Autor: Valdeci dos Santos
Introdução
Até mesmo uma análise simples e rápida sobre o tema em foco é suficiente para convencer-nos de que a “verdadeira adoração é a mais alta e nobre atividade da qual o homem, pela graça de Deus, é capaz.”1 O tema “adoração” possui profundas implicações escatológicas, pois “desde que a adoração será central na vida do céu (Ap 4.8-11; 5.9-14; 7.9-17; 11.15-18; 15.2-4 e 19.1-10), ela deve ser central na vida da igreja na terra.”2 Além do mais, o puritano John Owen nos lembra que a verdadeira adoração, ainda que oferecida na terra, é conectada nos céus.3 Outro elemento de importância da adoração é resultante da aplicação da máxima cristã lex orandi, lex credendi, cuja tradução pode ser “o que se ora, é o que se crê.” Segundo este princípio, adoração e teologia caminham juntas e grande parte de nossa teologia (certa ou errada), é influenciada por nossa liturgia (forma de adoração).4
Charles R. Swindoll e Mark Earey corretamente chamam nossa atenção para importantes efeitos interiores da verdadeira adoração. Swindoll relembra-nos que a adoração alarga nossos horizontes e nos descentraliza de nosso ego, enfraquece nossos temores, altera nossas perspectivas e nos mostra o lado digno do nosso trabalho diário.5 Neste sentido, Earey afirma que a adoração é potencialmente uma experiência de cura.6 Potencialmente, porque uma adoração corrompida traz mais enfermidades do que geralmente percebemos (1 Co 11.30). Finalmente, a verdadeira adoração é o objetivo e o combustível da atividade missionária.7 Ela é o objetivo no sentido de que missões almejam trazer pessoas ao regozijo e à adoração do verdadeiro Deus. Também, real comprometimento na obra missionária é fruto de um coração devotado ao Senhor. Portanto, missões começam e terminam com adoração.
Qualquer pesquisa sobre a adoração evidencia um renovado interesse neste assunto nos últimos dias.8 A grande força motora para a transferência de membros entre igrejas já não é mais o aspecto doutrinário, geográfico ou o ensino bíblico, mas o estilo de adoração e culto. Mark Earey lembra-nos que vivemos em uma cultura consumista e todos nós “assumimos que escolhemos nosso local de adoração da mesma maneira que escolhemos nosso local de compras ou de assistir a um filme…é tudo baseado nos nossos direitos ao invés de em nossas responsabilidades.”9 Como resultado imediato, nada mais parece estável ou sólido em relação ao tópico da adoração cristã, mas a controvérsia domina nossa conversação sobre o assunto.10 Tudo isto nos leva a concluir que havia um elemento profético na afirmação do pastor canadense A. W. Tozer de que a verdadeira adoração “é a jóia perdida da igreja cristã.”11
O presente artigo propõe uma reflexão tridimensional sobre a adoração e o culto cristão. Tal reflexão envolve: 1) uma visão geral sobre o ensinamento bíblico a respeito do assunto, 2) uma análise de alguns dos principais fatores que têm desviado o foco cristão da verdadeira adoração, e 3) uma proposta de volta aos princípios teocêntricos existentes na adoração cristã. A pressuposição básica do autor, de que “a forma aceitável de se adorar o verdadeiro Deus é instituída por ele mesmo,”12 vem do Puritanismo inglês do século XVII. Assim, como em qualquer outro assunto relevante para a igreja cristã, o supremo juíz neste caso é o Espírito Santo falando nas Escrituras.13 Além disso, como o tema adoração é muito abrangente,14 nossa reflexão será focalizada sobre a adoração pública, ou seja, o culto cristão.
I. Adoração nas Escrituras
Adoração é um assunto dominante em toda a Escritura. No Éden, a recusa do homem em obedecer a Deus incondicionalmente foi, num certo sentido, a recusa a uma adoração incondicional ao Senhor com base em sua vontade revelada (Gn 3.1-6). Por outro lado, o livro do Apocalipse descreve o destino final da igreja como uma comunidade adoradora na presença do Senhor (Ap 19.1-8). A adoração como uma responsabilidade universal é um dos principais temas dos Salmos (22.27; 29.2; 66.4; 86.9; 95.6; 96.9, etc). Além do mais, os dois primeiros dos dez mandamentos convidam e dão as diretrizes para uma verdadeira adoração (Ex 20.1-6). A adoração corrompida e a idolatria estão entre as causas principais da manifestação do julgamento divino (2 Rs 17.7-20; 2 Cr 26.16-20; Is 1.11-17; Am 4.4-11; Rm 1.21-32, etc.).
No Antigo Testamento, portanto, a adoração era um dos alvos centrais na vida do povo de Deus. A construção e o lugar do Tabernáculo em Israel, por exemplo, evidenciam a ênfase na prioridade da adoração. Neste sentido, é interessante observar que cerca de 40 capítulos das Escrituras são dedicados à descrição, construção, dedicação e uso do Tabernáculo, enquanto que apenas dois são dedicados ao relato da criação. Além do mais, o Tabernáculo era posicionado no centro do acampamento israelita (Nm 1.52-53 e 2.1-2), como referência à centralidade do culto para a nação. Podemos concordar, portanto, que a “tipologia do Antigo Testamento dá um lugar proeminente à adoração.”15
No Novo Testamento, o anúncio e nascimento do Messias é respondido com adoração por Maria (Lc 1.46-56), Zacarias (Lc 1.68-79), os pastores e a milícia celestial (Lc 2.8-16), os magos (Mt 2.11) e Simeão (Lc 2.28-35). Em recusa à proposta de Satanás, Jesus cita enfaticamente as Escrituras: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele darás culto” (Lc 4.8). Jesus também evidenciou zelo pelo local dedicado ao culto público através da purificação do templo (Jo 2.13-17 e Mt 21.12-17). Ele ainda ensinou à samaritana que a verdadeira adoração deve ser em espírito e em verdade (Jo 4.23-24), ultrapassando barreiras geográficas e culturais. E, mais uma vez, confirmando sua divindade aos discípulos, ele aceitou adoração (Jo 20.28).
A Igreja Primitiva continuou olhando para a adoração como uma atividade diária e constante (At 2.42-47). Para os primeiros discípulos, como diz Mark Earey, “a adoração não era um tempo separado na vida diária; ela era a própria vida diária.”16 Os acontecimentos imediatos à conversão de Paulo também nos ensinam que somos salvos para adorar (At 9.11).17 O próprio apóstolo Paulo referiu-se mais tarde à vida cristã como um contínuo ato de adoração (Rm 12.1-2). E em Hebreus temos explícito mandamento quanto à necessidade da adoração pública do povo de Deus (Hb 10.25). Por fim, o imperativo “adora a Deus” é uma das últimas admoestações do livro do Apocalipse (Ap 22.9).
Estes dados da Bíblia conduzem-nos a uma série de conclusões com respeito à adoração. Primeiro, Deus deseja adoração. Na verdade, ele ordena que o adoremos (Mt 4.10), e ele próprio busca seus adoradores (Jo 4.23). É no contexto de adoração que o Senhor se revela como um Deus ciumento (Ex 20.4-5). Em vista disto, Everett F. Harrison afirma que “nenhuma ofensa a Deus se compara com o ato de negar sua singularidade e transferir a outro o reconhecimento [adoração] devido a ele.”18 Em segundo lugar, somente Deus deve ser adorado. Esta verdade foi ressaltada por Jesus (Mt 4.10) e é a essência dos dois primeiros mandamentos (Ex 20.3-5). Neste sentido, Clowney nos lembra que “a adoração torna-se primeiramente corrompida, não com a prostituição cultual ou rituais de sangue e sensualidade, mas na recusa humana em reconhecer o único e digno de absoluta e incondicional devoção.”19 Posto que é tão fácil cair nesse erro, a existência de uma adoração cristã corrupta é uma possibilidade sempre presente.
Uma terceira conclusão sobre a Bíblia e a adoração é o fato de que a verdadeira adoração é uma marca da fé salvadora. Um claro exemplo dessa verdade encontra-se em Filipenses 3.3, em que Paulo descreve três características da fé cristã: 1) a independência da carne, 2) a glória em Cristo, e 3) a adoração a Deus no Espírito. Intimamente relacionado com este princípio é o fato de que a adoração é uma atividade privada e corporativa. As duas coisas não são mutuamente exclusivas, mas recebem ênfase semelhante nas Escrituras (Mt 6.6 e Hb 10.25). A salvação é individual, mas não nos confina ao individualismo nem ao isolamento. Como disse Matthew Henry: “A adoração pública não nos dispensa da adoração privada.”20 O culto público é apenas uma porção da nossa vida de adoração.
O quarto princípio explicitamente mencionado nas Escrituras é o de que nem toda adoração agrada a Deus. Há sempre o perigo de trazermos um “fogo estranho” diante do altar e trono do Senhor (Lv 10.1-2) e contra o mesmo devemos estar sempre em guarda. Não apenas a adoração a falsos deuses é proibida nas Escrituras, mas também a adoração ao verdadeiro Deus com uma atitude errada (Ml 1.7-10; Is 1.11-15; Os 6.4-6; Am 5.21; Mt 5.23-26, etc.). Foi o entendimento dessa verdade que levou o reformador João Calvino a classificar a adoração distorcida como uma das necessidades de reforma da igreja cristã.21
II. Riscos de Distorções
Em Levítico 10 temos o registro não apenas da morte de Nadabe e Abiú, mas também somos instruídos sobre o fato de que o “fogo estranho” que eles trouxeram perante o Senhor consistia naquilo que era contrário aos mandamentos divinos quanto à adoração. Paulo repreendeu os cristãos de Corinto porque eles não se ajuntavam “para melhor, e sim para pior” (1 Co 11.17), e o mesmo fez Amós com a nação de Israel (Am 4.4). Referências como essas — sobre a ira divina quanto a uma adoração distorcida — podem ser facilmente multiplicadas.
Atualmente o grande interesse sobre o tema da adoração, as divergências sobre o assunto e as feridas causadas por discussões passadas são fortes indícios de que o enfoque cristão desse assunto tem sido distorcido em grande escala. John H. Amstrong, o editor da revista Reformation and Revival, acusa grande parte da adoração moderna de ser “McAdoração,” ou seja, comparando-a a um lanche popular, a algo produzido em escala industrial.22 Concordando com esta opinião, Earey afirma que o público evangélico atual espera que as igrejas “providenciem um menu de diferentes e divergentes estilos de adoração e experiência.”23 Porém, a perspectiva cristã bíblica e histórica sobre adoração não vê o culto público como focalizado na esperteza ou criatividade humana, mas na santidade de Deus.24 É imprescindível corrigir o que temos feito de errado em termos de adoração; não apenas ter uma visão panorâmica sobre o assunto, mas também uma diagnose dos elementos de erro em nosso meio.
Mencionaremos apenas alguns dos erros mais comuns entre o povo cristão, no que diz respeito à adoração. Uma mente zelosa e observadora certamente será capaz de diagnosticar outros tantos em seu próprio contexto imediato. A importância desse exercício pode ser vista, em parte, na conexão existente entre adoração e teologia. Assim como nossa teologia é influenciada por nossa liturgia (adoração), nossa liturgia, em certo ponto, é um reflexo de nossa teologia. Como resultado direto, uma teologia corrompida produzirá uma adoração distorcida. E como disse Calvino, “a adoração divina marcada por tantas opiniões falsas, e pervertida por tantas superstições ímpias e tolas, insulta a majestade sagrada de Deus com atrocidades, profana seu nome e sua glória.”25
Um dos erros explícitos no meio cristão, especialmente refletido em nossa adoração, vem da influência do existencialismo. Ainda que o existencialismo seja uma filosofia abrangente e complexa, podemos afirmar que sua essência consiste na ênfase na experiência, antes que na razão.26 A porta de entrada desta filosofia no meio protestante tem sido atribuída ao trabalho de Heidegger, Schleiermacher e até mesmo ao movimento carismático nos anos recentes.27 A influência existencialista na adoração cristã é evidenciada pela atual ênfase aos sentimentos. Neste sentido, a liturgia contemporânea tem sido fortemente acusada de ser um meio para se atingir emoções.28 Assim é que grande parte dos nossos cânticos e hinos são instrumentos de auto-ajuda e auto-aceitação, e muitas das nossas orações são meios de auto-reconciliação. O resultado final é que podemos ir para casa “descarregados” e nos sentindo bem, mas sem termos adorado verdadeiramente.
Outro elemento estranho presente na adoração contemporânea é a ênfase humanística. James M. Boice corretamente afirma que nossa geração é centralizada no homem e infelizmente “a igreja, traiçoeiramente, tem se tornado egocêntrica.”29 Um dos meios pelos quais essa ênfase humanística em nosso meio se manifesta é através de nossa busca frenética por entretenimento. Vivemos em uma era tecnológica onde a distração e o entretenimento tornaram-se a ordem do dia.30 Como filhos desta nossa geração, exigimos que cada momento do culto venha satisfazer nossas necessidades. Neste contexto, o culto foi transformado em um “programa” e o desejo de se obter “felicidade” é certamente maior do que o de se obter “santidade.” Queremos avidamente alegria, mas o comprometimento tornou-se secundário. Julgamos o culto como “agradável,” não com base na instrução bíblica apresentada, mas no grau de “satisfação” pessoal alcançada. Assim, nossa pregação tornou-se uma homilética de consenso, na qual a boa mensagem não é a que confronta nossos pecados, mas a que nos faz sentir melhor. Além do mais, os sermões tornaram-se mais curtos porque nossa atenção e memória são curtas.31 Neste sentido, J. I. Packer observa: “Geralmente reclamamos que os ministros não sabem como pregar; mas não é igualmente verdade que nossas congregações não sabem mais como ouvir?”32 Temos que concordar com Mark Earey que o grande perigo dessa adoração é o de “usar a Deus, antes que atribuir-lhe” a devida glória.33
Um terceiro elemento de erro em nosso meio é a presença deísta em nossa praxis christiana. Popularmente falando, o deísmo é identificado como a filosofia do “criador remoto” que não interfere na criação, mas a governa através de leis pré-estabelecidas.34 Esta filosofia tem visitado o meio cristão em diferentes roupagens ao longo dos anos: gnosticismo,35 teologia do processo,36 etc. Nos últimos dias, porém, ela tem ressurgido no meio cristão sob a presunção de que, uma vez tendo “tomado posse” das promessas divinas para nós, podemos “reclamar” nossos direitos junto ao trono do Pai. A idéia é que, uma vez cumpridos os requisitos (as leis espirituais), Deus passa a estar à nossa mercê. Com isto, acreditamos na ilusão de que nossas palavras têm poder e o que “declaramos,” ou “profetizamos” sobre a vida uns dos outros, e mesmo sobre a nossa vida individual, certamente acontecerá.
Por último, nossa liturgia e adoração são marcadas por uma forte dose de pragmatismo. A pressuposição central da filosofia pragmatista é que nenhuma verdade é auto-evidente. Assim, verdade e significado são dependentes de verificações empíricas, ou seja, de um teste prático.37 Se um princípio “funciona” (atende à função desejada), julgamos ser verdadeira a proposição. Uma decisão sob bases pragmáticas é uma decisão tomada não pela essência, mas pelo efeito (resultado) causado na maioria do povo cristão. John MacArthur, Jr. é um dos que levantam a voz para denunciar a influência pragmática em nossa adoração pública. Segundo ele, tudo o que queremos saber neste sentido é “se funciona…queremos fórmulas… e em algum lugar nesse processo, deixamos aquilo para o que Deus tem nos chamado.”38 No que diz respeito à adoração, como em tantas outras áreas, a aplicação deste princípio pode ser desastrosa, pois o juiz supremo passa a ser um grupo de pessoas e não o Espírito Santo. Além do mais, ainda que um estilo “funcione” em um determinado grupo, a decisão com base nos resultados é nada mais que uma conformação ao presente século (Rm 12.2).
A presença destes elementos de erro em nossa adoração produz dois resultados imediatos. A adoração, que deveria ocupar o centro de nossa vida cristã, “sendo secularizada, é incapaz de nutrir, edificar, desafiar, inspirar ou formar” nossa espiritualidade.39 E como outros no passado, podemos estar atraíndo sobre nós maldições e não bênçãos ao apresentarmos “fogo estranho” diante do Senhor em adoração.
III. Redescobrindo a Jóia Perdida
Em alguns lugares a verdadeira adoração tem sido há muito uma jóia perdida na igreja.40 Mas essa preciosidade não precisa continuar perdida.41 Redescobri-la, porém, pode ser mais difícil do que parece. Como nos lembra James M. Boice, “o desastre que tem tomado a igreja em nossos dias, com respeito à adoração, não será curado de um dia para o outro.”42 Há, porém, certos passos básicos que contribuirão para o sucesso final do nosso esforço neste sentido.
Primeiro, é mister que se entenda o que estamos perdendo com uma adoração distorcida. Segundo as Escrituras, o que perdemos não é uma congregação numerosa, nem uma cerimônia mais elaborada, mas a presença do próprio Deus em nossa adoração (Is 1.15). A presença de Deus na adoração é uma das maiores bênçãos do povo cristão (2 Cr 5.13-14). É neste contexto da presença divina na adoração que o salmista declara: “A minha alma suspira e desfalece pelos átrios do Senhor; o meu coração e a minha carne exultam pelo Deus vivo!” (Sl 84.2). E ainda: “Um dia nos teus átrios vale mais que mil, prefiro estar à porta da casa do meu Deus, a permanecer nas tendas da perversidade” (v. 10). É sempre importante lembrar que após a manifestação da graça, esta bênção assumiu dimensões maiores e “pelo novo e vivo caminho” que Jesus nos consagrou, somos exortados a nos aproximar da presença do Senhor com “sincero coração e plena certeza de fé” (Hb 10.19-22). Como dizia John Owen, “na primeira entrega da lei, na instituição legal da adoração, as pessoas foram instruídas a guardar certa distância.” Sob o pacto da graça, “a adoração é o nosso acesso, o nosso aproximar de Deus sem nenhum véu.”43 O escritor de Hebreus diz que no ato da adoração chegamos à cidade do Deus vivo (Hb 12.22).44
Assim, a maior perda envolvida em uma adoração distorcida é a presença do Adorado. Esta perda resulta em outras, segundo as Escrituras. Por exemplo, perdendo a presença de Deus na adoração perdemos, além de outras coisas, a plenitude de alegria (Sl 16.11), o socorro divino (2 Cr 20.21-22) e o elemento eficiente no testemunho evangelístico de que Deus está em nosso meio (1 Co 14.25). Além do mais, quando esta perda ocorre, há o sentimento constante da reprovação divina sobre nossos atos de culto (Is 1.11-15). O só meditar nestas coisas deveria levar-nos a um profundo lamento (1 Sm 4.21-22).
Em segundo lugar, a tentativa de redescobrir a jóia perdida implica em uma volta aos princípios teocêntricos da adoração bíblica. Paul Basden nos lembra que “a adoração que é digna de seu nome deve ser teocêntrica.”45 Nesta mesma linha de raciocínio, Manson afirma que “no coração da adoração cristã está o próprio Deus.”46 Este aspecto teocêntrico na adoração pode ser resumido em dois sub-tópicos claramente ensinados nas Escrituras: 1) é a glória divina que requer nossa adoração, e 2) é a vontade divina que normatiza nossa adoração.
Com relação ao primeiro aspecto, Edmund Clowney corretamente afirma que “nem religião nem adoração podem ser definidas à parte de Deus, pois a adoração é a resposta da criatura à glória revelada do Criador.”47 Idolatria é deixar de glorificar a Deus e mudar “a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível” (Rm 1.21 e 23). Logo, a fim de redescobrirmos a verdadeira adoração cristã é imprescindível que tenhamos em mente os meios pelos quais Deus revela sua glória a nós. Neste sentido, as Escrituras primeiramente afirmam que “os céus proclamam a glória de Deus” (Sl 19.1). Um simples trovão manifesta o seu poder (Sl 29.3) e desde o princípio do mundo pode-se reconhecer sua divindade, poder e sabedoria por meio das coisas criadas (At 14.15-17; 17.24-28 e Rm 1.20-21). Além do mais, Deus manifesta sua glória através de seus muitos nomes registrados nas Escrituras. Ele é o Altíssimo (Sl 83.18), o Deus-que-vê (Gn 16.13), um escudo (Sl 84.11), o Senhor dos Exércitos (1 Sm 4.4), etc. Como diz Clowney, “os nomes de Deus são símbolos para adoração.”48
O Senhor também manifesta sua glória através de seus atos salvadores. Em resposta à libertação do povo hebreu do cativeiro egípcio, a nação adorou ao Senhor (Ex 15). E em forma de canto, a história da salvação divina era passada às novas gerações em diferentes ocasiões (Sl 105). No Novo Testamento, a glória divina é maravilhosamente demonstrada na “grande salvação” que ele nos proporciona em Cristo Jesus (Hb 2.3). Mas a glória divina é supremamente manifesta na revelação de sua graça em Jesus (Jo 1.14-18). Neste contexto da graça revelada, à medida que contemplamos, “como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Co 3.18). Cada um desses meios de manifestação da glória divina é um convite aberto à verdadeira adoração.
Os princípios teocêntricos da adoração cristã nos ensinam que a vontade divina normatiza a verdadeira adoração. Com este princípio em mente, os puritanos enfatizaram que em adoração, assim como em doutrina, a igreja não pode ultrapassar a verdade de Deus revelada nas Escrituras.49 É interessante observar que no Antigo Testamento Israel não foi proibido de adquirir métodos agrícolas ou arquitetônicos dos cananeus, mas houve explícita proibição de que copiasse qualquer aspecto da adoração pagã (Dt 12.30-32). Com base neste fato, Clowney observa que “a igreja tem autoridade para estabelecer a ordem da adoração (1 Co 14.40), mas não tem a liberdade de introduzir novos elementos além dos que Deus tem ordenado.”50 Neste sentido Boice sugere que adorá-lo em “Espírito e em verdade” está relacionado com: 1) um profundo exercício de sinceridade, 2) uma aproximação baseada na revelação bíblica, e 3) uma aproximação cristocêntrica.51 Em outras palavras, temos que sempre lembrar que Deus nos convida à adoração nos seus termos, não nos nossos.
Outro meio que temos para redescobrir a verdadeira adoração é olhar para os santos do passado. A urgência desta atividade encontra-se em acusações como a de Robert Webber de que a adoração cristã “curvou-se à cultura ao invés de ter-se mantido fiel às tradições bíblica e histórica.”52 Como nossa intenção neste artigo não é cobrir variados períodos da história da igreja, nos deteremos no puritanismo inglês do século XVII desde que há um consenso geral de que o mesmo deu “forte ênfase na pureza da adoração bíblica e política eclesiástica.”53 Leland Ryken nos lembra que o “nome puritano refere se primeiramente ao desejo de purificar a Igreja da Inglaterra dos vestígios católicos na adoração e na forma de governo da igreja.”54 De acordo com J. I. Packer, os puritanos apresentavam-se para a adoração pública como que apresentando-se ao próprio Deus.55 É certo que eles tiveram algumas divergências internas neste tópico,56 mas mesmo tais divergências não os fizeram perder de vista o essencial na adoração.57
Desde que a adoração no Puritanismo era vista como uma aproximação a Deus, toda a liturgia era formulada visando edificação (1 Co 14.26). Como resultado, o culto puritano era caracterizado por dois princípios: simplicidade e biblicidade. Referindo-se à simplicidade no culto puritano, diz Ryken: “O culto puritano como um todo era marcado pelo esforço em despojar-se do supérfluo e concentrar-se no essencial, o que evidenciava o ideal de edificação.”58 Naquele contexto, a exposição bíblica era a mais solene e exaltada atividade, sendo também o teste supremo do ministro.59 Assim, a simplicidade era para eles uma proteção contra as vaidades da alma, e as Escrituras, uma proteção contra as distorções fantasiosas. Com respeito à ordem do culto, Alan Clifford afirma que no culto puritano a pregação, o conteúdo das orações, o cântico dos Salmos e a guarda do domingo constituíam elementos de distinção especial na época.60 Além do mais, porque na adoração o cristão não apenas busca a Deus, mas também o encontra, a adoração era vista pelos puritanos como um meio de graça, onde o faminto é alimentado.61 John Owen evidencia este ponto ao dizer que na adoração, Cristo “toma os adoradores pelas mãos e os conduz à presença de Deus; e apresentando-os lá ele diz: ‘Eis-me aqui, e os filhos que Deus me deu’.”62 Tal abordagem da adoração cristã sempre deveria nos motivar e instruir.
Finalmente, uma redescoberta da verdadeira adoração inclui a aplicação do amor cristão para solucionar divergências secundárias. O refomador Calvino entendeu que nesta matéria, como em vários outros assuntos importantes para a igreja cristã, há aspectos primários e aspectos secundários. Quanto aos aspectos primários da adoração, ou seja, aqueles que dizem respeito à retidão do cristão, à majestade de Deus, e qualquer outro assunto necessário à salvação, “somente o Mestre deve ser ouvido.”63 Em aspectos secundários, ou seja, assuntos que não são necessários à salvação e costumes de diferentes povos e gerações, não deveria haver imposição de mudanças, por causas insuficientes. Assim ele conclui dizendo que o “amor julgará melhor entre o que danifica e o que edifica; e se deixarmos o amor ser o nosso guia, tudo estará salvo.”64 Outro exemplo deste mesmo princípio vem de John Owen em seu tratado sobre divisões entre cristãos. Naquela obra Owen confessa: “Eu preferiria gastar todo o meu tempo e meus dias curando as feridas e divisões entre os cristãos do que gastar uma hora procurando justificá-las.”65 Tais ilustrações de sabedoria são não apenas bem-vindas, mas urgentemente necessárias em nossa discussão sobre adoração.
Conclusão
Nesta nossa reflexão sobre adoração e culto cristão temos procurado mostrar que o assunto é essencialmente espiritual e digno de nossa atenção especial. Por sua natureza espiritual, a verdadeira adoração só é possível quando impulsionada pela obra do Espírito Santo dentro de nós (Jo 4.23-24). Além do mais, os passos a serem tomados para uma redescoberta da verdadeira adoração são exercícios altamente espirituais e contradizem profundamente nossa natureza e impulsos carnais. Mas a verdadeira adoração sempre exaltará Cristo (Ap 5.12), transformará o adorador (2 Co 3.18-19), convencerá o incrédulo da presença do adorado entre os adoradores (1 Co 14.24-25) e invocará o “amém” de cada um dos servos de Deus. Ainda, a verdadeira adoração nos capacita para o testemunho e o serviço diário na seara do Mestre. Como diz Armstrong: “Não estamos no negócio de construir mosteiros evangélicos, mas congregações que servirão o verdadeiro Deus como resultado direto da adoração.”66
Finalmente, temos que admitir que, de acordo com as Escrituras e a história cristã, adorar a Deus corretamente exige tempo e humildade. Preparação é essencial. Examinar nossas intenções e avaliar nossas ações devem ser exercícios constantes em nossa vida de adoradores (Sl 66.18 e 131). Além do mais, nosso coração deve ser continuamente guardado contra o egocentrismo a fim de que possamos dizer: “Não a nós, Senhor, não a nós, mas ao teu nome dá glória” (Sl 115.1). É somente adorando o Senhor de modo verdadeiro que seremos encontrados por ele e, como disse Richard Baxter: “Se é a Deus que você está buscando em sua adoração, você não ficará satisfeito sem Deus.”67
English Abstract
The author begins by emphasizing the importance of adoration in Christian worship and its positive effects on spiritual life. After a survey of the biblical data on the subject, Santos concludes that: 1) God wants to be worshipped; 2) only God should be worshipped; 3) true worship is the mark of saving faith; and 4) worship is both private and public. Then, he expounds the main distortions in Christian worship and adoration caused by the impact of existentialism, humanism, deism and pragmatism on evangelicals today. He ends by suggesting a few steps for recovering the lost jewel of worship, which include: 1) consciousness of what we lose when we distort biblical worship; 2) a return to the theocentric principles of worship prescribed in Scripture; 3) an examination of church history in order to see how saints of the past worshipped God – especially the Puritans; 4) an attempt to deal with our secondary differences regarding worship in a loving spirit. Santos is convinced that true worship requires time, humility, and self-examination.
Notas
1 John R. W. Stott, Christ the Controversialist: A Study in Some Essentials of Evangelical Religion (Londres: Tyndale, 1970), 160.
2 J. I. Packer, Concise Theology (Wheaton: Tyndale, 1993), 99.
3 John Owen, The Works of John Owen (Carlisle: The Banner of Truth, 1990), IX: 77.
4 Maiores detalhes em Don E. Saliers, Worship as Theology (Nashville: Abingdon, 1994).
5 Charles R. Swindoll, Growing Deep in the Christian Life (Portland: Multnomah, 1977), 397.
6 Mark Earey, “Worship – What Do We Think We Are Doing,” em Evangel 16 (Primavera 1998), 10.
7 John Piper, Let the Nations be Glad! (Grand Rapids: Baker, 1993), 11.
8 A abundante literatura sobre esse tópico é suficiente para desestimular qualquer pretenção de se dar uma resposta precisa a todas as perguntas levantadas sobre o mesmo. Ver maiores detalhes em Ronald Allen, Worship: Rediscovering the Missing Jewel (Portland: Multnomah, 1982).
9 Earey, “Worship,” 8.
10 Edmund P. Clowney, The Church (Downers Grove: Intervarsity Press, 1995), 117.
11 Ver A. W. Tozer, The Best of A. W. Tozer (Grand Rapids: Baker, 1995), 217-222.
12 Confissão de Fé de Westminster, XXI.i.
13 Ibid., I.x.
14 O termo “adoração” pode ser usado em um triplo sentido: 1) público, 2) familiar e 3) individual. D. S. Whitney, Spiritual Disciplines for the Christian Life (Colorado Springs: Navpress, 1991), 79-91.
15 A. P. N. D. Gibbs, Worship (Kansas City: Walterick, s. d.), 69.
16 Earey, “Worship,” 11.
17 Nesse caso, uma das evidências usadas para confirmar a Ananias a conversão de Paulo foi o fato de que ele estava orando.
18 Everett F. Harrison, “Worship,” em Baker’s Dictionary of Theology (Grand Rapids: Baker, 1960), 561.
19 Clowney, The Church, 118.
20 Citado por John Blanchard, Gathered Gold (Welwyn: Evangelical, 1984), 344.
21 João Calvino, The Necessity of Reforming the Church (Dallas: Protestant Heritage, 1995), 16.
22 John H. Armstrong, “How Should We Then Worship?,” Reformation and Revival 2 (Inverno 1993), 9.
23 Earey, “Worship,” 8.
24 Armstrong, “How Should We Then Worship?,” 11.
25 Calvino, Necessity of Reforming the Church, 151.
26 E. D. Cook, “Existencialism,” em New Dictionary of Theology (Downers Grove: Intervarsity Press, 1988), 243.
27 David L. Smith, A Handbook of Contemporary Theology (Wheaton: BridgePoint, 1992), 117-132.
28 John Leach, “Scripture and Spirit in Worship,” Evangel 16 (Primavera 1998), 13.
29 J. M. Boice, “Whatever Happened to God?” em Modern Reformation (Jul-Ago 1996), 13.
30 Armstrong, “How Should We Then Worship?,” 9-10.
31 Boice, “Whatever Happened to God?,” 14.
32 J. I. Packer, A Quest for Godliness (Wheaton: Crossway, 1990), 254.
33 Earey, Worship, 11.
34 S. N. Williams, “Deism,” em New Dictionary of Theology, 190.
35 Ronald H. Nash, Christianity and the Hellenistic World (Grand Rapids: Zondervan, 1984), 203-61.
36 Smith, Handbook of Contemporary Theology, 150-164.
37 M. E. Alsford e S. E. Al, “Pragmatism,” em New Dictionary of Christian Ethics and Pastoral Theology (Downers Grove: Intervarsity Press, 1995), 682.
38 John MacArthur Jr., The Ultimate Priority (Chicago: Moody, 1983), 21.
39 Robert E. Webber, “Preconditions for Worship Renewal,” Evangelical Journal 9 (1991): 5.
40 Swindoll, Growing Deep, 390.
41 Allen, Worship, 18-19.
42 Boice, “Whatever Happened to God?,” 15.
43 Owen, Works, IX: 58.
44 O v. 28 deste capítulo revela que esta afirmação foi feita em um contexto sobre adoração. O termo grego latreomen é um dos termos traduzidos por “adoração” no Novo Testamento e na Septuaginta.
45 Paul Basden, “The Theology and Practice of Worship,” The Theological Educator 57 (Primavera 1998): 85.
46 P. D. Manson, “Worship,” New Dictionary of Theology, 730.
47 Clowney, The Church, 118.
48 Ibid., 119.
49 Confissão de Fé de Westminster, XX.2.
50 Clowney, The Church, 122.
51 J. M. Boice, Foundations of the Christian Faith (Downers Grove: Intervarsity Press, 1986), 592.
52 Webber, “Preconditions for Worship Renewal,” 4.
53 I. Breward, “Puritan Theology,” em New Dictionary of Theology, 550.
54 Leland Ryken, Wordly Saints (Grand Rapids: Zondervan, 1990), 111.
55 Breward, “Puritan Theology,” 245.
56 Alan Clifford, “The Westminster Directory of Public Worship (1645),” em The Reformation of Worship (Londres: The Westminster Conference, 1989), 54-56.
57 Packer, A Quest for Godliness, 246.
58 Ryken, Wordly Saints, 120.
59 William Perkins, The Art of Prophesying (Carlisle: Banner, 1996), 3.
60 Clifford, “Westminster Directory,” 65-70.
61 Packer, A Quest for Godliness, 252.
62 Owen, Works, IX: 58. Ver Isaías 8.18.
63 João Calvino, Institutes of Christian Religion (Filadélfia: Westminster, 1960), IV.x.30.
64 Ibid., IV.x.30.
65 Owen, Works, XIII: 95.
66 Armstrong, “How Should We Then Worship?,” 16.
67 Richard Baxter, A Christian Directory (Morgan: Soli Deo Gloria, 1996), 551.
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