Autor: Duarte Pereira
Richard Shaull. Surpreendido pela graça – Memórias de um teólogo. Trad. Waldo César. Rio de Janeiro: Record, 2003. 320p.
O teólogo evangélico Richard Shaull já havia redigido uma boa parte de sua autobiografia quando, apreensivo, desabafou com sua segunda companheira de vida e de fé: “Nancy, quem vai querer ler isto?”
Aparentemente tinha razão, porque seu livro de memórias foi lançado no Brasil em novembro do ano passado e, até agora, não repercutiu, nem foi resenhado por publicações de tiragem expressiva. No entanto, a obra parece ser daquelas que são descobertas com o passar do tempo. Quem quiser pesquisar a rota sinuosa do cristianismo na América Latina na segunda metade do século passado, não poderá ignorá-la. E os historiadores e militantes das correntes de esquerda latino-americanas que desejarem refletir sobre sua trajetória e sobre suas relações com as maiorias cristãs de seus países, também não poderão desconhecê-la.
Nascido nos Estados Unidos, Shaull teve um papel importante na renovação do cristianismo latino-americano e prestou um apoio valioso às lutas populares no continente. É considerado um precursor da teologia da libertação, havendo quem divida a história da teologia protestante na América Latina em duas fases: antes e depois de Shaull. No Brasil, cumpriu um papel de estímulo e orientação nos meios evangélicos, principalmente junto a pastores recém-formados e a jovens estudantes, semelhante ao desempenhado pelo padre Henrique Vaz na juventude e na intelectualidade católicas. Ambos influíram nas idéias e nas escolhas dos militantes cristãos que fundaram e desenvolveram, ao lado de não-cristãos, a organização de esquerda Ação Popular.
É o que muitos leitores poderão descobrir, com surpresa, na autobiografia que Shaull concluiu pouco antes de falecer em 2002, aos 83 anos, vitimado por um câncer. Ele estruturou o resgate de sua trajetória em três grandes partes. A primeira reconstitui sua infância e adolescência na Pensilvânia, nos Estados Unidos, sua formação como pastor presbiteriano no Seminário de Princeton e sua decisão de partir para a América Latina como missionário. Esse bloco inicial abrange também o trabalho inovador realizado por ele na Colômbia entre 1942 e 1949, primeiramente em Barranquilla e depois em Bogotá.
A segunda parte recupera os anos decisivos que passou no Brasil, entre 1952 e 1962. A última aborda o regresso aos Estados Unidos, o envolvimento com os movimentos estudantis pelos direitos da minoria negra e contra a guerra no Vietnã, a desilusão com a Igreja Presbiteriana, os anos de derrotas para militantes cristãos e não-cristãos, o retorno cauteloso à América Latina, a reavaliação das igrejas pentecostais e, de repente, o embate final contra o câncer.
No derradeiro ano de vida, Shaull encontrou força para escrever um artigo sobre os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York e em Washington, anexado a sua autobiografia. Reafirma a convicção de que, “aos olhos da fé, enfrentamos, como nação, a maior reviravolta de nossa história”. Registra sua advertência: “Vejo nos Estados Unidos, tanto nos seus líderes como na maioria dos cidadãos, a continuidade do orgulho de sua sabedoria, sua força, suas riquezas. Mas seguir por essa trilha, creio, apenas prolongará a desintegração social e nos levará a uma contínua espiral de violência.” E conclui insistindo, como no passado, na necessidade de “reconstrução da vida humana, seja individual, comunal ou social”.
Refazendo seus passos práticos, Shaull descreve também as influências intelectuais que sofreu. Alguns de seus autores prediletos são conhecidos por um público mais amplo, como o dinamarquês Sören Kierkegaard e o russo Nicolas Berdiaeff, que deixaram suas marcas na teologia existencial e assistemática de Shaull. Outros, como Josef Hromadka e Reinhold Niebuhr, pertencem aos círculos especializados dos teólogos.
Ao voltar da Colômbia em 1949, Shaull foi integrado num projeto de estudo do marxismo, organizado em Nova York pela Junta de Missões Estrangeiras. Ele já havia entrado em contacto com o pensamento marxista através das relações que estabelecera com estudantes e jovens intelectuais marxistas em Bogotá, mas é nessa oportunidade que estuda metodicamente as principais obras de Marx e de seus sucessores. Participavam do projeto de investigação missionários retornados da China após a vitória da revolução popular, e Shaull se inquieta com a orientação conservadora que o estudo assume. Como recorda, “a primeira consideração não era fazer justiça, mas sim resistir à ameaça do comunismo”. Acrescenta que muitos “justificavam, nessa base, sua ausência na luta por mudanças radicais”.
O empenho de Shaull é oposto e ele busca na teologia de Paul Lehman, de Dietrich Bonhoeffer e de Karl Barth, a fundamentação para ter uma atitude mais aberta ao marxismo e para justificar a participação cristã na luta por mudanças radicais das sociedades e das próprias igrejas. A confiança renovada na ação divina na história humana lhe permite, inclusive, aceitar a secularização das sociedades contemporâneas e o projeto socialista com uma postura mais compreensiva do que a do pensamento católico progressista. Como ele comenta: “O catolicismo romano assume a importância, para o desenvolvimento da teologia, de uma integração entre teologia e filosofia (não necessariamente cristã). Na teologia protestante, a admissão da descontinuidade entre Revelação e Razão torna tal integração impossível. E também liberta a teologia de limitações racionais, o que a habilita a acompanhar a dinâmica do processo histórico.”
As novas percepções de Shaull se aprofundarão no Brasil, em contacto com o avanço das lutas populares e das reflexões marxistas no país. Influenciarão, por sua vez, a União Cristã dos Estudantes do Brasil, fundada em 1946, as Associações Cristãs de Acadêmicos, que se desenvolvem nos anos 1950, o Seminário Presbiteriano de Campinas, onde Shaull passa a lecionar, e por fim a Comissão Igreja e Sociedade, criada em 1955 por iniciativa dele e de Waldo César e transformada posteriormente no Setor de Responsabilidade Social da Igreja. Essas iniciativas renovadoras partem de presbiterianos e metodistas, mas logo alcançam outras denominações evangélicas e se cruzam com o sopro renovador que agita a Igreja Católica no mesmo período.
A autobiografia mostra que a influência de Shaull não se restringiu à modernização do estudo bíblico e teológico. Procurou também incentivar a aproximação prática entre estudantes e trabalhadores. Na Colômbia, ele já havia se preocupado em levar uma vida simples, mais próxima das condições de pobreza de camponeses e operários. No Brasil, influenciado pela experiência de padres operários iniciada na França, promove o deslocamento de seminaristas evangélicos para bairros pobres e para o trabalho em fábricas, em Campinas. Organiza, em seguida, uma experiência ainda mais arrojada na Vila Anastácio, em São Paulo, reunindo vários casais de evangélicos, que vivem em comunidade, trabalham em fábricas da região e participam dos sindicatos de suas categorias. Entre os participantes dessa experiência, como recorda Shaull, se encontrava Paulo Wright, que, anos depois, já como dirigente da AP, seria um dos defensores entusiasmados, ao lado de Jair Ferreira de Sá, da “política de integração na produção” de militantes da organização.
Todos esses esforços convergem, no começo dos anos 1960, para a participação de grupos evangélicos nas lutas pela transformação revolucionária da sociedade brasileira, ao lado de católicos e não-cristãos. A reação da maioria evangélica é, no entanto, desfavorável, as entidades se dividem e os setores progressistas acabam sendo excluídos de cargos e até mesmo de suas igrejas pelas hierarquias conservadoras. Um processo quase idêntico ocorria, paralelamente, na Igreja Católica.
O primeiro resultado dessas perseguições, como relata Shaull, foi a aproximação entre evangélicos e católicos progressistas. Em São Paulo, por exemplo, ele se aproxima dos dominicanos e colabora com o jornal “Brasil Urgente”, dirigido por frei Carlos Josafá. No Rio de Janeiro, Waldo César se une a intelectuais católicos e marxistas para criar a Editora Paz e Terra e a revista do mesmo nome. E militantes das organizações evangélicas ingressam no Partido Comunista Brasileiro ou na Ação Popular. Com o golpe militar de 1964, porém, a ação combinada das perseguições internas e da repressão política desarticula gradativamente as entidades cristãs mais atuantes.
Shaull e alguns dos quadros evangélicos que ele havia formado, tentam reagrupar-se em entidades internacionais, como a Federação Mundial dos Estudantes Cristãos ou o movimento Igreja e Sociedade na América Latina, para apoiar os cristãos que resistiam em seus países. No entanto, com o aprofundamento da repressão, a generalização das ditaduras militares e a adesão de muitos militantes cristãos à resistência armada, os conflitos no interior das igrejas cristãs se acirram e conduzem a nova diáspora dos quadros progressistas.
Shaull se fixa aos Estados Unidos, onde se dedica à renovação do ensino teológico em Princeton e apóia organizações estudantis, como o Movimento Cristão Universitário (UCM) e Estudantes por uma Sociedade Democrática (SDS). Mas também no país de Martin Luther King soa a hora do refluxo social e das perseguições no interior das igrejas cristãs. Desiludido, Shaull abandona a Igreja Presbiteriana e decide concentrar seus esforços, conforme anuncia publicamente, “no desenvolvimento de comunidades messiânicas à margem das religiões estabelecidas”.
Volta, então, a visitar vários países latino-americanos, entre os quais o Brasil, ministrando cursos, realizando pesquisas, dialogando com antigos e novos militantes cristãos. Nessas viagens, descobre a força ampliada das igrejas pentecostais e surpreende-se com seu envolvimento em atividades políticas. Não pode deixar de observar que os objetivos e os métodos dessas atividades se distanciam das mudanças revolucionárias que eram preconizadas, algumas décadas atrás. Ainda assim, convencido de que a tarefa de reconstrução da vida humana, individual ou social, é “essencialmente religiosa”, e atento ao enraizamento do pentecostalismo em comunidades pobres, parece depositar suas novas esperanças numa reorientação dessas igrejas. É um desfecho surpreendente e contraditório, pois nada assegura que essa tarefa possa ser mais bem sucedida do que a malograda tentativa anterior de transformar radicalmente as igrejas históricas e tradicionais e, através delas, as sociedades latino-americanas.
O foco das memórias de Shaull está em sua “jornada espiritual”. Ainda assim, ele registra informações preciosas sobre a evolução das igrejas evangélicas na América Latina, o aparecimento de grupos e entidades renovadoras nessas igrejas e sua participação nas lutas sociais e políticas do período. São indicações que os historiadores precisam retomar para produzir a obra sobre a trajetória dessas organizações e de seus militantes, que ainda está faltando.
O foco teológico de Shaull também pode explicar por que ele não se detém nas relações de solidariedade que manteve com organizações de esquerda, como a AP. Enquanto durou o regime militar, Shaull não conseguiu autorização para permanecer no Brasil, mas transitou pelo país em curtas passagens. E pelo menos em duas oportunidades, em 1966 e em 1967, encontrei-o pessoalmente em nome da direção nacional da AP. Recordo-me de que, numa dessas ocasiões, trocamos idéias sobre o debate que se desenvolvia na AP sobre o marxismo e, em particular, sobre Althusser. Com seu estilo contido e respeitoso, Shaull repisou suas conhecidas advertências contra os riscos de uma abordagem dogmática ou religiosa do marxismo e manifestou sua preocupação com a leitura estruturalista do marxismo promovida por Althusser – preocupação perfeitamente compreensível para quem tinha, como uma de suas idéias básicas, a da história como um processo de humanização progressiva do homem.
Se Shaull não tivesse sido impedido de continuar acompanhando os debates e as experiências práticas dos militantes evangélicos e católicos que conheceu e que o estimavam, talvez alcançasse uma compreensão mais generosa das razões que os levaram, impelidos mais pela prática do que por preconceitos doutrinários, a se afastarem de suas igrejas e a ultrapassarem sua fé religiosa para não abandonarem a luta libertadora com que haviam se comprometido. Poderia entender que isto não aconteceu por formação teológica deficiente, nem por atitudes precipitadas, mas por amadurecimento teórico e pelo reconhecimento sofrido de que as igrejas cristãs, como o próprio Shaull concluiu numa passagem marcante de suas memórias, são “parte integral da ordem dominante da cristandade ocidental” e, assim, estão orientadas “para a preservação do sistema estabelecido e não para sua transformação”.
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Duarte Pereira é jornalista.
Fonte: Margem esquerda, n. 3, abr. 2004. Site: http://www.artnet.com.br/gramsci/arquiv346.htm
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