Santidade familiar

Autor: Misael Nascimento

Santidade familiar é um tema que envolve, inevitavelmente a consideração de que a família existe no mundo, entendendo-se este último como a totalidade de conceitos, expressões não explicitamente articuladas, atitudes e comportamentos humanos, tanto individuais quanto sociais ou translocais.

A família cristã do Século XXI enfrenta, de certa forma, desafios semelhantes aos dos séculos passados (o pecado em suas várias manifestações). Por outro lado, a nova civilização ocidental força, principalmente nos centros urbanos, novos estilos de vida, menos contemplativos, mais fragmentados em termos de relacionamentos, mais voltados para a competição e produtividade (sobrevivência) e com cada vez menos tempo para a articulação da espiritualidade bíblica.

A família é dádiva, bênção, oásis e fortaleza (Sl 128). A família é também mistério, universo complexo, virtualmente impossível de ser plenamente dissecada e compreendida. Consulte a quatro especialistas de terapia familiar, relatando o mesmo problema e confirme o que eu estou falando. Cada um fará uma leitura particular, percebendo nuances diferenciadas. A família é também lugar de crise, doenças, enfraquecimento e confusão.

De modo geral, o cristianismo tem lidado com a família orientado pelos objetivos da cura e da confirmação (figura 01). O primeiro é buscado com as estratégias de evangelismo e serviço terapêutico (aconselhamento pastoral ou em grupos de mutualidade), enfatizando a busca e integração das famílias à igreja. Para confirmar, ou seja, fortalecer as famílias, normalmente são desenvolvidos ministérios (departamentos, agendas e eventos). Além disso, é enfatizada a importância de se buscar a prática da piedade doméstica, a santificação familiar.

Estratégias de Ministração às Famílias

Figura 01. Modos padronizados de abordagem aos desafios familiares.

Modelos Equivocados de Santidade Familiar

No âmbito da santidade doméstica, normalmente lidamos com três tipos de propostas, todas elas insuficientes para o atendimento das reais necessidades das famílias cristãs.

Secularismo

Este modelo relativiza a importância da espiritualidade familiar. Mesmo que considere algum tipo de prática religiosa, insiste por permanecer na periferia do compromisso do discipulado. As crenças não parecem ser determinantes para a busca de uma intimidade com Deus e um serviço relevante no reino de Cristo. A rotina familiar não é afetada pelo evangelho e a igreja é apenas um item de agenda. Esta proposta, assumida e levada às suas últimas conseqüências, produz o sufocamento da semente da Palavra de Deus (Mc 4.18-19). É preciso que a família se disponha a abrir os corações para assumir os desdobramentos práticos de sua declaração de fé (Tg 1.22).

Saudosismo

O saudosismo é bem intencionado e se baseia nas práticas das gerações passadas. Ele valoriza as ricas experiências dos nossos pais espirituais, tais como o culto doméstico diário, participação de toda a família nos eventos semanais da igreja, preparação prévia de todos os detalhes, a fim de assegurar a guarda devida do domingo etc. Tal consideração pelos “marcos antigos” é pertinente (Pv 22.28). O problema é não se pode reproduzir, literalmente, na rotina moderna, algumas das práticas do passado. É vital que enfatizemos os princípios bíblicos universais que orientavam os procedimentos antigos e os utilizemos para conceber novas práticas de espiritualidade familiar, aplicáveis no cotidiano atual.

Misticismo

O misticismo, em algumas de suas manifestações, enxerga a família como o ringe onde é travada a luta entre Deus e o diabo. O centro deste conflito é o homem, que através do exercício de sua vontade colabora com um ou com o outro. A santidade familiar é considerada, neste contexto, é uma busca contínua para fechar as brechas ao diabo e afastar-se do mundo (tido como absolutamente mau) e proteger-se em Deus, munindo-se com suas armas de defesa e ataque (a Bíblia e a oração, no poder do Espírito Santo). Problemas familiares são, majoritariamente, produzidos por ingerência maligna e suas soluções são alcançadas através de estratégias de batalha espiritual ou práticas de penitências (jejuns, correntes e coisas semelhantes). Tal proposta leva o cristão a considerar com seriedade a figura do diabo, verdadeiramente, nosso inimigo espiritual, bem como a importância da vigilância e oração (1Pe 5.8-9). No entanto, reflete o maniqueísmo, uma doutrina formulada por Mani, no Século III, que afirmava que o universo foi criado e é dominado por dois princípios ou seres antagônicos, Deus e o diabo (Dicionário Aurélio Século XXI). Além disso, ela produz o legalismo (espiritualidade de alienação e terror) e subjetivismo fanático (busca de soluções não orientadas pelas Escrituras). O restante desta palestra é dedicado ao modelo bíblico de espiritualidade familiar, que denomino Modelo da Criação e Redenção.

O Modelo Bíblico de Santidade Familiar

O modelo da criação e redenção é baseado em algumas proposições muito simples:

  • Deus criou a família como algo “muito bom” (Gn 2.21-24; 1.31).
  • A partir da queda, o homem (e conseqüentemente seus relacionamentos) deixou de ser perfeito (Gn 3.16).
  • Em Cristo, obtemos a redenção: perdão, acolhimento incondicional, possibilidade de novos começos e relacionamento baseada na graça de Deus (Rm 5.6-11; comp. Sl 106.44-48).

Essas três afirmações nos auxiliam a enxergar a família como instituição divina, abençoada, bem como comunidade falível, na qual os relacionamentos serão absolutamente perfeitos. É exatamente neste contexto que pode florescer o favor imerecido, a graça que possibilita o entendimento, o acolhimento, a restauração e a provisão integral (material, emocional, afetiva e espiritual).

Este modelo é o mais adequado para o atendimento das diversas necessidades humanas. A partir dele, são estimulados os diversos âmbitos da caminhada com Deus e com o próximo.

  • Intimidade com Deus (Gn 1-2). A proposta bíblica de espiritualidade prioriza o relacionamento pessoal com o Deus Triúno. O discípulo de Cristo do Século XXI necessita articular-se cronologicamente para adorar a Deus em secreto e também em família. Mesmo que se reconheça a impossibilidade de reunir todos os familiares, diariamente, para cultuar a Deus, isso deve ser providenciado pelo menos alguns dias por semana (ou no mínimo um dia por semana). Uma família que não se reúne para fortalecer os laços da fé obediente abre brechas para o esvaziamento da crença e prática verdadeiramente evangélicas.
  • Intimidade com o outro humano (Gn 2.24). O primeiro casal convivia intimamente. A nudez de que trata o texto de Gênesis não é apenas física, mas também emocional e espiritual. Não havia nada a esconder, não existiam meias-verdades ou segredos. Era possível comunicar-se sem barreiras, autenticamente. Isso sem dúvida é desafiador para as famílias cristãs da atualidade.
  • Desfrute e testemunho da aliança (no caso de Adão e Eva, ainda o pacto das obras – Gn 2.15-17). A obediência a Deus é fundamental para a espiritualidade equilibrada. Bênçãos eram desfrutadas mas deveria ficar claro que Deus exigia santidade. Ele nos criou para que nos consagremos a ele, em obediência. Ele estabeleceu limites e compartilhou valores eternos, decorrentes de seus atributos. Isso precisa ser enfatizado nesta época em que parece que os alicerces foram retirados, a moralidade é ambígua e a vida humana é banalizada.
  • Contexto propício à maturidade (desenvolvimento humano pleno, conforme a imagem de Deus – Gn 1.26-27). Por causa de criação conforme a imagem de Deus, aquela primeira família podia desenvolver-se plenamente, desfrutar de satisfação perfeita e aperfeiçoar-se na dependência de Deus. A família deve propiciar esta oportunidade de crescimento de cada um de seus integrantes, de realização de potenciais criativos e benditos e de aprendizado da fé.
  • Ministério eficaz (Gn 2.15, 18-20). Aquela família recebeu incumbências, tarefas a serem realizadas. A família cristã é consciente de ser chamada por Deus para servi-lo. A santidade familiar implica em estímulo e capacitação para o envolvimento com a Igreja e com as necessidades do mundo. Santidade familiar tem a ver com o cumprimento da Missão. Sem isso, ao invés de santidade, temos apenas religiosidade vazia.
  • Celebração integral da vida. O primeiro casal não precisava ser religioso (não precisam ser religados). Ele podia celebrar a bondade divina no lugar do prazer (Éden – Gn 2.8), comungar informal mas reverentemente com o Criador, trabalhar, descansar, dialogar, vivenciar a sexualidade de forma pura e aprovada por Deus e encontrar alegremente seu espaço de produtividade e significado na plena integração com o mundo criado. Eis um excelente paradigma para a santidade familiar.
  • Perdão e Reconciliação. As famílias cristãs devem desenvolver-se na busca do modelo da criação, sabendo, contudo, que a queda fez grandes estragos. Agora, temos de administrar também a fragmentação e imperfeições. Dê uma boa olha nas famílias registradas na Bíblia. Todos são ótimos exemplos da necessidade da dependência diária de redenção e graça.

A partir destes dados bíblicos, é possível sugerir um conceito de santidade familiar:

Santidade familiar é o estilo de vivência individual e comunitária que propicia, confirma e plenifica o desenvolvimento da intimidade com Deus, do desfrute e testemunho da aliança da graça, da maturidade humana, do ministério da igreja e a celebração integral da vida, em suas dimensões da criação e redenção.

Questionário

1. Conceitue santidade e defina seu lugar e importância na experiência cristã.

2. O que é santidade familiar? Qual a sua importância?

3. Faça uma lista de três a cinco problemas existentes nas famílias da atualidade.

4. Faça uma lista das maiores dificuldades que os jovens e adolescentes enfrentam, em suas vivências familiares.

5. Faça uma lista de três ou quatro coisas boas propiciadas por sua família.

6. Em sua opinião, o que mais prejudica o desenvolvimento da santidade nas famílias cristãs?

Rev. Misael, palestra ministrada em 22/02/2004, no Acampamento da Igreja Presbiteriana do Guará II.

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