Autor: José Lisboa Moreira de Oliveira, SDV
No Brasil constata-se a ausência de uma teologia da vocação. É verdade que avançamos na produção de subsídios de Pastoral Vocacional (PV), mas faltam textos de teologia vocacional que possam nos ajudar no aprofundamento desta temática. Esta questão da falta de uma teologia que fundamente a práxis da PV não é um problema somente do Brasil. Também a nível mundial a reflexão teológica em torno do tema da vocação é ainda muito tímida. Isto foi constatado há algum tempo atrás numa pesquisa realizada a nível mundial. Tal pesquisa, fruto de uma consulta às conferências episcopais e às conferências de religiosos e religiosas, revela que “falta ainda um estudo sistemático” deste argumento. Constata que existe pouco interesse nas escolas teológicas e entre os teólogos, no sentido de aprofundar este assunto[1].
Esta ausência de uma teologia vocacional não deixa de ser negativa, enquanto a práxis permanece sem fundamentação. A falta desta fundamentação teológica, por sua vez, leva, geralmente, à improvisação: a PV deixa de ser uma constante, algo permanente, para tornar-se um “apêndice”, atividade esporádica realizada de vez em quando por algumas pessoas[2]. Torna-se, pois, “necessário aumentar o esforço em vista de uma conveniente fundamentação bíblica e teológica das vocações, para evitar o perigo de uma visão puramente funcional da pastoral das vocações”[3].
1. Teologia da vocação
1.1. A vocação como chamado à comunhão com a Trindade
A partir do concílio Vaticano II voltou-se a perceber a Igreja como sendo “o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4). Esta nova visão da comunidade eclesial contribuiu muito para uma re-definição da vocação, vista agora como chamado à comunhão com o Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. A partir do Vaticano II vai-se configurando cada vez mais a dimensão trinitária da nossa vocação. O segundo congresso internacional das vocações (Roma, 1981), no seu documento conclusivo, explicita de forma definitiva e muito clara esta dimensão trinitária: “Cada vocação está ligada ao desígnio do Pai, à missão do Filho, à obra do Espírito Santo. Cada vocação é iluminada e fortalecida à luz do mistério de Deus”[4].
1.2. A vocação como relacionamento
Ao realçar esta dimensão trinitária da vocação os textos acima mostram também a ligação que existe entre a vocação, a vida e consequentemente a espiritualidade. A vocação passa a ser entendida como relacionamento pessoal com Deus vivido no interior de uma comunidade bem concreta. Deus chama para um encontro com Ele, a partir das solicitações de um povo que sofre (cf. Êx 3,1-10; Jr 11,4-10). A vocação é, pois, uma “sedução”(Jr 20,7), uma “conquista do coração”(Os 2,16) por parte de Deus, para uma vida de intimidade, de comunhão com Ele. É um convite para ficar com Ele, para participar da sua vida (cf. 1 Ts 4,17; Jo 17,24; 1 Pd 5,1).
a) Vocação universal à santidade
Sendo convite para um relacionamento de intimidade com a Trindade, a vocação aparece também como chamado à santidade, isto é, à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade. Vocação é, pois, comportar-se como o Pai se comporta (Mt 5,48).
Nós sabemos que a santidade é uma prerrogativa exclusiva de Deus (1Sm 2,2). Deus é santo porque é totalmente diferente das pessoas humanas e do mundo (Os 11,9; Is 55,8-9). Ele é santo, diferente, porque ama e acolhe as pessoas, especialmente os pequenos, os excluídos e excluídas (Is 41,14). Mas a pessoa humana é chamada a participar da santidade divina (Lv 19,2; 1Pd 1,15-16; 2,9-10).
A santidade consiste em ser perfeito no amor (Ef 1,4). O amor é o distintivo dos cristãos e cristãs (Jo 13,34-35; 15, 12-13.17). Ser santo ou santa significa fazer a diferença, ou seja, responder aos desafios de cada época com um amor sem medidas (Jo 15,14-15; Gl 3,25-29). Esta mesma santidade é vivida por caminhos diferentes em razão da diversidade dos carismas (1Cor 12,7; Rm 12,4-8; Ef 4,7) dos serviços e ministérios (1Cor 12,14-21; Ef 4,11-12).
b) A vocação é amar
A vocação é chamado para amar, é chamado ao serviço (1Jo 4,7-21; Mc 10,45). Tinha então razão Teresa de Lisieux quando, nos seus Manuscritos Autobiográficos, escrevia: “Percebi e reconheci que o amor encerra em si todas as vocações, que o amor é tudo, abraça todos os tempos e lugares, numa palavra, o amor é eterno. Então, delirante de alegria, exclamei: ó Jesus, meu amor, encontrei afinal minha vocação: minha vocação é o amor”.
1.3. Vocação à comunhão e participação
A vocação é amar, é servir, é relacionar-se com a Trindade, a partir do encontro, da relação com o próximo. Ela é comunicação, isto é, vida de comunhão e de participação. Responder ao chamado é inserir-se na vida da comunidade; é tomar parte ativa na construção do Reino. Vocação não é isolamento, busca de satisfações, de “realização pessoal”. Não é realização de “projetos pessoais”, mas o dar a vida pela defesa da vida (Jo 10,11; 15,13).
a) Chamado a ser povo
Puebla enfatizou bastante este aspecto da vocação ao afirmar: “Este chamamento pelo Batismo, Confirmação e Eucaristia para sermos povo seu, chama-se comunhão e participação na missão e na vida da Igreja e, portanto, na evangelização do mundo” (P, 852). Chamados e chamadas a ser povo, a comungar, a participar na vida e na missão da comunidade eclesial. Estes são elementos que não podem de forma alguma ser esquecidos hoje, neste mundo da pós-modernidade, marcado por uma grande tendência ao individualismo. Precisamos insistir com muita ênfase sobre isto em nosso trabalho vocacional.
b) A comunhão entre nós
Esta visão de vocação como chamado à comunhão e participação nos leva a descobrir, como elemento essencial do chamamento, a vida de fraternidade, de sororidade. Isto quer dizer que faz parte da essência da vocação o desejo, a vontade, o compromisso de “reproduzir” na Igreja e no mundo o tipo de relacionamento que existe no seio da Trindade. A participação na comunhão trinitária exige a comunhão fraterna entre nós (P, 326-327). Não pode ser sincero um relacionamento de comunhão com Deus quando ele não se repercute também no relacionamento com os irmãos e irmãs. Nossa vocação é um chamado para amar a Deus, mas não ama a Deus quem não ama o seu próximo (1 Jo 4,20). Consequentemente não é autêntica aquela vocação que não se abre à solidariedade. A Trindade permanece como modelo da comunhão que deve brotar da vivência da nossa vocação (P, 212). Esta vida de comunhão, por sua vez, dá autenticidade a nossa vocação. Ela é o sinal mais claro de que estamos realmente vivendo numa intensa comunicação com a Trindade (P, 215).
1.4. Dimensões de vocação
Porque a vocação é comunhão com a Trindade, que se traduz concretamente na experiência de verdadeira irmandade, vemos a necessidade de se insistir, no campo teológico, sobre três dimensões essenciais da mesma. Já o documento de Puebla chamava a nossa atenção para esta realidade (P, 854). O Guia pedagógico de Pastoral Vocacional da CNBB (1983) retoma esta questão, completando e comentando a afirmação de Puebla. São aspectos inseparáveis, complementares que marcam profundamente a vida e a opção do vocacionado e da vocacionada. Por isso vale a pena estudá-los separadamente, mesmo sabendo que eles não devem nunca ser vistos como elementos autônomos, isolados. Nenhuma destas dimensões subsiste separadamente, mas cada uma está em profunda relação de interação com as demais.
Dimensão antropológica: trata-se, como diz Puebla, do chamado a ser pessoa humana. Isto quer dizer que, antes de qualquer coisa, o vocacionado, a vocacionada, tem que ser gente, com todas aquelas qualidades que caracterizam o ser humano. Uma atenção particular deve ser dada à capacidade de relacionar-se bem com as demais pessoas, já que a pessoa humana foi criada por Deus como ser social. Como já vimos acima, a vocação é sempre dialogal. Por isso ela só se concretiza “nas relações inter-pessoais, sejam elas as da família, da amizade ou do coleguismo, das comunidades pequenas ou grandes de que participa”[5] o ser humano. Não é possível, pois, falar-se de vocação verdadeira, deixando de lado as exigências da natureza humana.
Dimensão cristã ou eclesial: é o chamado a viver o nosso batismo, o apelo à santidade, através de uma participação ativa na vida da comunidade. É o viver em comunhão com Deus na comunhão e cooperação com os demais irmãos e irmãs. Aparece, neste caso, a importância do compromisso e do engajamento, do assumir o próprio batismo. Vale muito ressaltar esta dimensão batismal da nossa vocação na sua tríplice missão: profética, sacerdotal e real. Do mesmo modo é preciso insistir sobre a dignidade de todas as vocações e, portanto, de todos os membros do povo de Deus. Existe uma variedade de vocações, de carismas, mas todos e todas possuem a mesma dignidade. Ninguém é superior a ninguém, ninguém é melhor do que ninguém(LG 32). Isto mostra também que todos e todas, na Igreja, são chamados e chamadas ao apostolado. Todos e todas temos a mesma missão.
Dimensão específica: toda vocação, mesmo sendo vivida na comunidade e a serviço da comunidade, é personalizada. Ou seja: cada cristão ou cristã responde ao chamado do Pai de acordo com os dons e carismas recebidos do Senhor. Assim sendo, a “vocação específica” (leiga, de vida consagrada ou ministerial) é a forma concreta que permite a cada batizado ou batizada de dar a sua contribuição própria para a construção do Reino de Deus. Esta dimensão da vocação quer chamar a nossa atenção para a singularidade de cada pessoa, enquanto “palavra de Deus irrepetível”[6]. Não se pode, na questão vocacional, deixar de considerar também a diversidade de aptidões, de qualidades pessoais e as circunstâncias nas quais brota e se desenvolve o chamado de Deus. Não se esqueça, porém, que, mesmo realizando de forma pessoal a vocação comum, o cristão ou cristã deve direcioná-la para a comunidade. De fato, se é verdade que o único e mesmo Espírito distribui os seus dons a cada um conforme ele quer (1 Cor 12, 11), é também verdade que todo dom, sem exceção, é para a utilidade de todos, para o bem da comunidade (1 Cor 12,7).
1.5. Teologia do carisma e da missão
Não se pode falar de vocação sem uma referência concreta ao tema do carisma e da missão. Ambos estão intimamente ligados ao dinamismo da vocação.
a) Os carismas
Os carismas, segundo a teologia paulina(1Cor 12,4-31) são dons diferentes, serviços diferentes, diferentes modos de agir, suscitados pelo Espírito, e destinados à edificação da comunidade cristã. Poderíamos então dizer que os carismas são dons do Espírito que tornam o cristão apto para o exercício da própria vocação em favor de toda a comunidade (LG, 12). Os carismas são dons para a execução de serviços concretos, atividades concretas, que possibilitam a vivência de uma determinada vocação específica. Existe, pois, uma pluralidade de carismas. Para cada forma de vocação podem existir uma diversidade imensa de carismas. Enquanto meios concretos de atuação de uma determinada forma de vocação, os carismas não são apenas dons extraordinários concedidos a pessoas extraordinárias. Eles são elementos comuns que fazem parte do cotidiano da comunidade e não apenas privilégio de alguns (LG, 12). Uma das funções específicas da PV é ajudar o vocacionado ou vocacionada a perceber os carismas que o Espírito está suscitando em sua vida, a fim de que possa descobrir o seu verdadeiro lugar na Igreja.
b) A missão
Vocação e carismas não são fins a si mesmos. Existem para a missão. Por isso toda reflexão sobre a vocação requer também algo sobre a missão. Dentro deste contexto de uma teologia da vocação é indispensável destacar a questão da missionariedade da Igreja. Precisamos insistir muito ainda sobre a verdade de que a Igreja inteira, toda ela, todos os batizados e batizadas, são sujeitos da missão. Além disso, é preciso dizer que esta missionariedade deve ser vivida em toda parte, em todos os níveis e em todos os tempos. Em seguida precisamos definir o que é a missão. Trata-se de evangelizar, isto é, de anunciar a salvação, a boa nova da libertação operada por Cristo. Tal anúncio, dentro da situação atual do mundo, deve ser essencialmente do Evangelho da Vida (JOÃO PAULO II), ajudando a humanidade a fazer a história, a contribuir para uma “nova criação”, construindo no aqui e agora uma sociedade nova e diferente, numa clara e contundente opção preferencial pelos pobres.
Tudo isto mostra que a missão é para o mundo e se desenvolve no mundo, ou seja, uma missão que tenha um compromisso efetivo com o bem da pessoa humana na sua totalidade; que leve o cristão e a cristã a aproximar-se, com os olhos e com o coração, daqueles e daquelas que sofrem e passam fome, dos que estão quase mortos (Lc 10,25-37). Sendo serviço à humanidade, a missão, como a vocação, possui uma dimensão comunitária e uma dimensão pessoal. Comunitária porque ela é antes de tudo confiada à Igreja, enquanto ekklesía, isto é, comunidade convocada e reunida pela Trindade. Pessoal, enquanto cada fiei tem o seu jeito de vivenciar a missionariedade da Igreja.
1.6. Teologia de vocação num contexto de pós-modernidade
Ao abordarmos o tema da teologia da vocação, não podemos esquecer o contexto no qual nós estamos vivendo. Tal contexto é o da modernidade ou, como querem alguns, o da pós-modernidade. Aqui uma das características principais é o da valorização do indivíduo, da pessoa, chegando mesmo ao extremo do individualismo.
Tendo presente esta realidade, não basta que a teologia da vocação ressalte a iniciativa divina no chamado (Jo 15,16). Ela terá também que mostrar com a mesma ênfase e entusiasmo que o apelo do Pai é dirigido à pessoa humana livre (Mt 19,21; Gn 1,28-31). Torna-se, pois, indispensável entender bem a questão da predestinação (Ef 1,4; Jr 1,5) na sua relação com a dinâmica da vocação, com a dinâmica do chamado do Senhor. O projeto de Deus para uma pessoa não é algo estático, pré-determinado, pré-estabelecido, mas um apelo que se faz através de mediações bem concretas (Jo 1,35-50). Deste modo a pessoa pode dizer “sim” (Lc 1,38), fazendo acontecer a história da salvação, ou dizer “não” (Mt 19,22) e frustrando o projeto de amor do Pai.
1.7. Teologia das vocações específicas
No que diz respeito à teologia das vocações específicas, convém observar o seguinte:
Vocação do(a) cristão(ã) leigo(a): é preciso dizer, antes de tudo, que esta é a vocação básica, enquanto é a vocação batismal, da qual dependem as vocações de especial consagração. Outro dado importante, mencionado inclusive por Santo Domingo (SD, 94), é que os leigos são maioria na Igreja. Pode parecer um detalhe sem significado do ponto de vista teológico, mas numa Igreja ainda marcada por um excessivo clericalismo, isto representa algo muito profundo. A teologia da vocação do cristão leigo, da cristã leiga, deverá insistir sobre a necessidade de mais espaços de participação e de poder de decisão para os leigos e leigas. Isso em decorrência de um direito que nasce dos sacramentos do batismo e da crisma. Temos aqui as bases teológicas para iluminar o tão falado, mas pouco praticado protagonismo dos leigos (SD, 97). A partir destes pressupostos, a teologia da vocação do leigo e da leiga é chamada a aprofundar o específico desta vocação que é a índole secular, a laicidade, entendida como inserção nas realidades temporais, participação nas atividades terrenas (CfL, 17), evitando qualquer tipo de reducionismo ao “intra-eclesial” (SD, 97). Ajudará assim a alargar o conceito de engajamento, visto antes de tudo como compromisso de transformação da sociedade.
b. Vocação da vida consagrada: o aprofundamento teológico da vocação da vida consagrada se fará antes de tudo a partir da dimensão simbólica da mesma (LG, 44). A vida consagrada fala mais pelo que ela é do que pelo que ela faz. Em consonância com esta realidade, somos chamados a contextualizar melhor o significado dos votos, da vida comunitária e de outras elementos da vida consagrada. A questão da especificidade deste tipo de vocação não pode ficar esquecida. Ela, sem dúvida alguma, passa pelo seguimento radical de Jesus Cristo, pela liminalidade, isto é, pelo apelo a ser, na Igreja, profecia, utopia, avanguarda, ponta-de-lança. A vida consagrada é chamada a ser, na Igreja e na sociedade, sinal visível da radicalidade do Evangelho, sinal de uma Igreja profética. Os grupos que compõem a vida consagrada são: 1) eremitas; 2) vida religiosa (ordens e congregações); 3) Institutos Seculares; 4) Ordem das Virgens 5) Outras formas de consagração. O elemento que, de uma forma toda especial, a caracteriza é a profissão pública ou privada dos três votos de: pobreza, castidade, obediência.
c. Vocação dos ministros ordenados: o trabalho da teologia da vocação dos ministérios ordenados procura determinar, com mais clareza, o específico deste ministério. Sabemos como é ainda forte o “monopólio pastoral” por parte dos ministros ordenados. Este trabalho de pesquisa teológica poderá contribuir para a superação de uma “pastoral de manutenção e de administração” ainda muito forte na mentalidade dos nossos ministros. Pontos como o celibato, a inserção no presbitério da Igreja local também exigem um maior aprofundamento. Dito isto pode-se concluir que a vocação dos ministros ordenados é aquela de ser “serviço da unidade da comunidade” (P, 661) em torno da eucaristia, “raiz e eixo de toda comunidade” (P, 662). O específico dos ministros ordenados é a presidência da comunidade, ser sinal sacramental de Cristo Pastor (Jo 10,1-18) e Cabeça (Col 1,18; Ef 1,22) da Igreja (P, 659). O diácono é chamado a ser, na comunidade cristã, sinal de Cristo Servo e de uma Igreja servidora do povo. O presbítero é sacramento de Cristo Cabeça e de Cristo Pastor na medida em que ele, a partir do altar, forma, anima e incentiva as comunidade cristãs. A vocação do bispo é a de ser o presidente da grande assembléia dos vocacionados e vocacionadas, a de tornar presente e efetiva a Igreja local, na comunhão com as demais Igreja.
2. Eclesiologia da vocação
Não resta dúvida de que, muitas vezes, “as dificuldades, no que respeita às vocações, estão ligadas a um conhecimento insuficiente da Igreja”[7]. Por isso, para que a PV possa desenvolver-se plenamente, é indispensável uma profunda reflexão sobre a Igreja.
2.1. Qual Igreja?
É sem dúvida alguma a primeira pergunta a ser feita. Qual o modelo de Igreja ao qual nos referimos quando fazemos pastoral vocacional? Certamente não poderá ser um modelo qualquer. Penso que o modelo mais correto, que mais favorece o desenvolvimento de uma autêntica PV, seja aquele construído pelo concílio Vaticano II: Igreja-Comunidade convocada pela Trindade, “povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG, 4). Somente esta visão de Igreja contribui para que todos os seus membros vivam em estado, de vocação e de missão[8], sentindo-se convocados pelo Pai para o serviço ao Reino. Numa Igreja fortemente piramidal, predominantemente hierárquica, isto é, clericalizada, dificilmente as pessoas sentir-se-ão num estado permanente de vocação e de missão.
2.2. Igreja de comunhão a participação
Somente uma Igreja ícone da Trindade pode tomar-se o espaço adequado para o surgimento e desenvolvimento das vocações. Isto porque nela a “unidade dos fiéis que constituem um só corpo em Cristo” (LG, 3), na igual dignidade e na variedade de funções (LG, 32), abre espaço para a comunhão e participação. Somente numa Igreja assim existe a presença de instrumentos e de organismos que permitem o engajamento de todos os fiéis e abrem caminho para o surgimento das diversas vocações. Só aqui os jovens encontram , “um terreno eficaz para o amadurecimento humano, cristão e apostólico”[9].
2.3. Igreja mãe das vocações
Tal Igreja é, ao mesmo tempo, mãe das vocações. Sente-se chamada e ao mesmo tempo convocada a chamar. Ela tem consciência de ser uma comunidade de pessoas chamadas que, por sua vez, torna-se apelo vivo da Trindade[10]. Este modelo de Igreja comunhão-participação “se identifica com todas as vocações de que é constituída. Nela recebem os batizados o chamamento universal ao sacerdócio comum dos fiéis e à santidade. Nela surgem, por dom do Espírito Santo, os chamamentos especiais para os ministérios ordenados, para a consagração religiosa e secular e para a vida missionária. Ela é, pois, a reunião de todos quantos, em comunhão com o seu bispo e entre si, são chamados pelo Pai ao seguimento do Senhor Jesus, de acordo com os carismas do Espírito”[11]. E porque há esta identificação, todos sentem-se responsáveis pelas vocações[12].
2.4 Igreja “encarnada”
A Igreja onde as vocações podem brotar é aquela que escuta o clamor do povo (P, 93) e que vive em processo permanente de renovação (P, 100). Uma Igreja que não reclama privilégios (P, 1212), mas vive no mundo e na sociedade a sua missão profética, denunciando as injustiças e anunciando a utopia evangélica de uma sociedade nova, mais humana e mais fraterna (P, 1213). Terá que ser uma Igreja capaz também de dialogar com a sociedade pluralista (P, 1037) e não apenas a Igreja da apologética e da defensiva.
Trata-se, pois, de uma Igreja servidora, toda “ministerial” (de minus stare), isto é, onde todos e todas, sem exceção, são chamados e chamadas a servir.
Somente numa Igreja assim, “os jovens descobrem a realidade em que vivem, e os ministérios e serviços de que a comunidade tem necessidade. E os compromissos de hoje, se isso estiver nos desígnios do Senhor, podem ser prelúdio de uma consagração definitiva para toda a vida” [13]. Nesta Igreja-Comunidade ministerial os jovens e as jovens não são apenas elementos passivos que tudo recebem, mas agentes ativos, participantes e responsáveis, verdadeiros protagonistas, de acordo com os carismas e as possibilidades de cada um, de cada uma.
3. Indicações praticas para a PV
Estas reflexões sobre a teologia e a eclesiologia da vocação nos apontam algumas indicações práticas para a PV. Elenco aqui apenas as mais importantes:
1. A necessidade de aprofundar o conceito teológico de vocação, avaliando sempre que tipo de teologia sustenta a nossa prática. “Uma correta impostação da proposta deve fundar-se necessariamente numa sólida teologia da vocação e das vocações, em sintonia com a eclesiologia do Vaticano II” [14].
2. Partindo desta avaliação do tipo de teologia, verificar constantemente a visão que se tem de Deus. De qual “deus” estamos falando na PV? É o Deus de Jesus Cristo? É o Deus Trindade, Comunidade de Amor? Para se fazer uma boa PV “é necessário subir até o mistério de Deus”[15].
3. Apresentar sempre a vocação como relacionamento, como comunhão, dando muito valor à experiência e à espiritualidade (Jo 1,39; Mc 3,14).
4. Trabalhar bem o humano e o cristão antes de partir para a questão das vocações específicas. Atenção particular deve ser dada ao comportamento problemático das famílias, à fragilidade psicológica dos jovens, ao medo do empenho definitivo, ao prolongamento da adolescência e os problemas conexos[16].
5. Dar mais atenção à questão da inculturação e da pós-modernidade. “Há fenômenos gerais que influem sobre as vocações, sobretudo no mundo ocidental […] O tempo em que vivemos é considerado como período de transição, caracterizado por isso por atitudes ambivalentes e contraditórias. As transformações profundas da sociedade revelam por um lado a inadaptação das culturas tradicionais e por outro a necessidade inquieta de novos projetos da existência humana”[17].
6. Definir melhor o específico de cada vocação, dando real valor ao protagonismo dos leigos. Isto significa também a necessidade de se encontrar uma metodologia adequada para cada época, situação, lugar e grupo de pessoas. Ou seja, “a necessidade de realizar um notável esforço no sentido duma sintonia com a mentalidade dos jovens para transmitir a mensagem vocacional[18]. Trata-se da questão tão delicada da comunicação com a juventude. “Os próprios animadores vocacionais usam muitas vezes uma linguagem que os jovens não conseguem compreender porque está fora dos seus esquemas mentais”[19].
7. Neste esforço de procurar entender o específico de cada vocação, evitar o “reducionismo vocacional”, ou seja, aquela tendência ainda presente em certos setores da Igreja de confundir PV com “Obra das Vocações Sacerdotais”. Foi, por exemplo, o caso de Santo Domingo (cf. SD, 79-82).
8. Por isso trabalhar para que a PV não seja mais uma “pastoral setorial”, mas a coluna vertebral de toda a pastoral de uma Igreja particular[20].
9. Daqui, pois, a necessidade de uma maior interação entre a PV e outras pastorais, especialmente a Pastoral da Juventude, a Pastoral Catequética e a Pastoral Familiar, lembrando porém o princípio acima, isto é, que a PV não faça parte de um conjunto de pastorais, mas da pastoral de conjunto[21].
10. Diante destes desafios, percebe-se que o(a) animador(a) vocacional não pode ser improvisado e nem improvisar. “A falta de preparação dos animadores e dos formadores é um dos problemas que exigem uma solução irrevogável”[22]. Em muitos lugares a PV está reduzida “a algumas atividades programadas com bom interesse, mas também com muita improvisação”[23].
Se você quiser aprofundar a temática da Teologia e da Eclesiologia da Vocação leia os livros Teologia da Vocação e Nossa resposta ao Amor da autoria do Pe. José Lisboa Moreira de Oliveira, SDV. Pedidos ao IPV.
* Artigo publicado na revista Espírito 65 (janeiro/março de 1996), pp. 22-31.
[1] Cf. Desenvolvimento da Pastoral das Vocações nas Igrejas Particulares, n. 39, Col. “Doc. Pontifícios”, Vozes, n.º 244.
[2] Ibid., n.º 37.
[3] Ibid., n.º 31.
[4] 2.º Congresso Internacional das Vocações, Documento Conclusivo, n.º 7.
[5] CNBB, Guia pedagógico de Pastoral Vocacional, Paulus, São Paulo, 1983, p. 27.
[6] Ibid., p. 32.
[7] Desenvolvimento da Pastoral das Vocações nas Igrejas Particulares, n.º 31.
[8] 2.º Congresso Internacional das Vocações, Documento Conclusivo, n.º 8.
[9] Ibid., n.º 40.
[10] Ibid., n.º 13.
[11] Ibid., n.º 15.
[12] Ibid., nn. 29-41.
[13] Ibid., n.º 43.
[14] Desenvolvimento da Pastoral das Vocações nas Igrejas Particulares, n.º 30.
[15] 2.º Congresso Internacional das Vocações, Documento Conclusivo, n.º 7.
[16] Desenvolvimento da Pastoral das Vocações nas Igrejas Particulares, nn. 73-76.
[17] Ibid., n.º 71.
[18] Ibid., n.º 66.
[19] Ibid., n. 72.
[20] Cf. JOÃO PAULO II, Pastores Dabo Vobis, n.º 34.
[21] Desenvolvimento da Pastoral das Vocações nas Igrejas Particulares, n.º 45.
[22] Ibid., n.º 38.
[23] Ibid., n.º 37.