Autor: Nythamar de Oliveira
Resumo: Trata-se de examinar em que sentido a desconstrução enquanto paradigma teológico-filosófico pode ser tomada como uma leitura defensável das chamadas teologias da libertação, visando reivindicações de justiça e alteridade. A fim de esboçar uma teologia desconstrutiva e em que consiste a desconstrução da libertação enquanto metáfora da teologia e da filosofia política, proponho-me a re-situar o tema enquanto problema da teologia filosófica, inserido na problemática maior de articular teologia e filosofia, passando a uma revisão crítica do projeto originário da teologia da libertação (Leonardo Boff) e a uma desconstrução da filosofia política (Jacques Derrida), em termos da "impossibilidade de justiça".
Palavras-chave: alteridade, desconstrução, filosofia política, justiça, teologia da libertação.
Abstract: The article sets out to examine how deconstruction qua philosophical-theological paradigm can be regarded as a defensible reading of so-called theologies of liberation, with their claims for justice and alterity. In order to outline such a deconstructive theology and the deconstruction of liberation qua metaphor of theology and political philosophy, the theme is recast as a problem of philosophical theology, within the broader problematic of articulating theology and philosophy, before proceeding to a critical review of the original project of liberation theology (Leonardo Boff) and to a deconstruction of political philosophy (Jacques Derrida), in terms of the "impossibility of justice."
Key words: alterity, deconstruction, justice, liberation theology, political philosophy.
I.Teologia e Filosofia: Situando o Problema da Libertação
Antes de mais nada, permitam-me assinalar que ao falar de "teologias da libertação" –no plural– estou aludindo ao fenômeno histórico social que abrange não apenas grupos católicos e protestantes ligados à teologia da libertação dos anos 60 e 70 mas ainda feministas, movimentos negros, indígenas, palestinos, irlandeses e outros de diversos países e etnias com reivindicações de libertação.[2] Reservo, portanto, o termo "teologia da libertação" para designar a escola liberacionista em sua meta-teologia e diversas contribuições para a teologia sistemática, cristologia, eclesiologia, antropologia, etc. A teologia da libertação, ecumênica desde os seus primórdios, se propõe com efeito a radicalizar a reforma da Igreja, como atestam vários escritos de Rubem Alves, Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff.[3] Do ponto de vista filosófico-teológico, o termo "libertação" é inseparável de seu correlato "liberdade" –e é precisamente nesta correlação que eu gostaria de mostrar que uma desconstrução do político pode nos ajudar a melhor entender o que está efetivamente em jogo no debate sobre a atual crise de paradigma da teologia da libertação. Assim meu interesse programático é, antes de mais nada, situar a teologia da libertação na pretensão essencialmente hermenêutica de seu projeto original, a saber a de articular uma nova maneira de fazer teologia a partir de uma práxis de libertação. José Miguez Bonino resume o intento hermenêutico da teologia da libertação nos seguintes termos: "Temos em primeiro lugar a questão da hermenêutica: É legítimo desenvolver uma interpretação bíblica a partir de uma interpretação histórica contemporânea? …Como pode-se manter a liberdade do texto?"[4] A idéia central é que a hermenêutica bíblica nos remete inevitavelmente a uma pré-compreensão condicionada pela práxis, visto que não há uma compreensão teórica neutra ou sem condicionamentos práticos e pragmáticos. No que diz respeito a questões sociais e políticas não haveria como não suspeitar das imposições ideológicas de classes dominantes, em particular dos países ricos (G-7), suas multinacionais e instituições financeiras (FMI, Banco Mundial). Daí a estratégia de se recorrer a uma análise marxista.
A questão hermenêutica é precisamente a que predomina na interlocução ecumênica entre filosofia e teologia, como atestam as contribuições dos maiores teólogos do século XX, tais como Karl Barth e Karl Rahner, para reformular o problema da reviravolta antropocêntrica iniciada por Kant, Hegel e Feuerbach. A hermenêutica liberacionista se articula através da fusão de três horizontes teológicos principais, a saber, o da crítica histórico-formal liberal (de David Strauss a Rudolf Bultmann), o da teologia política (Johann Baptist Metz) e o da teologia da esperança (Jürgen Moltmann). Em todas essas apropriações e releituras de tradições há uma preocupação constante em partir de uma práxis concreta de libertação do Outro –o pobre, a vítima, o excluído. Assim, alguns autores liberacionistas logram articular um discurso neomarxista (inspirado em autores como Ernst Bloch e Herbert Marcuse) com uma filosofia da alteridade, como a de Emmanuel Levinas. Uma primeira grande questão para uma releitura desconstrucionista da libertação consiste precisamente em rever a apropriação da filosofia pela teologia, no sentido mesmo de se perguntar: "para que serve a filosofia?" Ou "quem precisa da filosofia?" Ou ainda, "quem tem medo da filosofia?"
Minha reflexão sobre o problema da libertação pode ser situada na interseção entre uma investigação político-filosófica (o problema filosófico da liberdade) e uma investigação filosófico-teológica (o problema da relação entre o ser humano e a divindade, em particular, Deus enquanto Todo-Outro).[5] Antes de mais nada, gostaria de assinalar aqui que subscrevo a uma formulação sobre a relação entre filosofia e teologia como a aprendi do professor Jean-Claude Piguet, segundo a qual enquanto a teologia se ocupa de mistérios, a filosofia se ocupa de problemas, portanto filosofar é problematizar, "philosopher c’est problématiser" (do grego "pro-ballo", lançar para diante de si –uma questão, um tema, um problema).[6] Assumo, desta forma, uma atitude de skepsis (investigação) permanente sem buscar uma ancoragem na doxa ou na pistis (na opinião, na crença ou na fé). Apesar de contrapor ceticismo e dogmatismo, não creio que esta seja uma polarização redutível à exclusão da teologia pela filosofia ou vice-versa. Afinal, uma hermenêutica da suspeita coloca lado a lado ateus militantes, agnósticos, fundamentalistas e inquisidores.
A partir de uma perspectiva da filosofia da religião ou da teologia filosófica, é perfeitamente compreensível que obtenhamos diversas versões possíveis de um projeto como o liberacionista –ou seja, desde as formulações secularizadas mais liberais e as neo-ortodoxas até as mais reformistas do que propriamente revolucionárias e mais conservadoras do ponto de vista evangélico. Ao tentar justificar a crença em Deus e o significado do cristianismo, sua mensagem de salvação, sua teologia da criação, queda e reconciliação, a perspectiva liberacionista não se contenta em interpretar credos e dogmas mas busca transformar a própria existência cristã num mundo cada vez mais secularizado, racionalizado e reificado pelo capitalismo. A questão da natureza divina, a questão de contrapor fé e razão, fé e obras, são por exemplo reformuladas em função de um primado da práxis com relação a aspectos tradicionalmente confessionais. Mesmo que não possa ser reduzida a categorias tais como o sacrifício, o sagrado, o Outro, o Absoluto, etc., a religião cristã não pode ser concebida sem pressupor uma concepção específica da divindade –um Deus triúno, transcendente, criador, revelado na história através do judaísmo e do cristianismo, sendo a justiça um de seus mais significantes atributos. Se a justiça divina não se limita à justificação do pecador mediante o sacrifício vicário de Jesus Cristo, mas envolve ainda uma libertação sociopolítica, correlata à primeira, me parece uma questão crucial que divide cristãos das mais diversas tradições e correntes confessionais. Assim como a questão da existência de Deus ocupou grande parte das empreitadas da teologia filosófica do Esclarecimento –por exemplo, na querela entre teístas e deístas–, a questão da responsabilidade social do cristão encontrou no pesamento liberacionista seu maior desafio, seguindo o desenvolvimento da doutrina social da Igreja, em particular sua missão sacramental pós-conciliar. De resto, é na sua articulação original entre teoria e práxis que a teologia da libertação mais se aproxima do intento metodológico da filosofia primeira, desde Platão e Aristóteles até Kant, Marx e Habermas.[7]
O filosofema "libertação" nos remete, em última análise, ao problema atual de se reconhecer as pretensões de uma suposta "filosofia da libertação" sem confundi-la com a "teologia da libertação". Se a diferença entre teologia e filosofia é estabelecida pela determinação da especificidade disciplinar dessas duas grandes áreas do conhecimento e de suas respectivas formas de saber, pressupondo, portanto, uma concepção do que seja o objeto próprio da teologia e da filosofia, os respectivos objetos da filosofia da religião e da teologia filosófica não são redutíveis ao da teologia, ou vice-versa, como atestam as mais diversas formulações filosóficas dogmáticas e as concepções religiosas e teológicas fundamentalistas. Trata-se em última análise de estabelecer em que sentido fé e razão se opõem e se faz sentido fazer filosofia de forma a transcender a razão. As passagens de um paradigma (pré- moderno) "ontológico" a um paradigma (moderno) da "subjetividade" e, mais recentemente, a um paradigma "lingüístico" em nada asseguram uma maior objetividade ou neutralidade num suposto nível metateórico capaz de resolver tal problemática sem revisitar suas formulações mais clássicas. Assim, é perfeitamente possível, numa chamada "condição pós-moderna", articular uma concepção de teologia filosófica que "se difere" da filosofia precisamente pela sua diferença (différence) disciplinar e pelo diferir ("différance, diferensa") entre fé e razão–o diferir da razão com relação à fé, diferença transcendental reflexiva (Kant, Hegel), não-reflexiva (Kierkegaard, Heidegger) e não-transcendental ("quase-transcendental", Derrida e Habermas). A própria emergência de um novo paradigma teológico-filosófico na América Latina –liberacionista– deve ser, portanto, compreendida à luz da complexa radicalização hermenêutica que segue a crítica pós-kantiana e a genealogia pós-nietzschiana.[8] Esse é um diferir hermenêutico radicalizado, a partir da desconstrução de significantes e redes de significação da religião. Nas palavras de Rubem Alves,
"O problema hermenêutico está em descobrir a razão por que o homem produz a religião. Que é que ela significa? Qual a chave que nos permite decifrar-lhe o enigma? Se as imagens religiosas não se referem aos deuses, como pensava a teologia, e se a imaginação não pode ser reduzida à ilusão, como pretendia o empirismo, que caminho nos resta?"[9]
II. Libertação e Justiça
Juán Luis Segundo já assinalava, no início dos anos 80, a existência de duas ondas da teologia da libertação, com uma ruptura importante a partir de 1975:
"La première théologie de la 1ibération n’avait suscité espoir, enthousiasme et conversion que dans les milieux bourgeois intégrés à une culture européenne. L’intérêt des intellectuels pour les pauvres les avait rendus dangereux pour le status quo, mais la persecution des bourgeois gauchistes dans toute l’Amérique Latine ne suffisait pas à combler l’écart qui les séparaient de la base."[10]
Ao contrário da primeira onda, restrita aos meios intelectuais burgueses, a segunda onda é marcada pela irrupção das comunidades eclesiais de base e pela pastoral liberacionista. Se os anos 50 e 60 foram dominados pelo discurso do desenvolvimento e do progresso social, culminando com a opção preferencial pelos pobres e a emergência de um novo paradigma –liberacionista em oposição a desenvolvimentista–, notavelmente a partir da Conferência do CELAM em Medellín (1968) e na Conferência de Puebla (1979), podemos caracterizar esse novo paradigma teológico através de cinco metas originais:
1. A proposta de uma nova linguagem teológica, capaz de dar conta de novos problemas assinalados nos grandes encontros ecumênicos internacionais dos anos 60 e 70 –sobretudo no Conselho Ecumênico de Igrejas, na Suíça (1966, "Igreja e Sociedade") e o movimento ISAL, criado em Lima em 1961. Não apenas semanticamente temos uma contraposição entre "desenvolvimento" e "libertação", na verdade ambos termos nos remetem ao ideal esclarecedor de autonomia, emancipação, seja embasada na liberdade de pensamento e na idéia liberal de liberdade, seja ela fundada na base material econômica, histórica e socialmente constituída.
2. A primazia da práxis, seguindo a orientação pastoral de grandes líderes comunitários como Dom Helder Câmara e Don Manuel Larraín, através de um processo de conscientização junto aos pobres–lembremos que Dom Helder foi secretário geral da CNBB de 1952 a 1964 e foi um dos fundadores do CELAM. A obra-prima de Gutiérrez é incisiva quando afirma que "refletir sobre a fé enquanto práxis libertadora é refletir sobre uma verdade que não é simplesmente afirmada mas que é feita." Portanto, a primazia da ação sobre o discurso é o ponto de partida de toda reflexão liberacionista.
3. O papel desideologizador da teologia: a reflexão teológica é necessariamente, segundo Gutiérrez, uma crítica da sociedade e da Igreja, interpeladas pela Palavra de Deus. Este é precisamente o sentido crítico da dimensão utópica de contestação, sublinhada por Alves e Boff. Creio que aqui reside também uma dimensão desconstrutiva na reflexão liberacionista, que tentarei esboçar abaixo.
4. A radicalização metodológica: na medida em que a Igreja é instada a sair do ghetto espiritual e assumir sua existência histórica num mundo de opressores e oprimidos, a própria concepção de método em teologia é radicalizada como práxis de libertação onde a mediação teórica deve refletir uma situação e um engajamento sociopolítico. Daí a célebre fórmula de Gutiérrez "una nueva manera de hacer teología," segundo a qual não há uma perspectiva isenta de ideologização na medida em que o locus histórico concreto precede o logos analítico-conceitual. Radicalizar o método teológico é precisamente o que Segundo denomina de "círculo hermenêutico", inclusive com relação ao próprio discurso liberacionista em sua pretensão desideologizadora.[11]
5. Uma teologia antropológica: como já foi assinalado, a teologia da libertação se situa no movimento antropocêntrico iniciado em teologia com Feuerbach e consolidado na desmitologização existencial de Bultmann. O ser humano a ser desenvolvido e liberto é um projeto inacabado, autônomo, criador de seu próprio destino: homo homini deus est. Assim, o porvir e o devir do ser humano é uma tarefa antropogenética na medida em que a teologia resgata a dimensão utópica social do imago dei. Neste sentido, a cristologia de Leonardo Boff é bastante instrutiva.
Numa crítica à visão reformista pós-conciliar da Igreja no Brasil, Hugo Assmann anunciava, desde 1970, a importância de redescobrir a antropologia teológica que, numa perspectiva liberacionista, seria a chave hermenêutica de uma "concepção sacramental" da Igreja pós-conciliar.[12] Num outro texto de 1971, fazendo uma autocrítica da teologia da libertação, Assmann reconhecia então a existência de duas "lacunas teológicas de fundo", além das lacunas antropológica e "sacramental", a saber, a lacuna cristológica e a lacuna hermenêutica.[13] A publicação, no ano seguinte, da obra de Leonardo Boff, Jesus Cristo Libertador, foi aclamada como a primeira "cristologia liberacionista" visando a preencher tais lacunas.
Com efeito, vários escritos de Boff atestam sua preocupação teológica de responder aos desafios colocados pela reflexão liberacionista, em particular, o de uma "cristologia crítica" que levasse em consideração as dimensões antropológicas e sacramentais da Igreja pós-conciliar.[14] Uma análise meticulosa da obra boffiana dos anos 70 permite-nos situar, de resto, uma transição teológica do Boff "germânico" ao Boff "liberacionista", ou, como o sugeriu o Padre Martins Terra, do "Boff 1" (o teólogo liberal) ao "Boff 2", teólogo latino-americano.[15] Assim como Juán Luis Segundo classificara o pensamento boffiano como pertencendo à "segunda onda liberacionista", pode-se dizer com justiça que sua obra contribui, com efeito, para esta guinada antropológica –tanto num sentido empírico-cultural quanto num sentido propriamente transcendental, em seus pressupostos de filosofia do sujeito. Sendo a obra boffiana um tanto vasta, apenas resumirei o intento antropológico de sua teologia e cristologia, sobretudo a partir dos trabalhos supracitados.
Apesar de todo o sucesso de seu Jesus Cristo Libertador nos anos 70, a originalidade desta obra foi questionada pelo próprio Segundo e por outros teólogos que chegaram a caracterizá-la como uma cristologia alemã para a América Latina. A grande importância desse texto foi, outrossim, a emergência do problema das mediações socio-analíticas, em particular o uso metateológico da chamada "análise marxista". Segundo Boff, a chave hermenêutica de sua cristologia pode ser caracterizada nos seguintes termos:
1. primado do elemento antropológico sobre o elemento eclesiológico, na medida em que se trata de libertar o homem latino-americano e não a Igreja, que precisa ser humanizada;
2. primado do elemento utópico sobre o factual: nosso passado de colonização não seria capaz de nos fornecer uma base para nossa transformação eminente, nossa esperança se baseia no futuro, na utopia do "ainda-não" de nosso ser social;
3. primado do elemento crítico sobre o elemento dogmático: Boff segue de maneira sistemática o projeto crítico do Esclarecimento alemão, radicalizado pelo jovem Marx, inclusive na crítica da religião com intento de emancipação política;
4. primado do social sobre o pessoal: a missão profética da Igreja deve ser resgatada a partir de uma nova consciência social, dada a marginalização de milhões de pobres no continente latino-americano;
5. primado da ortopraxia sobre a ortodoxia: trata-se de fazer uma cristologia de baixo para cima, "pé-no-chão", segundo o modelo hegeliano já proposto por Wolfhart Pannenberg.[16]
Na segunda edição de seu Jesus Cristo Libertador (1985), Boff adiciona um capítulo de introdução à sua metodologia cristológica para distinguir o "lugar epistêmico" da dependência de seu "lugar social", através de uma "mediação hermenêutica" que estabeleça os critérios teológicos para a interpretação do "texto socio-analítico" e de uma "mediação socio-analítica" que nos forneça uma "crítica permanente" da realidade que buscamos transformar.[17] A "conversão hermenêutica" anunciada por Boff é, na verdade, uma reformulação da "conversão ao porvir" proclamada por Moltmann, desde 1964, em sua Theologie der Hoffnung.[18] Trata-se, portanto, de resgatar o porvir utópico do devir humano a partir de suas contradições históricas concretas hic et nunc.
A antropologia boffiana, creio eu, acaba por trair sua própria tentativa de traduzir uma práxis libertadora em termos cristológicos e escatológicos ao filiar-se a tradições que não são insuspeitas nem acima de toda suspeita –de Hegel, Feuerbach e Marx a Bloch, Pannenberg e Moltmann. A dimensão utópica do novo homem acaba por trair um passado sempre presente, mesmo quando se volta para o porvir, esvaziando-o de qualquer possível transcendência. Se o desumano é o que deve ser superado hoje no devir voltado para o futuro, Boff não logra desvencilhar-se da mesma aporia da historia gravida que pretende justificar a incansável marcha da Liberdade através de guerras, conquistas e genocídios, a menos que transponha o problema para uma suposta "história de Deus" ou do "Deus em devir" –como o fazem a teologia da esperança e a teologia do processo. Para além de todo o ecletismo teológico-filosófico e das limitações inerentes às teologias genitivas ("teologias de…"– da morte de Deus, da secularização, do ser, da história, etc.) do século XX, a teologia da libertação nos remete ao problema fundamental do significado do ser humano e de suas possíveis tematizações em filosofia e teologia. Se a filosofia problematiza incansavelmente a questão do ser humano, sem reduzi-la a uma antropologia filosófica essencialista ou a uma metafísica dogmática, a teologia não cessa de renovar o mistério da questão de Deus nas próprias tentativas de respondê-la enquanto alteridade irredutível. O problema hermenêutico da teologia da libertação nos remete, enfim, à sua própria desconstrução.
Antes mesmo de ser tomada como contra-movimento que se opõe à sedimentação das grandes tradições (o "dé" francês equivalendo ao "Ent" alemão, como por exemplo, na "desmitologização", Entmythologisierung, de Bultmann ou no "desformalizado", entformalisiert, de Heidegger, Sein und Zeit § 7 C, p. 35, § 48, p. 241, 7a. edição) a desconstrução é movimento, dinamização, pluralização e disseminação das tradições em constantes reapropriações, releituras e reformulações.[19] Rodolphe Gasché nos lembra que o termo "déconstruction" enquanto estratégia quase-metódica de crítica da subjetividade reflexiva em Derrida nos remete ao "Abbau" ("desmantelamento") do Husserl dos anos 30 (notavelmente, Experiência e Juízo, de 1938) e à "Destruktion" ("destruição") do Heidegger dos anos 20 (sobretudo, em Ser e Tempo, 1927).[20] Ao contrário da "destruição mental" (gedankliche Destruktion) do primeiro tomo das Ideen (1913), aludindo a outras formas de redução fenomenológica (eidética e transcendental, époché, "colocar entre parênteses"), Abbau é uma regressão não-reflexiva ao mundo da vida, ao mundo pré-teorético e à experiência antepredicativa –um sentido que é analisado pelo próprio Derrida em sua monumental introdução à sua tradução da Origem da Geometria de Husserl (PUF, 1962). Gasché assinala ainda que Heidegger utiliza o termo que viria a ser registrado por Husserl antes mesmo do seu mestre, nas Vorlesungen de 1927 em Marburg (publicadas na Gesamtausgabe em 1975 como os Problemas Fundamentais da Fenomenologia, volume 24). A fim de evitarmos o paradigma reflexivo da fenomenologia ortodoxa, Heidegger nos convida a uma construção fenomenológica, inevitavelmente correlata a uma desconstrução crítica (kritischer Abbau) das fontes e conceitos-chave da ontologia tradicional. Um dos grandes méritos da hermenêutica heideggeriana consiste precisamente em operar uma mudança radical de enfoque da subjetividade transcendental –que predomina na metafísica ocidental de Descartes a Husserl– em direção ao Ser enquanto transcendental ou o que ele denomina uma ontologia fundamental, capaz de desvelar uma concepção não-reflexiva da linguagem, historicizada e inseparável do Dasein. Derrida quer se diferenciar de Heidegger precisamente quanto à diferensa (différance, temporização) implícita na própria diferença ôntico-ontológica de Heidegger, a partir da oposição entre ser (Sein) e ente (Seiende) e inspirado na rasura e no rastro heideggerianos do Ser (Sein riscado em cruz, Seyn) mas voltando a Nietzsche e Freud pela reabilitação do registro perdido, esquecido, reprimido, precisamente enquanto objeto de um esquecimento epocal, na própria tentativa de pretender haver superado a metafísica a ser desconstruída. Em uma palavra, segundo Derrida, estamos desde sempre em presença da metafísica, na metafísica da presença[21]– donde resulta a indecidibilidade do problema filosófico-teológico de Deus. Ou, conforme Rubem Alves, "Deus é o nome que damos a esta Ausência que habita o Corpo…"[22]
"Desconstrução" é, portanto, tomada aqui como radicalização da hermenêutica, segundo uma formulação de John Caputo endossada por Derrida, correpondendo não apenas à desconstrução do sujeito e da metafísica ocidental, seguindo um modelo heideggeriano, mas ao complexo parricídio filosófico que mantém em movimento toda a história da filosofia em suas infindáveis interlocuções e rupturas através de mais de 2500 anos de filosofia ocidental. O nome de Derrida é agora evocado de maneira estratégica, apenas para aludir a uma nova maneira de fazer teologia segundo um paradigma desconstrucionista. Mark C. Taylor, um dos mais importantes expoentes da teologia pós-moderna nos EUA, sugere que "desconstrução é a hermenêutica da morte de Deus".[23] Segundo Taylor, a importância de Derrida para a interlocução atual entre teologia e filosofia reside sobretudo na sua reapropriação desconstrutiva de autores polêmicos como Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Freud. Afinal, a desconstrução de todos os filosofemas –inclusive os da filosofia política– nos remetem à própria desconstrução do conceito filosófico-teológico de Deus, na escrita da filosofia ocidental e na escritura da tradição judaico-cristã.[24]
Creio que poderíamos até elaborar o problema da pretensão desideologizadora da teologia da libertação, para além de todo funcionalismo de inspiração marxista, de forma a aproximar a "função da desideologização" de uma desconstrução, assim como já foi feito com relação à desmitificação e desmitologização. Além do grande problema de questionar o emprego de categorias do léxico marxista–tão ideológico quanto sua crítica de neutralidade na filosofia, história e ciências sociais que abordam a realidade latino-americana– e de conceitos marxianos (tais como "luta de classes", "dependência", e a própria "libertação") na teologia, podemos acima de tudo reconsiderar outras possibilidades discursivas com relação ao engajamento social de cristãos e de todos que crêem de algum modo na possibilidade de um mundo melhor, sobretudo para aqueles que não têm mais esperança. Lembro aqui uma citação que Marcuse faz de uma fórmula famosa de Walter Benjamin, segundo a qual "é somente por causa dos que não têm esperança que a esperança nos é dada (Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns die Hoffnung gegeben)."[25] Só resta esperança justamente para quem não crê –do contrário não seria esperança no sentido mais intenso de fé –enquanto esperança no que não se vê, mas se espera (Heb. 11:1).
III. "Desconstrução é Justiça"
Passo, assim, a tecer algumas reflexões político-filosóficas sobre a desconstrução da política enfocando o problema da possibilidade da justiça e a questão do fundamento místico da autoridade, à luz da leitura desconstrucionista que Jacques Derrida nos oferece do ensaio de Walter Benjamin, "Sobre a Crítica da Violência" (Zur Kritik der Gewalt, 1921).[26] Como ponto de partida, tomarei duas premissas bem estabelecidas na história da filosofia política moderna que servirão para balizar as teses diretrizes em torno do moto derridiano "Desconstrução é justiça":
1. A possibilidade da justiça, assim como a da própria sociabilidade, se configura em oposição ao que Thomas Hobbes denominou "o estado de natureza", "o estado de guerra", qual seja, "o perigo iminente da morte violenta". Na medida em que procura justificar instituições coercitivas (num sentido amplo, de forma a incluir não apenas instituições políticas, jurídicas, sociais e econômicas do governo e do Estado, mas ainda a família, a sociedade civil, ONGs, associações voluntárias), a filosofia política tem sido –hoje mais do que nunca– definida em termos de uma teoria democrática da justiça, como atestam os trabalhos recentes de John Rawls, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio, Charles Taylor, Agnes Heller, Seyla Benhabib, Nancy Fraser, Otfried Höffe, Brian Barry, Richard Bernstein et al.
2. Justiça pressupõe alteridade. Todo o desenvolvimento do pensamento político ocidental, na transição do antigo ethos greco-romano em direção ao ethos da modernidade se dá sob o signo da alteridade –muito embora esta não tenha sido tematizada de maneira explícita e contundente antes do século passado, em particular depois da fenomenologia, da hermenêutica e dos trabalhos de pensadores como Heidegger, Buber, Levinas, Adorno, Foucault e Derrida. Assim como a subjetividade se redescobre em sua co-constituição intersubjetiva, correlata à linguagem, à socialidade e à historicidade, a partir da Fenomenologia do Espírito hegeliana e de suas aproapriações críticas em autores como Feuerbach, Marx e Kierkegaard, é sobretudo com a implosão da chamada filosofia da consciência, com sua lógica binária da identidade e sua metafísica da presença, que reformulamos a questão da alteridade nos limites de nossa modernidade. Como fazer jus ao outro? Como pensar e falar do outro sem violentá-lo, caricaturá-lo, reduzi-lo a um categorema ou filosofema de nossa própria pretensão totalizante de domínio do ser e do pensamento? Assim como a violência significa a aniquilação da alteridade, a justiça se propõe a dar conta da alteridade do outro.
3. A tese derridiana é tão lapidar quanto polêmica: "Desconstrução é justiça" [La déconstruction est la justice].(FL 944) Obviamente não podemos facilmente passar das duas premissas a esta surpreendente conclusão através de algum modus operandi pós-moderno, já que a leitura do texto de Derrida sobre Benjamin se apresenta ele mesmo como uma desconstrução de toda a tradição político-filosófica ocidental. Por isso já antecipo o seu corolário, enunciado alguns anos depois pelo próprio Derrida, a saber: "Tout autre est tout autre," "Todo/cada outro é todo/totalmente outro".[27] Para além da aparente tautologia e de todos os possíveis trocadilhos e jogos de palavras (puns, jeux de mots), Derrida quer reafirmar a radical alteridade de cada outro como se tratasse de uma divindade, do Outro Absoluto, o totaliter aliter (o Todo-Outro, das Ganz Andere, le Tout-Autre, the Wholly Other) em cada um de nós, seres humanos: o Outro é sagrado. O discurso religioso seria, portanto, uma tentativa de salvaguardar este espaço do sagrado, em particular, pela ritualização do encontro com o Outro no mesmo –por exemplo, na doutrina judaico-cristã do sacrifício (holocausto, expiação, substituição do outro que é morto para redimir os pecados da comunidade de iguais). A autoridade divina reside, acima de tudo, em justificar uma tal violência: o animal é sacrificado de forma a viabilizar a reconciliação com o Todo-Outro e de cada outro, iguais e igualmente pecadores diante de Deus. Assim como Levinas e Hegel, Benjamin é invocado por Derrida como interlocutor para mais uma mise en scène da desconstrução de tradições escritas, tecidas, construídas, disseminadas da chamada civilização judaico-cristã.[28]
4. O ensaio de Derrida acerca do texto de Benjamin "Sobre a Crítica da Violência" (Zur Kritik der Gewalt) foi debatido na abertura de um colóquio sobre o holocausto, organizado em 1990 por Saul Friedlander na Universidade da California em Los Angeles (Nazism and the "Final Solution": Probing the Limits of Representation). O ensaio dá continuidade a um outro texto sobre "Desconstrução e a Possibilidade da Justiça", apresentado em 1989 na Faculdade de Direito da Yeshiva University em Nova York (Cardozo Law School). Os dois ensaios compõem, portanto, o texto publicado como "Force de loi: Le ‘fondement mystique de l’autorité’". A fim de melhor entendermos a ambigüidade tematizada pela leitura derridiana do conceito de violência em Benjamin (Gewalt, em alemão, pode significar tanto "violência" quanto "poder") é mister lembrar algumas idéias desenvolvidas no primeiro ensaio, sobre a impossibilidade da justiça. Falando em inglês, o pensador argelino nos lembra que há dois termos fundamentais para a filosofia política que dificilmente se deixam traduzir do inglês para o francês (ou, no nosso caso, para o português), a saber: "to enforce the law" ou "enforceability of the law" (traduzidos como "aplicar a lei" ou a sua "aplicabilidade") e "to address" (endereçar algo a alguém, por exemplo, uma palestra a um público) mas cuja forma substantivada, uma "address" (não no sentido de um local ou domicílio de um destinatário, de uma carta por exemplo, mas no sentido de uma comunicação, uma conferência) não é facilmente traduzível de uma língua a outra. Com relação ao segundo termo, "to address", a problemática que nos interessa, segundo Derrida, é a de como nos endereçar ao outro, como lhe fazer jus numa comunicação ("address") que nunca se lhe dirige ("to address") de maneira integral. (FL 948) O primeiro termo, "to enforce" (alemão "erzwingen"), "obrigar, compelir, impingir, fazer cumprir ou executar uma lei", inevitavelmente nos remeterá a uma concepção autoritativa de força, uma força autorizada, conforme a expressão de Montaigne "le fondement mystique de l’autorité" (o fundamento místico da autoridade) consagrada por um pensamento de Pascal: "La justice sans la force est impuissante; la force sans la justice est tyrannique" (a justiça sem a força é impotente –na medida em que não é enforceable ou que não pode ser enforced– a força sem a justiça é tirânica)(FL 936). Derrida quer se distanciar do ideal regulador kantiano (dever-ser) e de toda concepção messiânica, precisamente porque a justiça não deve ser esperada, aguardada, segundo uma norma ou uma regra a ser cumprida: ela acontece ou deixa de acontecer, na medida mesmo em que chega a superar, transgredir e abolir uma regra ou norma injusta. (FL 966-8) Derrida cita Levinas para asserir "La vérité suppose la justice" (a verdade supõe a justiça, Totalité et infini, p. 62) Neste sentido, Derrida propõe que a justiça seja equiparada ao porvir, "La justice reste à venir …elle est à-venir", a justiça é o que permanece por vir, há de vir, ela é por-vir.
5. É assim que Derrida prossegue sua exposição para se apropriar da ambigüidade assinalada por Benjamin. Segundo Benjamin, a origem do direito e do poder judiciário se confunde com o espírito da violência, na medida em que Gewalt nos remete ao poder e à violência: "A institucionalização do direito é institucionalização do poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instituição divina de fins, o poder (Macht) é o princípio de toda institucionalização mítica do direito" (CV 139) Derrida mostra que, segundo Benjamin, a violência só deve ser avaliada de maneira crítica na esfera do direito e da justiça ou de relações morais: "Le concept de violence appartient à l’ordre symbolique du droit, de la politique et de la morale" (FL 982). O grande problema consiste em distinguir "como fins justos podem ser obtidos por meios legítimos, meios legítimos podem ser usados para fins justos" (CV 138), sem incorrer na arbitrariedade da decisão. Para Benjamin, afinal, "quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é jamais a razão, mas o poder (Gewalt) do destino e quem decide sobre este é Deus"(CV 138). Daí a ligação fundamental entre justiça e alteridade, entre seu fundamento místico e sua indecidibilidade –caráter do que não pode ser decidido por um cálculo da razão.
6. "Desconstrução é justiça": a justiça desde sempre (toujours déjà, immer schon, always already) nos remete ao outro, à possibilidade de sua impossibilidade, de tornar-se impossível, inviável, extinto, aniquilado — a aniquilação do outro. A alteridade do outro é correlata à indecidibilidade de sua emergência no horizonte de cada identidade social, coletiva. Tanto no sentido de força da lei, de legitimação do poder –de uma pensée de Pascal ou de un ensaio de Montaigne, também encontrado na enforceability of the law –law (loi) and Law (droit) –de Hobbes ("pacts without swords are but words")– quanto no sentido de violência a ser denunciada –mas esta é uma denúncia política, não moral, tão específica quanto a concepção que Rawls reivindica para a razão pública em nossas sociedades democrático-liberais. Outrossim, o intento original de Derrida é, justamente na esteira de Foucault, não apenas criticar a concepção jurídico-liberal do poder e sua lógica de exclusão, crítica de resto também adotada por pacifistas, ecologistas, marxistas e militantes de esquerda, mas que tende a ignorar o primeiro conceito, segundo a incisiva abordagem de Benjamin, de não podermos mais nos manter na ingênua expectativa do cumprimento de um mandamento divino ou de um dever moral. A idéia aqui é portanto a de uma obrigação sem o dever ou imperativo categórico, a de uma esperança sem messianismo utópico. Ao contrário da justiça tradicionalmente concebida como igualdade, liberdade igual para todos, eqüidade, trata-se em última análise de uma "concepção hiperbólica de justiça", segundo a qual a alteridade do outro hiperbolicamente nos obriga e de maneira suficiente, sem buscar uma razão ou um embasamento argumentativo qualquer, pois a inclusão do outro não é algo que vem "depois", num ordenamento seqüencial de razões, mas o que principia e baliza toda crítica da violência e do poder.[29]
Em conclusão, poderíamos até asserir –em um tom deveras apocalíptico– que tudo não passa de um efeito de "metaforicidade", dada a tentativa de reduzir a sociabilidade a mais uma dimensão intertextual e visto que tudo nos remete sempre a um contexto, não havendo nada "fora" do texto. Afinal, a "libertação" não nos remete apenas à "liberdade" liberal (liberdades básicas individuais, direitos humanos) ou socialista (igualitarismo não-liberal), mas também a experiências, vivências e mundos vividos de judeus, gregos e romanos antigos, medievais e modernos, que não se comunicam diretamente entre si, precisamente por um efeito de diferensa, temporização, do que é diferido, diferenciado e postergado, como se o devir fosse estancado no seio do próprio ser social, de sua identidade sociocultural e de seu ethos. Seguindo uma constatação do Padre René Marlé (de que a teologia da libertação teria operado uma nova revolução copernicana, deslocando para um novo oikoumene o antigo centro mediterrâneo do cristianismo),[30] da libertação enquanto metáfora geopolítica pode-se dizer que nos deixa com um desafio empírico, cada vez mais acentuado nesses tempos de globalização, a saber, que nos países do chamado "Terceiro Mundo" ou "países subdesenvolvidos," "em desenvolvimento" ou "emergentes," a grande maioria ou um segmento significante da população vive em condições socio-econômicas deploráveis de extrema pobreza. A opção preferencial pelos pobres visaria a denunciar a marginalização de grandes massas e uma miséria sistêmica, decorrentes de processos civilizatórios excludentes, onde os mais pobres e os excluídos resultam de um sistema econômico de exclusão –retornando, assim, à crítica ao capitalismo e ao uso de um instrumentário marxista. Todavia, a denúncia da violência institucionalizada e dos mecanismos de controle social não é privilégio de nenhum programa político-partidário ou de ideologias de esquerda e de direita. Desconstruir é, neste sentido, fazer jus às diferentes possibilidades de mudança social(différence), pela própria impossibilidade da justiça, em seu contínuo diferir (différance).
Uma tal concepção de justiça se propõe a evitar as aporias de concepções liberais e socialistas, na medida em que a democracia, a liberdade e outros valores modernos são retomados em seu esgotamento máximo, nos seus limites (nos limites do "outro da razão"), sem recorrer a uma forma de humanismo, antropologia filosófica ou metafísica que os fundamente. Desconstruir a libertação significa manter todo discurso ético-político sob suspeita, não apenas com relação a possibilidades de novas revoluções e transformações sociais, mas também no sentido terapêutico das resistências da psicanálise, na medida em que a vinda incondicional do Outro, do estranho (unheimlich), do radicalmente diferente ou novo, pode nos transpor para além de tais possibilidades. Assim, o multiculturalismo e o pluralismo democrático não apenas refletem a diversidade étnico-cultural da experiência humana de sociabilidade mas se manifesta também em termos de sexualidade, construção da subjetividade, projetos de vida, etc. Ao tentarmos re-situar a questão da alteridade no contexto atual da globalização, creio que lembramos com Derrida que a democracia –assim como a política da amizade e a liberdade de cada outro– não pode ser imposta, mas é o outro mesmo que nos solicita, que nos impele e requer de cada um de nós que preservemos nossa alteridade sem violência ou exclusão.
NOTAS:
1. Uma versão original do presente ensaio foi apresentada no Colóquio "Fé e Razão", na PUCRS em 5 de junho de 2001. O artigo foi originariamente publicado na revista Teocomunicação 32/135 (2002): 155-178.
2. Cf. James CONE, A Black Theology of Liberation (Philadelphia: Lippincott, 1970); Letty RUSSELL, Human Liberation in a Feminist Perspective (Philadelphia: Westminster, 1974); C.S. BANANA, The Gospel According to the Ghetto (Zimbabwe: Mambo,1980); Naim ATEEK, Justice, and Only Justice: A Palestinian Theology of Liberation (Maryknoll, NY: Orbis, 1989); Sharon D. Welch, Communities of Resistance and Solidarity: A Feminist Theology of Liberation (Maryknoll, NY: Orbis, 1985).
3. A tese de R. Alves, "A Theology of Human Liberation" (Princeton, EUA) e a conferência de G. Gutiérrez "Hacia una teología de la liberación" (Chimbote, Peru) foram elaboradas em 1968, e ambos participaram da consulta ecumênica sobre "Teologia e desenvolvimento" em Cartigny, Suíça. A tese de L. Boff, "Jesus Cristo Libertador", foi produzida em 1971. Cf. "A significação de Lutero para a libertação dos oprimidos", in E a Igreja se fez povo– Eclesiogênese: A Igreja que nasce da fé do povo. Petrópolis: Vozes, 1986.
4. J.M. BONINO, "Theology and Theologians of the New World: II. Latin America" Expository Times LXXXVII (1976), p. 199. Cf. "Hemeneutics, Truth, and Práxis," in Revolutionary Theology Comes of Age (London: SPCK, 1975); Anthony THISELTON, The Two Horizons: New Testament Hermeneutics and Philosophical Description with Special Reference to Heidegger, Bultmann, Gadamer, and Wittgenstein (Grand Rapids: Eerdmans, 1980).
5. Estou retomando as reflexões de minha dissertação de mestrado em teologia filosófica ("Imago dei et utopie sociale: Essai d’anthropologie postcritique", defendida em março de 1987 na Faculté de Théologie Réformée, Aix-en-Provence) e um projeto de PhD em hermenêutica teológica ("The Metaphorics of Liberation", com pré-defesa em junho de 1990 no Westminster Theological Seminary, Philadelphia).
6. J.-C. PIGUET, "Qu’est-ce qu’un philosophe?", Revue de Théologie et de Philosophie 118 (1986): p. 1-9; Penser avec les mots: Introduction au langage du philosophe (Lausanne: Payot, 1983).
7. Cf. Clodovis BOFF, Teologia e Prática: Teologia do Político e suas Mediações (Petrópolis: Vozes, 1978).
8. A obra de Michel Foucault, sobretudo Les mots et les choses, permanece a referência teórico-conceitual mais instrutivo para entendermos a atual crise de paradigmas. Cf. do Autor, Tractatus ethico-politicus (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999), cap. 6.
9. R.ALVES, "Apresentação" de L. FEUERBACH, A essência do cristianismo (Campinas: Papirus, 1988), p. 11.
10. J.L. SEGUNDO, "Les deux théologies de la libération", Études 361/3 (1984): p. 149-161.
11. Cf. Alfonso García RUBIO, Teologia da libertação: Politica ou profetismo (São Paulo: Loyola, 1983).
12. H. ASSMANN, Teología desde la praxis de la liberación (Salamanca: Sígueme, 1976), p. 211-227.
13. Ibidem, p. 100.
14. Cf. L. BOFF, Jesus Cristo Libertador: Ensaio de Cristologia Crítica para o nosso Tempo (Petrópolis: Vozes, 1972); A Ressurreição de Cristo: A Nossa Ressurreição na Morte, As dimensões antropológicas da esperança cristã (Petrópolis: Vozes, 1973); Minima Sacramentalia: Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos (Petrópolis: Vozes, 1975).
15. J.E. MARTINS TERRA, SJ, "Frei Boff e o neogalicanismo da Igreja brasileira", Diario de Pernambuco, Recife, 23 de setembro de 1984, p. A-22 ss.
16. Cf. W. PANNENBERG, Esquisse d’une christologie (Paris: Le Cerf, 1971).
17. L. BOFF, Jesus Cristo Libertador, op. cit., p. 17, 25 ss.
18. J. MOLTMANN, Théologie de l’espérance (Paris: Le Cerf, 1970).
19. Cf. do Autor, "Derrida, Hegel e a mitologia branca", Problemata 4 (2001).
20. R. GASCHÉ, The Tain of the Mirror (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1986).
21.Cf. Jean-Luc MARION, L’idôle et la distance (Paris: Grasset, 1977); Dieu sans l’être, (Paris: Fayard, 1982); Mark C. TAYLOR, Erring: A Postmodern A/theology (Chicago: The University of Chicago Press, 1984); Harvey COX, Religion in the Secular City: Toward a Postmodern Theology (New York: Simon & Schuster, 1984); Joseph O’LEARY, Questioning Back: The Overcoming of Metaphysics in Christian Tradition (Minneapolis:Winston-Seabury, 1986); David TRACY, Plurality and Ambiguity: Hermeneutics. Religion. Hope (New York: Harper & Row, 1987).
22. R. ALVES, Da Esperança (Campinas: Papirus, 1987), p. 14.
23. M. TAYLOR, Erring: A Postmodern A/theology, op. cit., p. 6
24. John D. CAPUTO, Radical Hermeneutics: Repetition, Deconstruction and the Hermeneutic Project (Indiana University Press, 1987); The Prayers and Tears of Jacques Derrida: Religion without Religion (Indiana University Press, 1997); Deconstruction in a Nutshell: A Conversation with Jacques Derrida (New York: Fordham University Press, 1997); Kevin HART, The Trespass of the Sign: Deconstruction, Theology, and Philosophy (Cambridge University Press, 1985).
25. H. MARCUSE, One-Dimensional Man (Boston: Beacon, 1964), p. 257.
26. Cf. J. DERRIDA, "Force de Loi: ‘Le fondement mystique de l’autorité’" Cardozo Law Review 11/5-6 (1990): 920-1045; W. BENJAMIN, Zur Kritik der Gewalt (1921) in G.S. II p. 179-203; "Crítica da Violência: Crítica do Poder" Religião e Sociedade 15/1 (1990) 132-140. Doravante, respectivamente abreviados FL e CV.
27. J. DERRIDA, Jacques. "Donner la mort". In L’éthique du don: Jacques Derrida et la pensée du don (Paris: Métallié, 1992).
28. Sobre a questão da violência e da alteridade, cf. J. DERRIDA, "Violence et métaphysique: Essai sur la pensée d’Emmanuel Levinas," Revue de métaphysique et de morale 3-4 (1964); reproduzido in L’écriture et la différence (Paris: Le Seuil, 1967); Glas (Paris: Galilée, 1974); Altérités (Paris: Osiris, 1986); Psyché: Inventions de l’autre (Paris: Galilée, 1987).
29. Cf. J. CAPUTO, Against Ethics (Indiana University Press, 1993), p. 18. Caputo desenvolve a idéia de "justiça hiperbólica" no Capítulo 10 de seu Desmitificando Heidegger (Lisboa: Instituto Piaget, 1998).
30. R. MARLÉ, "Les théologies de la libération", Recherches de Sciences Religieuses 74/1,2 (1986).
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