Pastorear em meio ao caos

Autor: Ricardo Agreste

Domingo, oito horas e cinqüenta e oito minutos. Assentado num dos primeiros bancos do templo, levanto os olhos para verificar se os músicos já estão prontos. Todos têm uma cópia da liturgia do culto, a qual foi previamente preparada durante a semana. Olho para minha Bíblia para verificar se o esboço do sermão está colocado no lugar exato da passagem a ser lida. Olho ao redor e vejo todos bem arrumados e assentados e, aparentemente, prontos para adorar a Deus e ouvir Sua palavra. Levanto-me e caminho até a frente para saudar a todos. Tenho em mim certa sensação de que tudo está sob controle. Assim, aos domingos a vida pastoral não parece ser tão difícil. Exige certo trabalho, sim. Mas, com alguma dedicação e preparo prévio, tudo pode ser arranjado de forma que esteja sob controle.

Terça-feira, oito horas e cinqüenta e oito minutos. Após um agradável dia de folga, estou iniciando uma nova semana de serviço pastoral. Logo pela manhã, recebo um telefonema de uma mulher que no último Domingo, assentada de braços dados com seu marido, participava de forma contagiante do culto. Com a voz trêmula, ela informa que o marido acabou de deixar a família. No dia seguinte, recebo a notícia de que um dos presbíteros da Igreja, um dos que participaram da Ceia do Senhor no último Domingo foi hospitalizado em caráter urgente e precisa ser submetido a uma cirurgia muito delicada. Na Quinta-feira entra no gabinete pastoral uma das jovens da equipe de louvor. Cumprimento-a pela linda música que cantou no culto de Domingo. Em seguida, sem levantar os olhos, ela conta-me que está grávida de seu último namorado. Chego na Sexta-feira precisando preparar a mensagem e a liturgia do próximo Domingo com a sensação de que tudo está fora de controle e o mundo retornou ao caos.

Assim, como muitos outros pastores, deparo-me com a realidade de que, apesar do Domingo ser um dia essencial no serviço pastoral, muito deste ministério precisa ser feito em meio ao caos de Segunda a Sábado. Para o aumento de meu desespero, constato que recebi muitas ferramentas para ser um bom pastor no ambiente dominical, mas estou desprovido de recursos para lidar com o mundo hostil de Segunda a Sábado. Preciso então desenvolver a arte de pastorear em meio ao caos, ou como Eugene H. Peterson coloca, “a arte de orar em meio ao tráfico”.

Vender Mapas ou Guiar Vidas
Certa vez, lendo e meditando sob o encontro de Filipe com o oficial etíope descrito no capítulo oito de Atos, fui conduzido a uma profunda reavaliação de meu ministério diante de um comentário sobre o verso 31. Segundo o relato bíblico, após ser questionado por Filipe quanto à compreensão do que vinha lendo, o oficial etíope respondeu com outra pergunta: “Como poderei entender, se alguém não me explicar?”

Sempre tive por óbvio o sentido do verbo aqui traduzido por “explicar” até que percebi que o termo grego ali usado é o verbo hodogéu (guiar ou conduzir). Este verbo foi utilizado na antigüidade para definir a atividade dos guias que conduziam pessoas através do deserto. Eles tinham os pés nos mesmos caminhos que as pessoas que guiavam, enfrentavam o calor do meio-dia, bem como o frio das noites.

Em franco contraste com a imagem dos guias, temos os vendedores de mapas. Estes últimos se apresentam das formas mais criativas, possuem idéias tremendas acerca dos desertos, são detentores de um grande poder de persuasão e prometem muitas vantagens aos interessados em seu produto. No entanto, eles não ousam caminhar ao lado das pessoas debaixo do sol escaldante ou em meio às noites frias. O papel deles restringe-se a oferecer mapas para os mais variados desertos da vida.

O oficial etíope, quando questionado por Filipe, declara a necessidade de ser acompanhado por um guia através de sua jornada espiritual. Em Atos 8.31 encontramos Filipe entrando na carruagem, sentando-se ao lado do oficial e seguindo com ele o caminho. E, começando por onde aquele homem se encontrava, guiou-o até Jesus (Atos 8.35). A opção de Filipe não é a de vender mapas, mas de guiar aquele homem.

O ministério pastoral, quando centralizado somente nos eventos dominicais, em muito pode se aproximar da atividade desenvolvida pelos vendedores de mapas. O ambiente pode ser preparado para inspirar, a música ensaiada para emocionar e as palavras elaboradas para motivar, mas, o distanciamento das pessoas e do caos em que vivem pode fazer deste momento um ato de se vender mapas. Diferentemente, quando o ministério pastoral é vivido em meio ao caos e há disposição de se estar próximo e atento às crises e às dores das pessoas, a imagem cristã do guia espiritual é resgatada na comunidade. O pastor torna-se aquele que ministra com relevância não apenas aos Domingos, mas especialmente entre Domingos, guiando e conduzindo pessoas através das crises e em meio ao caos.

Oração, Escrituras e Mentoria
No desafio de pastorear vidas em meio ao caos, creio que um dos grandes obstáculos que encontramos na atualidade é a visão errônea de que cabe a nós, pastores, a tarefa de resolver problemas. No mundo científico-industrial em que vivemos, problemas são vistos como barreiras a serem transpostas, e isso de forma mais prática e imediata possível. Assim, espera-se que “bons pastores” sejam pessoas prontas para responder a qualquer questão, para dar o palpite certo em tempos de indefinição e para orar com “eficácia” diante da enfermidade, desemprego, crise familiar, entre outras coisas.

Diferentemente, na tradição cristã, os problemas são vistos não como barreiras a serem transpostas de forma imediata e pragmática, mas, como mistérios a serem explorados. Por sua vez, os pastores não são vistos como miniaturas de Deus que resolvem os problemas que lhe são apresentados, mas, como homens e mulheres prontos a caminhar, em amor e em discernimento, ao lado daqueles que enfrentam a crise e o caos. Nesta jornada, mais importante do que a solução para a dor é a percepção de Deus e de Sua ação.

Por isso, como pastores, precisamos resgatar a prática da oração. Na medida em que oramos, ganhamos sensibilidade para perceber o que Deus está fazendo em nossas próprias vidas. Nossa própria história ganha sentido na medida em que percebemos o mover de Deus em nossa existência, nos conduzindo, nos lapidando e nos amando. A oração, diferentemente de muitas práticas contemporâneas, nos torna mais prontos ao mover de Deus e à confiança no que Ele está fazendo.

Além da oração, precisamos também resgatar a leitura sensível das Escrituras. Quando lemos e meditamos nas Escrituras, ganhamos sensibilidade para perceber como Deus está, constante e ativamente, presente na vida de Seu povo ao longo da História. A leitura das Escrituras oferece-nos a percepção e a convicção de que não existe casualidade, nem mesmo fatalidades. Por detrás de eventos e encontros, Deus está agindo na vida de Seu povo e a nós cabe estarmos sensíveis e atentos ao Seu mover.

No entanto, tanto a oração e a leitura sensível das Escrituras não podem ser tidas por práticas alienadoras e individualizantes. Ambas nos exercitam rumo ao pastoreio de vidas como guias que conduzem pessoas através do caos. Enquanto a oração nos convida à sensibilidade para com a ação de Deus em nossas próprias vidas, a leitura das Escrituras nos conduz à percepção da ação de Deus na História. No entanto, ambas nos preparam para a mentoria, a sensibilidade para com o que Deus está fazendo na vida daqueles que nos cercam.

Conclusão
Antigamente, como afirma Eugene Peterson, não existia muita diferença entre o que o pastor fazia aos Domingos e o que realizava entre Domingos. Tanto aos Domingos como entre Domingos, a tarefa pastoral era caracterizada pelo serviço de guiar homens e mulheres ao longo de seus desertos existenciais, através de suas crises e dores. Neste serviço, pastores faziam uso da oração e da leitura d
as Escrituras. No entanto, atualmente, o serviço pastoral tem se distinguido em “Ministério aos Domingos” e “Ministério entre Domingos”. E a grande mudança tem se dado no caráter das atividades que um pastor faz “entre Domingos”, as quais têm sido grandemente definidas como práticas para “tocar uma Igreja” assim como um empresário toca sua empresa. No entanto, estou convencido de que a grande carência de nossas igrejas na atualidade não é a de grandes visionários com suas propostas megalomaníacas, nem de marqueteiros com suas técnicas para aumentar a visibilidade e a aceitação das igrejas no mercado, nem muito menos de “vendedores de mapas” que articulam com maestria as palavras. Nossas igrejas estão necessitando de pais dispostos a viver com seus filhos, conduzindo-os através de suas limitações e crises, com amor e paciência na direção da maturidade em Cristo Jesus. Nossas comunidades precisam de guias que, através da oração e da Palavra, ajudem as pessoas a caminharem através de suas crises e a viverem em meio ao caos.

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