Vocação e missão proféticas do povo de Deus

Autor: CLAI




I. INTRODUÇÃO GERAL
Ser povo de Deus não é privilégio; é compromisso sério que requer discernimento constante. Esse discernimento provoca posicionamento decisivo e atitude profética contra as manipulações do poder e da religião. Como Amós, o povo de Deus não teme provocar conflitos, nem foge deles, mesmo que, por causa disso, seja acusado de conspirador (I leitura). Isso porque a missão do povo de Deus em nada difere da missão de Jesus, que provocou rupturas, pondo-se a serviço dos que não tinham liberdade (endemoninhados) nem vida (enfermos), restabelecendo-os e integrando-os (evangelho). No plano do Pai, fomos feitos filhos seus e herdeiros do Reino, graças à ação do Cristo em nosso favor. Os filhos e herdeiros têm a tarefa de serem continuadores do projeto divino (II leitura).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura: (Am 7,12-15): Vocação e missão do profeta
Amós, o primeiro “profeta escritor”, exerceu sua atividade profética em torno do ano 760 a.C., no tempo em que Jeroboão II reinava em Israel (783-743 a.C.). Esse período se caracteriza pelo expansionismo das conquistas do rei e pelo crescente abismo que divide a sociedade entre ricos e pobres: ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres.
Depois da morte de Salomão (931 a.C.), o reino por ele deixado dividiu-se em dois: Israel ao norte e Judá ao sul. No norte, Jeroboão I assumiu o poder. Querendo evitar que o povo continuasse indo a Jerusalém para as festas anuais, cria novo calendário religioso e estabelece dois santuários como locais de peregrinação para as tribos do norte: Dã e Betel. Assim evitou que, indo a Jerusalém, o povo voltasse de lá com a “cabeça feita” contra ele. Ao mesmo tempo, evitava evasão de dinheiro destinado ao culto em Jerusalém. Nesses santuários colocou dois bezerros de ouro (1Rs 12,26-33). Betel passou, assim, a ser “santuário do rei”, com sacerdotes e profetas servindo-lhe de suporte ideológico, manipulando a religião e o culto a gosto dos interesses do Estado.
É essa situação complexa que Amós encontra. Ele era do sul, mas fora mandado profetizar no norte. O texto de hoje o situa em Betel, “santuário do rei”, com sacerdotes e profetas financiados pela corte. Em troca, ofereciam ao rei uma “teologia e culto de sustentação” do aparato opressor.
Amós se apresenta em Betel decretando a morte do rei Jeroboão II. Amasias, o sacerdote, ao saber disso, acusa Amós de conspiração contra o Estado (7,9-11). Temos aí uma das características do profeta: discerne quando o poder é legítimo e quando não o é, e mantém distância da “religião oficial” que encobre os desmandos dos poderosos. Religião e culto, enquanto comunhão com o Deus libertador, só têm sentido à medida que servem à criação da sociedade justa, igualitária e fraterna.
Amós é expulso de Betel: “Vidente, vá embora e procure refúgio na Judéia; ganhe lá seu pão e exerça lá a sua função de profeta” (v. 12). Amasias, ao expulsar o profeta, confunde-o com um membro das corporações proféticas mantidas pelo Estado (“ganhe lá seu pão”).
A resposta de Amós resume a vocação e missão proféticas: ele não era profeta, nem discípulo de profeta, isto é, não pertencia a uma corporação (não se trata de profetismo “hereditário”). Tinha uma profissão da qual vivia: era vaqueiro e colhedor de figos selvagens (v. 14). Sua vocação e missão têm raízes profundas: não nasceram do interesse ganancioso, nem visam lucros (cf., no evangelho, como Jesus envia os discípulos). Pelo contrário, sua vocação nasce de Deus, que o tirou (esse verbo, em hebraico, denota uma espécie de arrebatamento irresistível. O Lecionário diminuiu a força, traduzindo “chamou-me”) de junto do rebanho (v. 14a). Sua missão é dirigida ao povo de Israel e em sua defesa, e não em defesa dos interesses dos poderosos: “Vá e fale como profeta a meu povo Israel” (v. 14b). A missão do profeta provoca mudanças e rupturas radicais na sociedade: Jeroboão, com sua política apoiada pelos sacerdotes e profetas da corte, se apossara do povo. Deus garante que o povo lhe pertence (“meu povo”) e ninguém poderá, ainda que em nome da própria religião, manipulá-lo e oprimi-lo. Essa tomada de consciência fará com que Amós não tema os poderosos, ainda que se auto-afirmem “de corpo inteiro” pessoas “religiosas”, mas cuja prática demonstra estarem esmagando a herança de Deus!

2.Evangelho (Mc 6,7-13): A missão dos discípulos de Jesus
O Evangelho de Marcos foi, provavelmente, o primeiro catecismo de iniciação cristã. Em contato com esse evangelho, as pessoas vão descobrindo quem é Jesus e o que é ser cristão.
Depois de ter chamado os discípulos (cf. 1,16-20; 2,13-14), e depois de ter instituído os doze para que ficassem com ele, para enviá-los a pregar com autoridade de expulsar demônios (cf. 3,13-19), Jesus os envia agora oficialmente à missão.
O texto de hoje se situa logo após a rejeição de Jesus em sua terra, Nazaré (cf. 6,1-6; cf. evangelho do domingo passado). Isso faz parte do esquema de Marcos: o discípulo vai aprendendo quem é Jesus e quem é o cristão a partir dos conflitos que Jesus e a comunidade cristã encontram ao longo da caminhada. Esse mesmo esquema já tinha sido empregado no final do capítulo 3: depois de rejeitado pelos familiares, Jesus inicia nova etapa (cap. 4).

a. Começar tudo de novo (v. 7)
O v. 7 marca novo início (o Evangelho de Marcos é sempre um “começar de novo”, cf. 1,1; 4,1; 6,7; 8,31). Rejeitado, Jesus chama os doze e começa a enviá-los dois a dois, dando-lhes poder sobre os espíritos maus. Temos aqui a junção da vocação com a missão dos discípulos. Sua missão é a mesma de Jesus: desativar e destruir os mecanismos que geram morte, dependência e opressão, mostrando assim a novidade do Reino. O primeiro milagre de Jesus, no Evangelho de Marcos, é a expulsão de um espírito impuro (cf. 1,21-28). Os que presenciaram o fato declaram estar diante de novo ensinamento feito com poder. Agora, esse poder está nas mãos e sob a responsabilidade dos discípulos de Jesus, que irão dar continuidade à missão de Jesus. Para tanto, precisam estar unidos (dois a dois) no mesmo projeto de libertação.

b. Exigências da missão (vv. 8-10)
Ser cristão é estar a caminho, assumindo algumas condições básicas. Elas não são o conteúdo da missão, mas formas de realizá-la com sucesso. As exigências podem ser sintetizadas assim: 1. Estar preparados para longa e difícil jornada (levar um cajado e ter sandálias aos pés); 2. Desimpedir-se de todo supérfluo. A sobriedade caracteriza o cristão a caminho: nem pão (sobriedade em relação aos alimentos, dependência), nem sacola para guardar as possíveis doações (sacola de mendigos), nem dinheiro, nem duas túnicas (o que poderia ser ostentação de riqueza e luxo, vv. 8-9); 3. Contentar-se com a hospitalidade oferecida (a estada prolongada era devida, provavelmente, ao tempo necessário para a fundação de uma comunidade. O evangelho, ao ser escrito, sacramentava uma prática já existente entre os cristãos). Talvez seja possível ver aqui a superação, por parte dos discípulos, das tentações de Jesus, não mencionadas por Marcos (posse, poder, prestígio), mas detalhadas por Mt 4,1-11 e Lc 4,1-13.

c. O evangelho provoca rupturas (v. 11)
Como aconteceu com Jesus, também os discípulos e o Evangelho encontrarão resistências: má acolhida em relação aos discípulos e indiferença diante do anúncio (v. 11). A ordem que Jesus lhes dá é de sacudir a poeira dos pés ao sair desse lugar. Era um gesto simbólico dos israelitas que, ao ingressar de novo no próprio país, depois de terem estado em terra pagã, não queriam ter nada em comum com o modo de vida dos pagãos. Libertar-se da poeira que se grudou aos pés enquanto estavam em território pagão significava ruptura total com aquele sistema de vida. Fazendo isso, os discípulos transferem toda responsabilidade pela rejeição da Palavra àqueles que os acolheram mal e rejeitaram o anúncio do evangelho.

d. Jesus e os cristãos têm idêntica missão (vv. 12-13)
Os doze partem e começam a pregar. O conteúdo da pregação é idêntico ao de Jesus (compare com 1,15: “Convertam-se e creiam no evangelho”), acompanhado pelas mesmas ações realizadas por Jesus: expulsavam muitos demônios (compare com 1,21-28.32-34.39) e curavam numerosos doentes (compare com 1,30-31.40-45; 2,3-12).
A missão dos discípulos (e dos cristãos) em nada difere da de Jesus: todos anunciam a mudança radical no modo de viver, sintetizada na palavra conversão; todos têm a comum tarefa e poder de libertar as pessoas de tudo o que é opressão e marginalização, simbolizadas pela expulsão de demônios; todos têm como objetivo restaurar as pessoas, a fim de que tenham vida (curar as enfermidades).

3. II leitura (Ef 1,3-14): Cristo é a síntese do amor de Deus por nós
O hino de Ef 1,3-14 é uma das grandes páginas do Novo Testamento. Dentro da carta, funciona como uma espécie de síntese ou condensação das idéias principais. Sendo um texto denso de significado teológico, não é possível aqui oferecer senão algumas pistas de orientação.
O hino é um louvor a Deus pelo que realizou nas pessoas por meio do Cristo. Uma breve visão panorâmica das ações de Deus nos permite entrar no cerne do texto. As ações que Deus realiza são estas: ele nos abençoou (v. 3), nos escolheu (v. 4), havia-nos predestinado (v. 5), derramou a graça (v. 6), fez transbordar sua graça em nós (v. 8), deu-nos a conhecer o mistério de sua vontade (v. 9) que realizou, em Cristo, na plenitude dos tempos (v. 10). O texto bendiz (reconhece) que Deus é ação misericordiosa na história, beneficiando não a si próprio, mas às pessoas do mundo inteiro, quer judeus, quer pagãos.
As pessoas, por sua vez, são beneficiárias da graça de Deus. Basta olhar o que acontece com elas, graças ao projeto de Deus e à ação do Cristo em nosso favor: nós nos tornamos herdeiros (v. 11), fomos predestinados (v. 11), e nos tornamos o louvor de sua glória, nós que esperávamos em Cristo (v. 12). Isso aconteceu não somente aos que pertenciam ao povo da aliança antiga, mas a todos os que ouviram a palavra da verdade, creram no evangelho e foram marcados com o selo do Espírito Santo (v. 13).
O hino, pois, louva a Deus pela nova aliança realizada em Cristo, superando as barreiras de raça que condicionavam a antiga aliança. De fato, o texto pode ser entendido dentro do contexto da nova aliança que tem Cristo como cabeça de tudo (v. 10). Nesta nova situação, temos os benefícios daí decorrentes: o perdão dos pecados (v. 7), a filiação (v. 5) e a eleição (v. 4).
Tudo isso aconteceu a partir da pessoa do Cristo. É por ele e por causa dele que o Pai age em nosso favor, realizando seu projeto de vida para todos, projeto que se prolonga, mediante a ação do Espírito, na comunidade dos que crêem.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO
• A I leitura e o evangelho nos falam da vocação e missão proféticas do povo de Deus. Como ser profeta hoje, em nosso país? Que tipo de religião é a nossa? Como continuar a missão de Jesus, “expulsando demônios” e curando doentes? Nossas pastorais são libertadoras, ou conservam as coisas como estão? Como enfrentar os conflitos?
• A II leitura nos convida a olhar para as ações de Deus a nosso favor, realizadas em Cristo Jesus. O que significa pertencer à nova aliança, ser filhos de Deus, povo eleito? (Observação: O hino de Efésios se presta muito bem para um “prefácio espontâneo” dentro da oração eucarística. Ou, quem sabe, como ação de graças após a comunhão: alguém proclama o hino e a assembléia intervém com o refrão: “Bendito seja Deus”.)

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