A segunda vida de Francisco de Assis segundo José Saramago

Autor: João Ferreira




José Saramago iniciou a carreira intelectual como poeta e como jornalista. Mas foi na observação do quotidiano político e social que ele apurou sua reflexão sobre os acontecimentos desenvolvendo análises e debates numa capacidade de relato já destacada pelo crítico literário José Manuel Mendes.
Crescido na atmosfera neo-realista portuguesa, testemunha e participante de uma arte literária comprometida com a situação social e a sofrida vida da população portuguesa nas décadas de quarenta e cinquenta, José Saramago foi montando paulatinamente a trajetória que o levaria à fixação da sua metodologia de criação romanesca. Os romances que cria mostram preferência por um ponto de partida em fatos históricos. A etes aplica a técnica exploratória do imaginário artístico, a evocação, para estruturar seus personagens, seus heróis, num espaço onde história e discurso se fundem com originalidade bem sucedida.
Nesta linha de seleção temática, José Saramago começou por dar atenção ao secular problema da terra e do latifúndio em "Levantado do Chão"; buscou na história a promessa votiva de um rei embutida na construção do convento de Mafra para ditar a trajetória narrativa de "O Memorial do Convento"; tratou o isolamento ibérico em relação à Europa para escrever "Jangada de Pedra"; buscou a inspiração heteronímica de Fernando Pessoa para "O Ano da Morte de Ricardo Reis"; bebeu na História Portuguesa o realismo e motivos maiores do "O Cerco de Lisboa". Nesta mesma linha metodológica de ativar a história pela arte da palavra literária, Saramago criou uma Segunda Vida de Francisco de Assis, publicada em Lisboa em 1987, pela Editorial Caminho.
O título significa que o Autor não pretende simplesmente reeditar, à letra, a figura real e histórica de São Francisco de Assis, santo italiano que nasceu pelos anos de 1181/1182 na cidade umbra de Assis, e foi fundador da Ordem dos Frades Menores, morrendo em 1227. A celebridade de São Francisco está essencialmente no ideal evangélico que propôs. Nesse ideal, a pobreza absoluta aparece como primeira coordenada do desprendimento do mundo. A intenção de Saramago é reapresentar a figura de São Francisco menos carregada de ideal religioso, um tanto laicizada, mas que valha como símbolo contemporâneo frente aos grandes desafios capitalistas e proletarizantes do mundo moderno e contemporâneo, como porta-voz de uma luta real contra o pauperismo atual, e como apoio para uma mais justa distribuição da riqueza.
Em termos de produção artística, "A Segunda Vida de Francisco de Assis" é um texto teatral em dois atos. Os personagens, em número de 14, são representações de figuras históricas presentes nas biografias clássicas de São Francisco. Assim, encontramos Elias, Bernardo, Gil, Leão, Junípero, Rufino, Masseo, Pica, Francisco, Clara, Inês, Jacoba, Pedro. Para todos há uma fundamentação histórica, à exceção do segundo Pedro, que representa os pobres e fica inteiramente por conta da ficção do autor.
No primeiro ato, o ambiente de cena dá-nos um discurso onde se vê, num flash histórico, a primitiva Ordem de São Francisco, apoiada num ideal de estrita pobreza. Em contraste com a primeira fase medieval, a Ordem é vista a partir daí como companhia ortganizada em moldes contemporâneos, chefiada por um presidente ativo, dotado de visão que caracteriza um homem realizado no mundo dos negócios. Gerida por Elias, a companhia tem seus negócios próprios, carteira de títulos, agentes na rua vendendo produtos básicos próprios e dispõe de uma máquina burocrática moderna, eficiente, com um lote de secretárias ativas que sabem usar telex, terminal de computador, dentro do espírito da moderna empresa. Trata-se realmente de uma visão franciscana, que não é a visão medieval registrada por São Francisco.
A peça de Saramago mostra logo ao abrir da cena, Elias, na história, Ministro Geral reformador querendo adaptar a ordem aos novos tempos. Saramago mostra-o como presidente da companhia, analisando pesquisas que apontam uma tendência para reduzir a área de influência da companhia: "Aquilo que deverá talvez preocupar-nos mais é o desequilíbrio percentual entre os dois motivos principais alegados pelo universo consultado: setenta e um por cento dos inquiridos declaram que "estamos a perder o domínio da situação porque a qualidade do nosso produto básico se tornou, em maior ou menor grau, insatisfatória. Vinte e três por cento insinuam ou chegam a afirmar francamente que o mal resulta da incompetência dos agentes e dos métodos que empregamos inadequados aos tempos novos que vivemos. Os restantes seis por cento distribuem-se por várias opiniões, sem relevância especial que mereça análise."
Pela boca dos personagens e atores assistimos ao debate que o conselho da companhia faz em relação aos dados da pesquisa apresentada por Elias. "À primeira vista – intervém Bernardo- o remédio seria fácil: deveríamos melhorar a qualidade do produto, uma vez que é para aí que a maioria se inclina". Gil opina que "o produto principal não pode ser melhorado". O debate se aprofunda e finalmente o conselho está apto a votar esta alternativa: "Tentar melhorar a qualidade, mesmo sendo tão humanamente duvidoso, ou preparar os agentes para que consigam vender melhor o produto tal qual é". Colocada em votação a alternativa, entre um conselho formado por sete pessoas, três votam a favor da "melhoria da qualidade"e três a favor da "preparação dos agentes". Elias desempata, sendo de opinião que "se instruam ou preparem ou industriem ou reciclem os agentes".
A ação da peça continua mostrando a companhia, seus negócios e seu trabalho interno. Na busca de soluções, Elias, que é um presidente capaz, carrega a insegurança e a incompatibilidade com um nome fantasma: Francisco, o Fundador.
A peça caminha para a problematização. Francisco aparece em cena. Toma conhecimento da evolução da Ordem que agora se chama companhia e dos agentes que andam pelo mundo a vender. A ação é conduzida pelo discurso que mostra o antes e o agora: "Dantes, não vendíamos", diz Francisco. "Isso era dantes. Agora vendemos", diz sua mãe D. Pica. Na época da fundação, a companhia era de pobres, agora, conforme sabe através de sua mãe, "a companhia não é pobre". "As coisas já não são o que eram. Houve muitas mudanças"e "nem todas todas elas estão à vista". "A companhia enriqueceu. Está tão rica que não seria possível contar o dinheiro que tem."
Francisco pede para que Elias venha à sua presença. Elias comparece. A partir do encontro dos dois, o discurso se aprofunda e a peça tenta mostrar as diferenças entre a Ordem e a Companhia, entre o tempo histórico antigo e o tempo atual, fazendo ressaltar dois estilos, duas épocas e uma nova realidade produzida pela mudança: "O que fundaste não tem qualquer semelhança com o que existe hoje. O mundo mudou enquanto estiveste ausente", diz Elias a Francisco.
Na disputa de poder mostrada pelo discurso, Francisco faz um esforço fundamental para defender que "a companhia nasceu para ser pobre e pobre deve voltar a ser". Em contrapartida, Elias responde que "a companhia dispõe de bens, recebe legados, administra e faz render o dinheiro, investe em setores produtivos". Em vista dessa realidade pergunta a Francisco se acha que é possível empobrecer por capricho ou vontade."
Francisco insiste no retorno à pobreza, dentro de um conceito evangélico: "Se queres ser perfeito, vai e vende o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro nos céus."A posição de Elias é pautada em cima de uma segurança material e sua esperança é claramente definida na adesão aos valores da terra.
Sendo uma realidade a disputa de poder entre Francisco, representando o ideal primitivo da Ordem e Elias, representando o novo espírito reformista dos tempos, o que se torna evidente é que Elias, sabedor do poder que tem, leva democraticamente o debate para o conselho. Em plena reunião, Francisco é enfático: "Multiplicaram-se os erros. O recto pensar e o recto proceder foram retorcidos. Chegou portanto a hora de voltarmos ao que fomos". A verdade porém é que Elias lembra a Francisco que ele não tem mais autoridade sobre a Ordem ou companhia. Francisco pede uma votação secreta. Quatro votos a favor de Elias, dois a favor de Francisco. Francisco pede sua readmissão na companhia com acesso direto ao Conselho. Há uma votação e Francisco ganha com o voto de Elias, num total de quatro a três. Decide não querer receber salário. A essência de sua vida está em lutar por ganhar essa batalha da pobreza: "O homem será plenamente homem quando, tendo atingido a suprema pobreza, a suprema desnudez, ainda for capaz de sobreviver como homem."
Encarregado de receber e preparar os agentes da Companhia, Francisco tem um plano: destruir o modelo de companhia que Elias dirige. Toda a sua tática será voltada para os conteúdos doutrinários que legará aos agentes. Ele debate esse plano com Leão e Junípero. Mas eles não animam Francisco. Francisco vai querer colocar o estatuto da Companhia ou seja, a regra, na mão dos agentes. Elias discorda que os agentes retomem o discurso dos primeiros tempos e considera isso como uma manobra de Francisco. Elias leva o caso ao Conselho para que sejam retirados todos os poderes a Francisco, o que acontece.
Com o espaço reduzido, Francisco tenta uma última cartada: procurar aliados para a sua cruzada em favor da pobreza. Vai buscar no mundo dos pobres, o rei dos pobres. Trá-lo à presença de Elias. Sua intenção é demonstrar a Elias que a pobreza pode vencer. Mas na hora em que Pedro, rei dos pobres, tem a palavra, é taxativo: "Como queres tu que os pobres destruam os ricos? Como queres que os fracos destruam os fortes? Como queres que os inermes arredem os poderosos? Que armas nos dás, Francisco?" É um engano supor que os ricos são poucos. É preciso ser-se pobre, estar colocado no ponto de vista do pobre para ver como só ricos são numerosos. Há dias em que andamos na rua e só vemos ricos. "Francisco pede aliança para destruir o inimigo comum, o egoísmo e a ambição. Pedro responde: "Não somos pobres iguais. Tu tornaste-te pobre para poderes ganhar o céu e nós que pobres fomos e pobres continuamos a ser, nem a terra conseguimos conquistar." "Não me leves a mal, Francisco […] Foste pedir a pobres o que pobres não podem fazer: acabar com os ricos."
Francisco, no íntimo, se sensibiliza com as palavras do rei dos pobres. E converte toda a sua determinação numa resolução concreta que revela a Elias: "Agora vou lutar contra a pobreza. É a pobreza que deve ser eliminada do mundo. A pobreza não é santa (Pausa). Tantos séculos para compreender isto. Algum de vós quer vir comigo?"
E assim termina a grande alegoria deste texto teatral de Saramago.
O mérito da reversão ideológica da pobreza franciscana emcarnada nas mais profundas raízes arquetípicas representadas pelo fundador Francisco de Assis, é o de manter intacta a utopia do homem, caminhando em direção à perfeição e ao desprendimento, de um lado, criando um arquétipo desmaterializado de homem idealista, e por outro, manter a segunda utopia de acabarmos com a pobreza no mundo, como fruto de um programa realista. Com muita sabedoria Saramago serviu-se do teatro para transmitir esta mensagem e criou como executor desta ideia exatamente o grande idealista que no século XIII escolheu a Dona Pobreza como ideal de desprendimento e de progresso espiritual. Trata-se de um teatro de ideias, bastante objetivo, em perfeita consonância com o tipo de liuteratura que Saramago tem praticado em romances maiores como Levantado do Chão e Memorial do Convento, quando sua principal armadura literária é denúncia da dominção e da exploração do homem pelo homem. Este texto, sendo escrito por um comunista sincero, dá-nos a medida real de como ainda falta à humanidadee uma sensibilidade que vibre com as traumatizantes realidades sociais. Quando S. Francisco, em sua segunda aparição no mundo decide mobilizar suas energias para lutar contra a pobreza, está mostrando duas coisas: a primeira é a de que além da salvação individual, como havia pensado ao decidir-se pela pobreza absoluta professada em sua regra, é necessário que todos se voltem para a salvação coletiva já nesta terra, para que através de uma ação politica, econômica e social, seja fundado um novo humanismo baseado no respeito ao homem como gente, garantindo aos humildes e aos pobres e trabalhadores, o justo salário e as condições convenientes a uma vida de saúde, de educação, de transporte, de habitação, para eles e suas famílias. A segunda mensagem que o segundo Francisco nos transmite é a forma superior que ele encontrou para servir a humanidade com uma ideia fecunda, superando os dois pólos dialéticos da contradição interna que durante muito tempo persistiu e que se transformou em guerra de poder quando duas facções se limitavam a discutir a"pobreza conforme preceituava a regra original" ou "ordem/companhia/empresa adaptada aos tempos, gerindo negócios e criando seu próprio capital. A superação da antinomia surgiu no momento em que Francisco compreendeu mais profundamente a realidade dos pobres frente à realidade dos ricos. Esta saída está perfeitamente de acordo com a linha humanística do primitivo franciscanismo: "Agora vou lutar contra a pobreza. É a pobreza que deve ser eliminada do mundo."Com este propósito, fica eliminado o apelo violento da luta armada, a dialética da ditadura do proletariado e até a luta de classes. Francisco envolve-se com um enunciado que apenas exige espaço para que o pobre seja gente. No Brasil, em Portugal, onde quer que seja, esta segunda Vida de Francisco de Assis, surge como uma metáfora moderna de um mundo que precisa de uma transformação humanística superior, de uma teoria do homem pelo homem. Esta metáfora inspirada e apresentada por Saramago mostra como teatro e literatura podem ser discursos ativos voltados para o realismo social. No plano da ética política, o dinheiro e a riqueza devem ser controlados pelo direito de todos a fim de que a ambição não provoque a exploração e o aviltamento da consciência. Branca e luminosa, a prata, símbolo ocidental do dinheiro (argentum, argent), indica pureza e no cristianismo, pureza e purificação.
Ao tomar a decisão de lutar contra a pobreza, o novo S. Francisco, segundo Saramago, denuncia que a pobreza é uma ignomínia, o grande mal contemporâneo, que torna miseráveis e viciadas nossas favelas, nossos bairros, nossos subúrbios, nossos campos, nossos países e nosso mundo. Essa decisão tem tudo a ver com a modernidade dos novos partidos políticos e dos movimentos populares para os quais a questão social e o problema da qualidade de vida são prioridade política número um da nossa sociedade.
A partir da Conferência de Medellin que se apoiou no espírito de abertura do Concílio Vaticano II, uma nova pastoral eclodiu na América Latina e no mundo – a pastoral dos pobres. Nessa pastoral está contida a postulação de uma nova consciência entre os cristãos: a consciência do engajamento através da postulação da justica social. Seria certamente hipocrisia a nominação cristã de um ser humano que simplesmente pactua com a dominação e com a exploração. A partir de Medellin, os pobres, a parcela pobre da sociedade deverá ter seus direitos sociais assegurados. Uma teologia nova – a teologia da libertação – (ou "la teologia de la liberación", como dizem os latino-americanos de "habla española") dará os fundamentos teóricos de inspiração cristã para uma ação pastoral nesse sentido. Nas décadas de setenta e oitenta, em pleno Brasil, uma Igreja renovadora e progressista se organiza e cresce. Ela se ergue em nome das classes dominadas como alternativa de defesa contra o rolo compressor e opressor do capitalismo selvagem, numa luta que teve como objectivo o restabelecimento do estado de direito dos pobres. Na história brasileira desta luta, tanto na teorização das bases pastorais (Leonardo Boff), quanto na própria acão pastoral (Cardeais Lorscheider e Arns e o arcebispo Claúdio Hummes em Santo André), há franciscanos ilustres que já estão atuando de acordo com o espirito da proposta desta segunda Vida de Francisco de Assis.
Com este texto literário de Saramago, a luta dos intelectuais pela democracia e pela justiça social mostra-se mais perto dos puros ideiais da humanidade.
Nosso desejo é o de que muitos outros textos divulguem esta ideia e muitos São -Franciscos, antigos e modernos reorientem a força espiritual da Humanidade para o horizonte dos pobres a fim de que possamos ver mais crianças sorrindo, menos mães tristes e traumatizadas e menos pais sufocados. O teatro é uma catarse social e simultaneamente um instrumento de compromisso e de luta.

João Ferreira – Brasília, Brasil
E-mail: joaofen@uol.com.br
Universidade Católica de Brasília


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