Autor: Enock Nascimento
Gostaria de examinar por alguns instantes o estado atual da igreja evangélica no contexto da sociedade moderna (contemporânea) e o papel desempenhado por nós, pastores, nesse contexto. É necessário, porém, definir alguns parâmetros para que possamos acompanhar com clareza a evolução do pensamento dito “moderno.” De uma forma sem precedentes, a natureza da nova civilização que se forma é radicalmente diferente: ela tem alcance global e transcende as fronteiras das nações, das raças, religiões e culturas. Essa nova civilização surge quase sem se anunciar, a partir de uma série de invenções surpreendentes – os equipamentos transistorizados, a comunicação sem fio, os controles remotos, os computadores, os DVDs, as viagens interplanetárias… Isso gerou novas maneiras de se ver a vida, novos valores, novos horizontes. O homem moderno se apresenta como sábio num mundo novo sem horizontes e que reconhece somente um deus: a possibilidade.
Modernização e Secularização são dois termos que definem a atualidade. A modernização é o processo que requer que a sociedade seja organizada em torno de grandes centros urbanos, com o propósito de produção e de comércio, um processo dirigido pelo capitalismo e alimentado pelo desenvolvimento tecnológico. Essas duas forças reformularam nossa paisagem social e, por sua vez, reformularam nossas vidas interiores, à medida que fomos atraídos pelo “vortex” (redemoínho) criado por elas. Esse “vórtex” chamamos de modernidade. Embora esse contexto exerça uma influência de modelação na forma de pensar da sociedade, isso não implica contudo num determinismo do qual não se possa escapar. Em 1975, 39% da população mundial morava em centros urbanos. Para o ano 2.000 estão sendo projetados 75% da população vivendo em centros urbanos, sendo que no mundo ocidental industrializado essa percentagem chega a 95%. Isso implica num remodelamento drástico no ambiente social, bem diferente da situação há apenas cem anos atrás. São nesses centros sociais urbanos, construidos para satisfazer as demandas da máquina capitalista que surgem principalmente os valores da modernidade, a etiqueta moral, o estilo e a maneira de pensar, as relações pessoais…
Para a fé cristã, esta reorganização da sociedade separa a vida pública da vida privada, criando duas esferas onde operam valores diferentes. O que acontece é que o crente passa a ser anfíbio, ou seja, aprende a se locomover suavemente de um mundo para o outro, todos os dias. As cidades criam seus próprios ambientes psicológicos, colocando lado a lado culturas diversas, etnias e valores pessoais distintos. Uma espécie de pluralismo necessário, cujo efeito é reduzir valores de cada habitante para o menor denominador comum. O que existe é uma ética em massa.
O efeito da modernidade é diminuir a importância do que é privado em relação ao que é público, é cortar os laços com o lugar, com a comunidade, com a família. Os que se libertam desses laços se tornam mais vulneráveis para serem remodelados à imagem da modernidade, de uma maneira inédita até os dias de hoje. Os valores da modernidade apresentam uma tendência anti-religiosa que parecem oferecer a única maneira apropriada de se ver a vida em meio a essa pirâmide tecnológica que está sendo construida. A cultura atual é a única que está sendo criada sem uma proposta religiosa, diferente de todas as outras culturas que apareceram na história da humanidade. A vida pública não encontra justificativa ou direção numa ordem divina ou supernatural, ou depende de um pensamento religioso. Ela se auto-justifica.
Os valores cristãos fundamentais, como a existência de Deus, a ordem moral, a divindade de Jesus Cristo e a inspiração das Escrituras permanecem em voga, mas parecem estar relegados a um canto privado da consciência. Na praça pública esses valores deram lugar a um vazio que está empurrando a sociedade para um caos mental assustador. As cidades se tornaram infestadas de crimes e drogas e se tornaram miniaturas de laboratórios, onde podemos ver que a instabilidade inerente da nossa ordem social pode facilmente nos conduzir a uma desordem completa.
Já foi o tempo quando a sociedade e a religião eram conduzidas por uma só força. Agora cada uma delas está sendo puxada por forças diferentes que estão afetando significantemente a maneira pela qual vemos o mundo. A secularização é a causa e a pluralização o efeito. A secularização resulta dos valores da atualidade que conduzem à reestruturação do pensamento e da vida, para acomodar a ausência ou a irrelevância de Deus. Secularização é o processo que cria um ambiente público no qual esses valores (ausência e irrelevância de Deus) parecem naturais e inevitáveis. A fé cristã se encontra em crise nesta época contemporânea porque parece estranha no contexto secularizado, onde a descrença se mostra natural. A igreja evangélica parece que não se conscientizou do perigo queestá ao redor, pois tem-se observado o desaparecimento da vida das igrejas. Não é difícil de se notar em algumas igrejas a mudança do foco de Deus para o homem, como ponto central da fé; a erosão da convicção, o pragmatismo estridente e a impossibilidade de se pensar incisivamente a respeito da cultura. Muitos evangélicos contemporâneos estão formando alianças casuístas com a modernidade em detrimento de uma ortodoxia cristã.
Deve-se buscar uma espiritualidade onde a prática cristã não seja apenas uma técnica mas uma questão da verdade, que se recuse a dissociar prática do pensamento e pensamento da prática. Ou seja, viver os ensinamentos. Esse sentido de correção e de propriedade tem sido moldado pela modernidade, e como resultado a confissão de que a Bíblia é a palavra infalível de Deus, perdeu seu peso e em alguns seminários mais liberais desapareceu. A responsabilidade de se buscar ser crente no mundo contemporâneo tem sido transformada na procura de uma técnologia da prática de expansão, baseada principalmente na administração e na psicologia.
Na primeira epístola de João existem três testes que são desenvolvidos para discernir a presença de autenticidade de uma espiritualidade bíblica: acreditar numa doutrina certa, obediência a uma doutrina certa e dar expressão a essa doutrina numa vida de amor. Ser crente não é uma questão de doutrina que é passada de um para outro, numa repeticão uniforme e distorcida arbitrariamente. Ser crente é uma questão de vida cada vez mais revificada, mas que agora está se queimando por si só.
As influências do modernismo e do secularismo têm contaminado nosso meio e, como consequência, no ministério vê-se que a mercadologia tem muitas vezes tido precedência sobre as matérias internas e a espiritualidade pessoal de cada um. Hoje em dia, as funções de ministério são quase que dominadas pelas funções adminsitrativas.
Não podemos nos esquecer de que lidamos com a mentalidade moderna entre nós evangélicos, onde a Bíblia não é mais uma ilustração memorável daquilo que ouvimos dentro de nós mesmos. Na verdade, a Bíblia tem sido uma descoberta memorável daquilo que nós não temos e não ouvimos dentro de nós mesmos. A mentalidade cristã procurou e achou uma maneira de entender a vida à luz da revelação; a mentalidade moderna rejeita essa luz e busca iluminação na experiência pessoal.
Hoje se busca no reavivamento algo que traga mais tempero, entusiasmo e eficiência ao estado da igreja, algo que pode ser engendrado pela igreja com a técnica correta. Porém o que acontece é simplesmente a aplicação de uma solução da modernidade para um problema causado pela própria modernidade – um beco sem saída. O problema da igreja não será resolvido por uma auto-regeneração, por mais refinada que seja a linguagem religiosa com que se revista. O que a igreja precisa não é reavivamento, mas reforma.
O que se vê atualmente é uma necessidade forte de se adequar, de se estar de acordo com a cultura reinante, e isso é percebido nas adaptações à mordenidade. Vemos então o surgimento de profissionais da fé, tanto nos seminários quanto dentro das igrejas. Tanto o libera-lismo desencadeado há algumas décadas atrás, quanto o evangelismo atual têm utilizado a cultura, embora de maneiras diferentes. O liberalismo anterior foi um processo deliberado de ajuste do conteúdo da fé para colocá-la em conformidade com os dógmas da cultura. O evangelismo contemporâneo, que vê a cultura neutra em seus valores, está no mesmo processo de adaptar a fé ao dogma cultural, de maneira quase incons-ciente.
Podemos entender a realidade de duas maneiras: ou temos uma visão do ser humano como apenas um animal racional ou um ser criado à imagem de Deus. Neste caso, reconheceremos em nós a capacidade de sermos preenchidos por algo que seja divino, verdadeiro e bom. A linguagem da psicologia, que é moderna nos seus interesses e perspectivas, muitas vezes nos impõe uma idéia contrária à imagem de Deus, uma visão de pecado e de Deus que é substancialmente diferente da idéia encontrada na Bíblia.
Apesar disso, essa se tornou a linguagem do mundo moderno, inclusive do grupo dos evangélicos. Essa maneira nova fere o coração da fé cristã porque contraria o que dá autoridade à fé cristã, isto é, a palavra de Deus. A fé cristã somente poderá ser cristã se for constituida na palavra de Deus e o que se prega deverá ser o que se vive. A Bíblia é a norma que Deus nos dá para reconstituir uma vida de pecado, pois mostra ao pecador que o santo propósito de Deus é ser contra muitas coisas que são tidas como normas no mundo.
A experiência moderna não nos dá acesso a Deus. Somente Ele pode nos dar esse acesso, que se origina na sua graça, objetivamente fundamentada em Jesus Cristo, aberta a qualquer pessoa do mundo moderno, não através de suas próprias experiências mas através do aceitar a verdade de Deus revelada. Desta forma estaremos cumprindo nossa missão.
A biografia de Jesus se torna incompreensível a menos que seja lida como uma jornada em direção à cruz. Isso nos ajuda a entender a profundidade do amor de Deus, ao vir de sua infinita glória na eternidade para nos alcançar na nossa insignificância. O caráter eterno da vontade do Pai é importante porque aponta para o fato do dilema da vida: a necessidade de ser visto, tendo como pano de fundo a eternidade. Ao confrontar a vastidão do propósito de Deus recebemos uma medida pela qual poderemos julgar o propósito fútil que a vida moderna deposita na sua banalidade, ao ter perdido seu direcionamento moral.
Os problemas da modernidade estão diretamente ligados a moralidade. Jesus coloca tudo em harmonia com a santidade de Deus e é a santidade de Deus que torna a cruz de Cristo compreensível, pois ela é a luz que expõe as trevas da modernidade. A santidade de Deus é fundamental ao que Ele é e ao que Ele faz. Mas a visão moderna redireciona o foco das atenções, da transcendência de Deus para a imanência de Deus, interpretando a imanência de Deus como convívio amigável com a modernidade.
A perda da visão tradicional de Deus como santo se manifesta em todos os lugares, inclusive nas igrejas, e pecado e graça se tornaram termos vazios de significado. Que profundidade ou significado podem ter esses termos, exceto em relação à santidade de Deus? Divorciado da santidade de Deus, pecado é meramente um compormento auto-destruidor, ou uma quebra de etiqueta. Divorciada da santidade de Deus, graça é simplesmente uma retórica vazia, uma vestimenta piedosa com a qual os pecadores podem trabalhar sua própira salvação. Divorciado da santidade de Deus, o evangelho se torna semelhante a qualquer doutrina de auto-ajuda. Divorciada da santidade de Deus, a moralidade pública se reduz a pouco mais do que troca de interesses numa competição privada. Divorciados da santidade de Deus, os cultos nas igrejas se tornam apenas entretenimento.
A santidade de Deus é a pedra fundamental da fé cristã, pois é o fundamento da realidade, e o pecado é o desafio à santidade de Deus. A cruz é o trabalho exterior e a vitória da santidade de Deus. Fé é o reconhecimento da Santidade de Deus. O reconhecimento que Deus é santo, a chave para o reconhecimento da vida, é conhecer Cristo como Ele verdadeiramente é. É conhecer a razão porque Ele veio e saber como a vida terminará. Este Deus majestoso e santo em seu ser, este Deus que ama sem fronteiras porque sua santidade não conhece limites, este Deus está desaparecedo do mundo evangélico moderno. Ele foi substituido em muitos lugares por um deus que fecha os olhos, cujos propósitos morais se tornaram conselhos antiquados, um deus que deixa pequenos erros passarem desapercebidos ou que negocia da maneira que nos convém, um deus cuja igreja é um shopping-center, onde os fiéis chegam cheios de moedas da necessidade para comprar.
Busca-se felicidade em vez de retidão, busca-se realizar-se ao invés de encher-se, interessa-se mais na satisfação no que no disprazer com tudo que é errado. É por isso que precisamos reformar, ao invés de reavivar. Os hábitos do mundo moderno sorrateiramente presentes no mundo evangélico precisam ser destruidos ao invés de fortalecidos. Precisam ser arrancados pela raíz, ao invés de serem revestidos por um “entusiasmo religioso.” A teologia está morrendo porque a igreja está perdendo sua capacidade para isso.
O vazio da fé evangélica sem teologia espelha o vazio da vida moderna. Ambas procuraram um mundo no qual Deus não tem lugar, no qual a realidade tem sido escrita de novo, no qual Cristo se tornou redundante, sua palavra irrelevante e a igreja deve agora encontrar novas razões para sua existência.
A menos que a igreja evangélica recupere o conhecimento do que significa viver diante um Deus que é santo, a menos que o culto possa ser reaprendido em humildade, maravilha, amor e louvor, a menos que a igreja possa encontrar outra vez um propósito moral no mundo, que ressoe a santidade de Deus em completa identificação com ela, a menos que a igreja evangélica faça todas essas coisas a teologia não terá lugar na vida.
Mas o reverso também é verdadeiro. Se a igreja puder encontrar um lugar para a teologia, tirando o foco de sobre si mesma e o colocar na centralidade de Deus, se puder se firmar sobre a suficiência de Deus, se puder recuperar sua fibra moral, então terá alguma coisa a dizer ao mundo que agora está afundando na modernidade.
Aqui encontramos um ironia: aqueles que são mais relevantes para o mundo moderno, são mais irrelevantes para o propósito moral de Deus. Mas aqueles que são irrelevantes para o mundo porque são relevantes para Deus, esses na verdade têm muito o que dizer para o mundo. Na verdade são os únicos que têm alguma coisa a dizer. E foi isso que Jesus declarou, que a igreja reconheceu nos seus melhores momentos e nós, pela graça de Deus, podemos ainda descobrir. Que possamos ter consciência disso.
Discurso do vice-consul do Brasil nos Estados Unidos e pastor Enock Nascimento durante o jantar de pastores da Flórida, por ocasião do evento “Celebrando Deus nos 500 anos do Brasil”.
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