Uma síntese de esperança escatológica em Matrix

Autor: Jonathan Menezes




O filme Matrix foi produzido num momento no qual predominava a mística do fim do segundo milênio, com a iminência da tão preconizada chegada do ano 2000, a respeito do qual afloravam, já há algum tempo, uma gama de especulações não só quanto a parusia, mas também em termos de predições envolvendo o boom da tecnologia global (como o “Bug do Milênio”, por exemplo), as quais evocavam no imaginário popular um certo terrorismo sensacionalista de que aquela se tratava data do “fim do mundo”, ou de que seria o princípio de uma nova era – a tecnocracia – com um suposto clímax decorrente dos avanços tecnológicos.

Assim, a humanidade do fim do século XX, ensoberbecida com toda sua gênese e inteligência, não se dá conta de que as máquinas e a tecnologia multiplicam sua atuação e proeminência sobre sua inventora, ocupando espaços antes ocupados por homens e mulheres, os quais, desde então, passam a verem-se cada vez mais subservientes e atuando em função e na dependência das máquinas. Este é o contexto retratado pelo filme, e a grande ironia exposta  é exatamente esta: o ser humano tenta dominar o mundo pela técnica, mas, no fim das contas, se vê subjugado junto com o mundo à técnica. Desta feita, a técnica, que antes era um “meio”, agora passa ser um “fim”.

O futuro exteriorizado no filme é sombrio, sem beleza, sem cor, onde as máquinas é quem dominam, invertendo os papéis com os seres humanos, que, por sua vez, ainda mantêm viva a chama da esperança de um resgate de sua autonomia e liberdade. A “globalização” (não-global), e, por conseguinte, a objetividade a efemeridade e a superficialidade – marcas de nosso tempo – contribuem para que as pessoas se tornem, gradativamente, mais dependentes e atreladas a um sistema controlador e manipulador, cuja agenda impõe-se propondo uma falsa liberdade, não permitindo, assim, que as pessoas enxerguem “a verdade”, mas que acreditem apenas naquilo que suas consciências cauterizadas lhes permite acreditar, suportando-se naquilo que lhes pode dar segurança e estabilidade.

“A ignorância é maravilhosa”. Esta é uma das frases de um dos personagens do filme, que certamente teria sua aplicabilidade em nossos dias. A “verdade” liberta do jugo da inocência e da escravidão, mas, ao mesmo tempo, abre-nos os olhos para a “realidade” que há por trás das “imagens-verdade” que nos são transmitidas pelo sistema, a qual nem sempre é muito aprazível de se encarar. Entretanto, a mediocridade das pessoas é tanta que, desde que lhes sejam mantidas as suas devidas prerrogativas, estas preferem se manter escravas e cegas de um sistema que as protege e sustém (a classe média brasileira que o diga!). “E conhecereis a verdade e a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32). Biblicamente falando, só conheceremos e aceitaremos a verdade se/ quando “nascemos de novo”. Em Matrix a proposta é semelhante: conhecer de fato como é a “verdade real”, implica em ter que praticamente “nascer de novo”, desta vez no “mundo real”. Há somente duas escolhas;  a pílula azul e a liberdade, ou a pílula vermelha e a permanência no cativeiro.

O ser humano para quem não importa o raciocínio, o acrítico, que não se preocupa em separar o que é justo e verdadeiro, do que  é cruel e falso este é o ser humano do sistema. Neste sentido é que o ser humano está para o sistema assim como o sistema existe para o se humano, em uma relação de mútua dependência. A crítica do filme, pode resumir-se perfeitamente nas palavras do historiador Adauto Novaes[1]: “O Sistema apresenta-se, portanto, como uma síntese acabada da realização da história mediante a crença absoluta na técnica”.

“Não conheço o futuro. Não vim dizer como isso vai acabar. Eu vim dizer como vai começar”. Esta é uma das frases que finalizam o primeiro filme da trilogia Matrix, e expressa bem a similaridade entre o papel do “escolhido”, Neo, e o escolhido de Deus, Jesus Cristo. O Cristo escatológico, Alfa e Ômega, é quem propicia a inauguração da “nova criação”, que a partir daí caminha em um continuum de realização histórica, culminando, por fim, em um “novo céu e uma nova terra”. Desta feita, o conceito de “escatologia realizada”, de Charles H. Dodd, pode ser substituído pelo de “escatologia inaugurada”, visto que o advento Cristo (sua vida, morte de cruz, ressurreição e asce! nsão ao Pai), constitui o princípio, mas ainda não o “fim” de todas as “novas” coisas neste tempo da Graça.

Desta feita, a proposta de “esperança” presente no filme, em suma, concentra-se na figura do escolhido, Neo, o libertador do cosmos em relação ao sistema (matrix), a esperança de Zion (Sião). Esta “esperança da glória” servia como motor propulsor para Morpheus e companhia, que subsistiam na luta contra os poderes do sistema que regia o mundo, buscando aglutinar o maior número de pessoas que, de uma forma ou de outra, ainda que no subconsciente, demonstravam o mesmo sentimento de inadequação frente ao sistema que os escravizava, como se “não fossem deste mundo”. A força do amor, da esperança e da liberdade, não foi extinta não obstante às formas de repressão e perseguição que seus adeptos foram submetidos.

“Há uma grande diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”. Parece-me que esta é uma das afirmações chave, presente no filme, para se entender a perspectiva de esperança escatológica do mesmo. É possível conhecer o futuro? Se de fato fosse possível, não seria possível também controlá-lo? De acordo com a proposta do filme, nem uma coisa nem outra. E é neste sentido que o papel da igreja não é o de proclamar a palavra pautada na idéia de “iminência” de um fim trágico para o cosmos, mas sim trilhar o caminho balizada na esperança em um futuro escatológico “já, mas ainda não”, plenamente presente na vida dos crentes.

Se Deus simplesmente nos desse conhecer o futuro, certamente perderíamos o foco de um reino em construção, e nos acomodaríamos quanto a nossa missão. O papel da igreja deve ser o de percorrer o itinerário da fé como co-participante com Deus na realização histórica do reino, tendo em mente as palavras deixadas por Jesus: “não vos compete conhecer tempos ou épocas(…)mas recebereis poder ao descer sobre vós o Espírito Santo, e SEREIS MINHAS TESTEMUNHAS…” (Atos 1:7,8).

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1  NOVAIS, Adauto. Sobre Tempo e História. In: NOVAIS, Adauto (Org.). Tempo e História. SãoPaulo: Cia das Letras, 1992, p.15.


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