sua doutrina, mas sua vida em todos os aspectos.
Constantemente, ao conversarem comigo sobre livros, pastores não me falam de obras teológicas, mas de livros de tendências comerciais e empresariais, como Os Sete Hábitos das Pessoas Muito Eficazes e Inteligência Emocional na Empresa, para citar dois mais apontados. Quinze anos como membro de juntas nacionais e alguns outros de juntas estaduais me fizeram ver que muitos pastores, quando se registram em hotéis, não colocam como ocupação que são “pastores”, mas “administradores” e até mesmo “empresários”. Como nossas igrejas estão, cada vez mais, sendo conduzidas como empresas e não como agências do reino de Deus, pode ser um lapso explicado por Freud…
Uma igreja não é uma empresa e não pode se guiar por regras de empresas seculares. Aponto algumas razões.
A primeira: uma empresa, para ser saudável, precisa ter, acima de tudo, bom plano de receitas e bom saldo. Isto é óbvio. Uma igreja, para ser saudável, precisa ter planos de receitas e gastos. O que motiva o povo de Deus a contribuir não é Malaquias 3.10. Porque o povo, de quem se pede que cumpra a Bíblia, espera ver a liderança cumprindo a Bíblia. Quer ver seriedade. Se não a vê, Malaquias não resolverá. A igreja deve ser criteriosa em arrecadar, mas mais ainda em como e onde gastar. Deve ter visão missionária e usar os recursos na expansão evangelística e em projetos sociais que empolguem e comovam. Eu me recusaria a ser dizimista numa igreja que pensa apenas em arrecadar dinheiro e aplicá-lo em fundos bancários. Não é de saldo que nossas igrejas precisam, como as empresas. É de gasto.
A segunda: uma empresa, para crescer, precisa ser competitiva, predar e até mesmo destruir a concorrência. Os outros são adversários a vencer. Uma igreja, para crescer, precisa ser cooperativa. Isto é mais que contribuir para o plano cooperativo. A pessoa que hoje ocupa o cargo de executivo do campo amazonense declarou, certa vez, que era seu dever levar sua igreja a não contribuir para o plano cooperativo se discordasse da aplicação dos recursos. Ser cooperativo é mais que contribuir para o plano. O que quero dizer é que a igreja precisa ver suas irmãs mais fracas, e colaborar com elas. Precisa olhar para regiões onde o evangelho está engatinhando e fazer projetos cooperativos. Com cinqüenta, cem dólares mensais, se sustenta um missionário em terras hindus e muçulmanas. Mais do que isto gastamos em passeios e reuniões de confraternização para gente que está sempre junta. Para uma igreja, os outros não são adversários. São oportunidades de serviço.
Terceiro: uma empresa pesquisa para saber o que as pessoas precisam e lhes oferece o produto desejado. Uma igreja não amolda seu produto, não o desfigura, não o metamorfoseia. Ela prega a velha mensagem de “Cristo crucificado, poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”. Ouço hoje pessoas falando da necessidade da igreja dialogar com o mundo. Não sei, exatamente, o que significa isto. Mas sei que a igreja não dialoga. Ela proclama. Ela anuncia uma mensagem de cujo anúncio não se pode furtar. Não se preocupa com a opinião do mundo sobre seu produto. Sabe que é o único produto verdadeiro, não o camufla, não o distorce, não mente sobre ele. É apaixonada por ele.
Quarto: uma empresa precisa de lógica, de extrema racionalidade, de frieza matemática. A igreja precisa de boa dose de loucura. “Estás louco, Paulo, as muitas letras te fazem delirar”. A loucura de se prender a uma mensagem que julgam ultrapassada, a loucura de sonhar, de idealizar, de fazer planos ousados e impossíveis. Disse Berdiaev que “a Igreja tem quanto quer ter”. É verdade. Muitas vezes não tem porque não sonha, não ousa, não perde o juízo humano extremamente racional. Algumas pessoas pensam que a igreja precisa ter certo valor em seu caixa para ter segurança. Infeliz da igreja cuja confiança está no seu caixa.
Infeliz da igreja que tem como maiores dizimistas o over e outras aplicações. Ai da igreja da frieza matemática, porque esta mata o calor do evangelho, apaga o fogo de missões e de evangelização. A maior necessidade da igreja não é reais de emergência. É de fé absoluta no poder do seu Deus, a crença de que as portas do inferno e pacotes econômicos não prevalecerão contra ela.
Quinto: a igreja é única, singular, totalmente especial. Acima de tudo, é o corpo de Cristo.
Sua lógica e sua matemática são sem sentido para o mundo. E ai da igreja que não compreende isto. E ai do líder que impede isto. Reafirmo o que já disse: Querem vivificar uma igreja? Dêem-lhe visão missionária, encham-na de ardor por evangelismo e missões, porque a luz que brilha forte lá longe, brilha mais forte perto de si. Querem matar uma igreja? Tirem-lhe a visão missionária. Levem-na a preocupar-se com o desnecessário ou secundário: suas mesas, seus bancos, suas reuniões inócuas que nada produzem a não ser o uso do tempo.
Em muitas igrejas, a teologia foi trocada pela tecnocracia e a voz do tecnocrata é mais ouvida que a do teólogo. Assim, a agência que deveria transformar o mundo, se torna agência de uma cultura religiosa tênue, que dá a sensação de que se está fazendo algo pelo reino de Deus. É triste saber que há igrejas que passam anos sem batizar alguém. O povo se reuniu em cinqüenta e dois domingos. O pastor pregou cento e quatro sermões num ano.
Ninguém se converteu. Isso é uma igreja, realmente? É verdade que o evangelho tem poder? Por que não o vemos funcionar, então? Disseram-me que quase um terço de nossas igrejas não têm uma congregação sequer! Que visão têm essas pessoas? Que visão têm esses pastores? Qual é razão de ser de seu ministério? Estão, como a figueira estéril, ocupando lugar inutilmente! Que é isto senão perda de visão teológica e falta de visão do que seja uma igreja? É uma administração sem espiritualidade!
O maior inimigo da igreja de Cristo, hoje, não é o mundanismo, nem o Islã, com seu crescimento espantoso, nem o pós-modernismo, nem a hostilidade da mídia. É o abandono da visão teológica da igreja. É a perda de identidade. É a transformação da igreja em empresa e do pastorado em emprego ou bico. É a falta de vivência de valores espirituais. É a visão limitada de estrategistas de visão secular bem ampla, mas de visão espiritual bem limitada.
Dito isto, reconto dois episódios da vida de Jesus. Estão no Novo Testamento, na visão dos teólogos que escreveram os evangelhos. Assim nos chegaram. Assim dizemos crer. Vou contar como quem tem a visão empresarial da igreja.
O primeiro é a multiplicação dos pães e peixes. Os discípulos se chegam a Jesus e dizem: “Mestre, o Senhor exagerou na duração do sermão. Falou demais. Meia hora já é muito, e o Senhor usou o dia todo. Esse pessoal mora longe, trabalha amanhã cedo, vai perder a condução. E esse povaréu todo está com fome. Acaba logo esse culto porque o pessoal precisa comprar comida”.
Jesus diz para os discípulos lhes darem de comer. A resposta vem logo: “De jeito nenhum! Esta despesa não está orçamentada. E tem gente aí que não é nossa. O Senhor deveria ter pensado primeiro no problema. E tem mais, o Senhor sabe, precisamos nomear uma comissão para estudar isso”. Enquanto a argumentação continua, uma senhora de idade desmaia de fome. Uma criança passa mal. Mas os discípulos continuam irredutíveis. O tesoureiro, Judas, renuncia ao cargo porque não foi respeitado no SEU planejamento. Pedro, o vice-presidente, sai irritado, e convoca uma reunião com os demais. O assunto: a necessidade de um novo líder, menos visionário, mais pé no chão, mais realista. Como Tomé. Termina o dia: a igreja se fragmentou, o líder se frustrou, o povo se dispersou sem crer, com alguns, inclusive passando mal, e pensando que os fariseus têm razão ao dizerem: “Esse pessoal que segue a Jesus é meio maluco”.
O segundo é o episódio de Jesus ungido por Maria, em Betânia. Depois de muito lutar, de se explicar diante dos seus liderados (ou chefes, na nossa releitura?) Jesus conseguiu reunir o grupo. Este resolveu lhe dar uma nova oportunidade. Mas que ele saiba aproveitá-la! Está ele na casa de Lázaro, e Maria resolve gastar um perfume caríssimo para ungir os pés dele.
É demais! Ele permitiu este gasto abusivo! Os discípulos o interpelam: “Senhor, como é que pode? O Senhor permitiu uma coisa dessas! Que loucura! Isso é jogar dinheiro pela janela!”.
Mais uma vez Judas toma a palavra: “O Senhor sabe muito bem que nosso caixa anda a zero. Esse perfume é mais caro que Anais Anais, daria uma boa nota”. Pedro volta a falar: “Poderíamos, por exemplo, comprar um novo cesto de pães. O Senhor tem a mania de ficar fazendo distribuição de pão para o pessoal! Nosso cesto está velho, gasto demais. É uma vergonha para a nossa igreja, de tantas tradições, usar um cesto daquele!”. Um outro comenta: “Já viu o cesto dos fariseus? É muito mais bonito que o nosso. O que eles vão dizer de nós? Poderíamos mesmo, como diz o irmão Pedro, comprar outro cesto”. Outro ainda argumentou: “Eu fiquei sabendo (embora o Senhor não tenha dito nada para a Comissão de Finanças) que o Senhor planeja entrar em Jerusalém, montado num jumentinho novo. Já é muita vaidade. Poderia ser um jumentinho usado, mas conservado. Mas de onde o Senhor pensa que virá o dinheiro? De árvores? Aí estava nossa oportunidade de fazer caixa para essa despesa”.
Dirá alguém que exagerei. Abusei da retórica. O pastor não é Jesus, então a releitura fica prejudicada. O pastor não é Jesus, mas alguns tecnocratas pensam que são: agem como donos da igreja. Fui lógico, extremamente racional, desenvolvi a mentalidade empresarial presente em nosso meio e a apliquei aos hábitos de Jesus.
Vamos ao ponto. Vocês que hoje se formam como bacharéis em Teologia e Educação Religiosa: o futuro do reino de Deus, humanamente falando, está em suas mãos. Vocês podem ser ousados, sonhadores, empreendores, visionários. Como os homens e mulheres de Deus que escreveram a história do evangelho ao longo dos séculos. Podem ser gente sem visão, de mente extensa e fé pequena, boa de matemática financeira e ruim de prática de fé. Podem ser homens e mulheres que façam a igreja se reger pela Bíblia. Podem ser homens e mulheres que façam a igreja ser uma instituição tão pequena e tão irrelevante, em termos espirituais, como todas as demais, por maiores que sejam aos olhos humanos.
Em nome de Cristo, por amor ao evangelho, e pelo desejo de ver suas vidas úteis e glorificando a Deus, eu lhes peço: não permitam, nunca, que a tecnocracia triunfe sobre a teologia e que o tecnocrata vença o teólogo. Fujam do mundanismo administrativo e mantenham acesa uma chama elevada por evangelismo, missões, proclamação. Para isto, mais reino de Deus e menos estrutura. Era o que tinha a dizer.
Faça um comentário