Um ministério chamado maternidade

Autor: Isabelle Ludovico por Omar de Souza

A terapeuta familiar Isabelle Ludovico fala da figura de Maria e da missão de se criar filhos no mundo atual Frederico Fiori Barocci- 1570

Mãe, só tem uma, como se costuma dizer. E nem precisa mais. Sua figura é tão marcante na família que o próprio Senhor se fez carne através de uma. Em qualquer cultura – e a cristã não é exceção -, a maternidade é encarada quase como um ministério, um sacerdócio. Por isso mesmo, também é uma missão complexa, e mesmo a mais consagrada das mulheres precisa do auxílio da Palavra de Deus para cumpri-la bem. Muitas delas encontram uma boa referência na pessoa da mãe do Salvador: ainda que o protestantismo e o catolicismo mantenham algumas divergências sobre o papel de Maria, todas as vertentes do cristianismo concordam que ela foi um exemplo de cuidado, dedicação, responsabilidade e, naturalmente, de amor.

Para Isabelle Ludovico da Silva, 50 anos, de Curitiba – uma psicóloga especialista em terapia familiar que, além da clínica, também trabalha em aconselhamento e restauração de famílias na igreja -, os princípios cristãos para a maternidade devem ser analisados de forma contextual, mas suas características básicas, como a capacidade de se doar em favor dos filhos, ultrapassam a dimensão do tempo. Francesa de nascimento, economista por formação, casada há 24 anos com o pastor Osmar Ludovico da Silva, Isabelle faz supervisão de projetos sociais, inclusive de resgate das famílias biológicas. Representante no Brasil da Comissão sobre Assuntos da Mulher da Fraternidade Evangélica Mundial, ela concedeu esta entrevista a Lar Cristão.

A figura da mãe é sempre muito forte e presente na Bíblia. Como ela pode ser sintetizada?

A figura da mãe pode ser sintetizada pelo exemplo de Ana em I Samuel: uma mulher estéril que se torna fértil a partir de um encontro terapêutico com Deus e, por isto, entrega este filho para servir ao Senhor. É o exemplo de uma mulher que experimenta a superação de suas limitações por ter “derramado a sua alma perante o Senhor”. Uma mulher que ama este filho, mas não de forma possessiva e egoísta. Ela se dispõe a doá-lo para Deus para que ele possa cumprir a vocação para a qual Deus o chamou. Ela continua expressando o seu amor, manifesto através da túnica que tecia para ele ano após ano, e continua se doando sem cobrança nem controle. Assim, nós, mães, somos chamadas a abrir mão de nossas expectativas pessoais para que nossos filhos se sintam livres para desenvolver o potencial que Deus lhes deu, em vez de atender os nossos desejos. O amor materno é um aprendizado para o amor ágape, o amor de Deus que escolhe amar incondicionalmente.

Culturalmente falando, como se olhava para a questão da maternidade no tempo do Antigo Testamento?

A maternidade era o papel essencial da mulher no Antigo Testamento. Com a queda, Adão deu um novo nome à mulher, de varoa (parceira do homem) para Eva, que significa “mãe”. Uma luta pelo poder instalou-se entre o homem e a mulher. A missão de governar juntos a terra foi assumida exclusivamente pelo homem, enquanto a mulher era confinada ao papel de mãe e dona de casa. O homem tomou para si a prerrogativa de construir o mundo e deixou à mulher a tarefa de administrar a vida privada. Esta dicotomia foi empobrecedora para todos: o homem desenvolveu a tecnologia, gerando um mundo onde se multiplicam as conquistas materiais, mas onde as relações humanas são cada vez mais truncadas. Neurose, depressão e stress fazem parte do cotidiano, sem falar das guerras e injustiças sociais. A mulher tornou-se uma supermãe possessiva e manipuladora. Os filhos foram privados da contribuição do pai na sua educação e formação.

Podemos dizer que a cultura pré-cristã favoreceu uma visão da mulher restrita à geração de filhos?

A cultura pré-cristã não soube compreender os muitos sinais dados por Deus para mostrar que a missão da mulher não era restrita à geração de filhos. Um destes sinais é o fato que as esposas dos patriarcas, Sara, Rebeca e Rachel, foram todas inicialmente estéreis. Elas aprenderam, assim, que sua vocação ia muito além da maternidade biológica, através da escuta e da dependência de Deus.

“No imaginário popular, Maria é vista como uma figura apagada, que sofre calada. Na realidade, porém, foi uma mulher determinada, que ajudou Jesus na sua missão pública e o acompanhou até a cruz

Elas nos ensinam que o chamado da mulher é ser parceira do homem, auxiliadora, mesma palavra usada para se referir ao auxílio de Deus, uma contribuição essencial e insubstituível. Uma outra referência importante é a mulher virtuosa de Provérbios 31, um exemplo de mulher líder, autônoma, administradora, empreendedora, muito longe do estereótipo da Amélia.

O que mudou no Novo Testamento? Será que, com o nascimento de Jesus, gerado de forma divina, mas no ventre de uma mulher de carne e osso, a figura da mãe mudou de dimensão?

O nascimento de Jesus certamente contribuiu para valorizar a figura da mãe. Houve até uma tentativa de exaltação de Maria, que imediatamente foi redirecionada por Jesus: “Bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam” (Lucas 11.27-28). É interessante notar que, no imaginário popular, Maria é vista como uma figura apagada, passiva, quieta, que sofre calada. Na realidade, ela foi uma mulher valente, corajosa, determinada, que ajudou Jesus a dar o primeiro passo na sua missão pública em Canaã e o acompanhou até a cruz. Seu cântico revela uma mulher bem informada, espiritualmente madura, consciente da revolução de valores que a vinda do Messias iria provocar. Com Maria, somos desafiadas novamente a ser facilitadoras da obra que Deus quer realizar em nossos filhos e através deles. Certamente, a intimidade que Jesus desenvolveu com Deus foi grandemente influenciada pelo exemplo de sua mãe, que pronunciou uma das respostas mais sublimes a Deus: “Que se cumpra em mim conforme a tua palavra”, isto é, ofereço-me inteira, até o que tenho de mais íntimo: o meu útero.

Quais os requisitos encontrados por Deus em Maria para fazê-la instrumento de sua vontade?

Além dos requisitos citados acima, Maria era humilde e desprendida. Ela abriu mão de seus projetos pessoais para obedecer ao chamado de Deus. Ela tinha fé e se dispôs a sofrer por amor a Deus. Vejo nisto uma atitude muito diferente do Evangelho pregado hoje, onde as pessoas aproximam-se de Deus para colocá-lo a seu serviço, e não para servi-lo. Queremos ser paparicados, receber bênçãos, inclusive materiais, sem atentar para o fato de que, até para Deus, amar significou estar disposto a sofrer. Precisamos resgatar o sentido do senhorio de Deus, a quem somos chamados a servir, não como escravos, mas como filhos apaixonados.

O que a mulher cristã deve fazer para também perseguir estes requisitos nos dias de hoje, quando alguns valores e a cultura mudaram tanto?

A sociedade enfatiza muito o individualismo e o narcisismo, tornando as pessoas muito egoístas. A mulher cristã precisa descobrir as implicações de ser cidadã do Reino de Deus, vivendo e proclamando os valores enunciados por Jesus no Sermão do Monte, que invertem as prioridades do mundo. Ela precisa dar sua contribuição na construção de um mundo mais justo e solidário. Isto significa ampliar o seu horizonte além da família e da igreja para assumir uma responsabilidade política e social, passando do assistencialismo à transformação de estruturas corrompidas.

Em sua opinião, o que marcou o relacionamento entre Maria, como mãe, e Jesus?

Vejo este relacionamento como imbuído de muito carinho e respeito mútuo. Um episódio que me comove é o desencontro entre eles, relatado em Lucas 2.41-52. Maria não deixou de se queixar e expressar sua aflição, mas com sabedoria. Ela não o arrasou, com frases do tipo: “Você é um irresponsável, não tem coração!” Ela apontou um comportamento inadequado, específico, e procurou resolver esta pendência de forma bem objetiva e, ao mesmo tempo, afetiva. O vínculo não foi afetado, e ela foi meditando na resposta do menino até entender as conseqüências das mudanças que estavam acontecendo. É freqüentemente assim com um filho adolescente: ele nos choca com atitudes e respostas inesperadas. Mas precisamos estar dispostos a aprender com ele, em vez de apenas impor nossa perspectiva. Os filhos ajudam-nos a atualizar e rever nossas prioridades.

Quais são as principais lições sobre maternidade que podem ser aprendidas a partir da vida de Maria?

Respeitar os filhos e ser facilitadora da obra que Deus esta realizando neles. Precisamos lembrar que os filhos não nos pertencem. Eles nos foram confiados para encaminhá-los para a vida. Como flechas na mão do arqueiro, cabe a nós dar-lhes direção e impulso para desabrocharem e ocupar o seu lugar único no mundo. Lembro uma palavra de sabedoria proferida pela mãe de Martin Luther King quando lhe perguntaram que educação ela deu ao filho para ele se tornar uma pessoa tão significativa. Ela respondeu, com humildade: “Procurei dar-lhe raízes e asas!” É isto: carinho, sentimento de pertencer e autonomia, liberdade para voar longe, sem culpa. Meus filhos têm 20 e 22 anos, e sinto na prática como é difícil cortar o cordão emocional.

“No imaginário popular, Maria é vista como uma figura apagada, que sofre calada. Na realidade, porém, foi uma mulher determinada, que ajudou Jesus na sua missão pública e o acompanhou até a cruz”

O que é ser mãe cristã, no mundo de hoje?

Ser mãe cristã no mundo de hoje é, em primeiro lugar, fazer uma escolha. A medicina nos dá a oportunidade de determinar se queremos ter filhos, quantos e em que época. Isto é um privilégio que aumenta ainda mais a nossa responsabilidade. Penso que ter um filho é assumir a tarefa de participar da formação desta criança até ela ser capaz de caminhar emocionalmente e espiritualmente sozinha. Isto requer muita dedicação nos primeiros anos de vida, que são comprovadamente os mais influentes. Significa ainda ajudar esta criança a desenvolver o seu potencial, reconhecendo e valorizando os talentos e dons que Deus lhe deu. Somos também chamados a ajudá-los a amar a Deus acima de todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo. Isto se dá com o exemplo de vida que precisa ser coerente com aquilo que pregamos.

A Igreja Cristã, de forma geral, prepara bem a mulher para a maternidade?

Acho que a Igreja Cristã tem enfatizado bastante este chamado e tem ensinado às mulheres princípios importantes, principalmente através do testemunho das mais velhas. Mas é preciso mostrar a importância do papel do pai, que ajuda a relação mãe/filho a sair da simbiose inicial e contribui para fornecer um modelo de homem firme e afetivo. Os pais juntos são referência de relação marido/mulher, mostram como resolver conflitos, ensinam a perdoar e lidar com as diferenças. O papel do pai é basicamente dar limite, direção e proteção. São facetas complementares que precisam ser conjugadas de forma a garantir um equilíbrio saudável.

Quais os limites de responsabilidade da mãe pela vida espiritual dos filhos, e onde começa o do pai?

A mãe geralmente acompanha os filhos mais de perto no princípio. Assim, ela tem mais oportunidade de ensinar na prática e nos pequenos detalhes do dia-a-dia. Mas os filhos exigem coerência e por isto, eles precisam ver as atitudes dos pais em conformidade com os princípios ensinados por eles. Um confirma e reafirma aquilo que o outro comunicou. A tragédia é quando não existe esta integração e os pais discordam sobre valores essenciais. A terapeuta familiar Ago Burki diz que, então, o chão debaixo dos pés destes filhos fica rachado e eles ficam desnorteados.

Por que há resistência em várias igrejas a que a mulher cristã que tem filhos trabalhe fora? É uma questão de anacronismo cultural ou há fundamentação bíblica para esta posição?

O principal argumento é que os filhos precisam de cuidados intensivos, principalmente nos primeiros dois anos. Mas cada caso é único. Algumas famílias podem contar com os avós ou com pessoas de confiança. Outras optam pelo cuidado do pai, se este está desempregado, enquanto a mãe continua trabalhando. Eu, pessoalmente, estou feliz por ter deixado de trabalhar para me dedicar a eles nos primeiros anos, pois estou colhendo hoje o fruto desta escolha. É uma doação que me ensinou muito e não me impediu de me dedicar posteriormente à minha carreira profissional.

Como reagir, de forma cristã, aos argumentos de quem desvaloriza a importância da maternidade em nossa cultura secularizante?

Nossa cultura valoriza mais a vida profissional, e muitas mulheres têm vergonha de dizer que “não fazem nada”. Mas estas mulheres deveriam orgulhar-se de ter escolhido ficar com um filho por um período limitado, de estar administrando a casa e ajudando a construir uma família saudável. Trata-se de um curto tempo na vida de uma pessoa, e tem conseqüências muito importantes na formação da criança. A grande diferença é fazer disto uma escolha ativa, e não uma submissão passiva a pressões externas.

Tendo em vista o grande número de mulheres que falham no cumprimento de seu papel como mães, pode-se dizer que a maternidade é uma habilidade inata, uma vocação ou algo que precisa ser aprendido?

Conforme a escritora francesa Elizabeth Badinter, a maternidade não é um instinto, é um vínculo que precisa ser desenvolvido, e cada vínculo é único. Cada mulher precisa libertar-se do “fútil procedimento que seus pais lhe legaram” (I Pedro 1.18) e também resgatar os bons modelos que aprendeu com eles. O sentido da maternidade depende muito também da qualidade da relação conjugal. O momento de vida, a idade, o lugar na família, o contexto cultural têm igualmente influências significativas.

Como foi sua experiência como mãe cristã?

Sinto-me realizada como mãe cristã, pois tenho muito orgulho de meus filhos. O resultado valeu cada esforço. O principal é que ambos amam a Deus e são conscientes do seu chamado para ser sal e luz na sociedade. Minha filha (Priscilla, 22 anos) estuda ciências sociais e já passou seis meses numa reserva na Amazônia para ajudar as populações ribeirinhas. Meu filho (Jonathan, 20 anos) estuda história da arte na França e pretende trabalhar com arteterapia, ou seja, ajudar o ser humano a se curar e se desenvolver através da capacidade criadora que herdou de Deus.

Da experiência no atendimento de famílias, algum caso de relação entre mãe e filho a impressionou de forma especial?

Não posso deixar de lembrar de uma situação de abuso sexual de um pai que levou a mãe a buscar ajuda. Situações de abuso são mais freqüentes do que se imagina, inclusive em famílias cristãs. Muitas mulheres fecham os olhos ou ficam paralisadas, mas é possível intervir de forma terapêutica para ajudar esta família a superar o trauma a partir do perdão e da reparação. As crianças pedem socorro de muitas formas e, às vezes, conseguem levar a família para a terapia, ajudando-a a dar um salto qualitativo para superar os conflitos e aprender com a crise.

Quais são, em sua opinião, as principais deficiências da mãe de nossos dias? Que conselhos daria a elas?

A principal deficiência de uma mãe é olhar para o filho como um fardo, seja porque ela se exige perfeição, seja porque tem outras prioridades. As mulheres precisam redescobrir o privilégio da maternidade, de poder desenvolver-se afetivamente através desta relação e ser um instrumento da graça de Deus na vida desta criança. Podemos olhar para o filho como um mestre que nos ensina tantas lições essenciais. Para aquelas que não podem ter filhos, eu diria que existem muitas formas de ser fértil e expressar o amor de Deus

Fonte: Revista Lar Cristão Online Edição 59

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