Autor: Autor Desconhecido
Teologia da Libertação quer enfrentar recuo ideológico M.Paz
Em entrevista à Agência Carta Maior, o monge beneditino Marcelo Barros faz um balanço da trajetória da Teologia da Libertação, defende a necessidade de construir uma outra concepção de Deus e alerta para os riscos do recuo ideológico e dos fundamentalismos que afetam o mundo hoje. Marco Aurélio Weissheimer*
Porto Alegre
– O mundo atravessa hoje um período de um intenso recuo ideológico e de proliferação de fundamentalismos religiosos alimentados por situações de opressão política, pobreza e injustiça social. Nascida na década de 1960, a Teologia da Libertação tem que trabalhar hoje na direção da defesa do pluralismo e do diálogo entre as religiões, combatendo todas as formas de injustiça e de fundamentalismo. A opinião é do monge beneditino Marcelo Barros, um pernambucano que trabalhou com Dom Hélder Câmara e que hoje segue sua vida pastoral e militante em Goiás, atuando junto a religiosos como Dom Pedro Casaldaglia. Autor de mais de 20 livros, entre eles “Pluralismo e Libertação – Por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da Fé Cristã” (Edições Loyola) e “Pelos muitos caminhos de Deus – Desafios do Pluralismo Religioso à Teologia da Libertação” (Editora Rede), Marcelo Barros participa, em Porto Alegre, do I Fórum Mundial de Teologia e Libertação.
A Teologia da Libertação latino-americana desenvolveu-se a partir de uma visão baseada essencialmente nos paradigmas da fé cristã. No entanto, defende Marcelo Barros na entrevista, a salvação não passa exclusivamente pela fé cristã. A atual teologia das religiões, sustenta, deve perseguir um caminho pluralista, trabalhando pelo diálogo entre as religiões e andando ao lado do povo e de seus sofrimentos. Além disso, acrescenta, deve trabalhar pela construção de uma outra concepção de Deus, um Deus que não tenha seu nome utilizado para justificar guerras e opressões. Sobre esse ponto, ele indaga:
“Como é que a gente pode justificar o fato de haver no mundo hospitais psiquiátricos, clínicas psicológicas, especializadas em curar pessoas vítimas da religião, de igrejas cristãs que, em nome de Deus, massacram consciências. Não matam fisicamente, não dão um tiro em alguém – até já fizeram isso -, mas massacram consciências? Quantas guerras continuam sendo praticadas por motivos religiosos? Será que há um engano brutal aí ou vem da própria concepção de Deus que nós construímos?”
Agência Carta Maior – Em seus últimos livros e debates públicos, o sr. vem defendendo a idéia de que a Teologia da Libertação deve trabalhar cada vez mais com a idéias de pluralismo e diversidade. O que seria uma Teologia da Libertação pluralista? Marcelo Barros – Uma das idéias fundadoras da Teologia da Libertação é pensar o projeto divino, a fé e toda a questão da revelação dos desígnios de Deus a partir da luta do povo, do projeto que Deus tem de ver todo mundo livre. A Teologia da Libertação surgiu no cristianismo décadas atrás – embora eu tenha tido contato também com a Teologia da Libertação palestina, islamita -, um pouco na base dessa convicção de que o cristianismo é a única religião verdadeira. Hoje, a idéia de uma Teologia da Libertação pluralista procura superar essa convicção, trabalhando para construir uma relação de solidariedade com os movimentos de libertação do mundo inteiro, a partir do diálogo entre as diferentes religiões e da valorização do fato de que o mundo é diversificado e plural. Ontem fui a uma televisão aqui de Porto Alegre e o jornalista me perguntou: – Como é que você essa questão de a Igreja Católica continuar perseguindo gente ligado à Teologia da Libertação?. Eu fico muito contente, respondi, pois isso enriquece mais a diversidade.
CM – Qual é o balanço que pode ser feito da trajetória da Teologia da Libertação, desde seu surgimento na década de 1960 até hoje? Quais as conquistas alcançadas por esse movimento?
MB – Acho que no mundo inteiro, conquistou-se o que estamos vendo aqui em Porto Alegre nestes dias, durante o Fórum Social Mundial. Deus me livre de dizer, como se costumava dizer lá no Recife quando eu era menino, que o rio Capibaribe se junta ao rio Beberibe e forma o Oceano Atlântico. Então, não é o caso de dizer que a Teologia da Libertação fez o Fórum Social Mundial. Todo mundo deve me compreender quando falo isso. O que quero dizer é que acho que não haveria um movimento como esse sem ter havido uma participação dos cristãos no processo de libertação. E a Teologia da Libertação colaborou fortemente para isso. Então, um movimento como o altermundialismo é fruto de vários rios, de vários afluentes. Um afluente importante é a participação das pessoas que crêem em Deus, nas diversas religiões, e nos processos de libertação do mundo. Isso aconteceu efetivamente no caso da Revolução na Nicarágua, no caso do islamismo na Revolução Islâmica do Irã, e no caso de outros movimentos do mundo inteiro ligando fé e justiça. Neste sentido, o balanço que eu faço da Teologia da Libertação hoje é extremamente positivo, considerando todas as contradições do mundo atual.
CM – O senhor referiu antes que os atritos e conflitos envolvendo a cúpula da Igreja Católica e os teólogos da libertação têm um aspecto positivo porque a adversidade fortalece. Em que pé anda essa relação com as autoridades da Igreja?
MB – Acho que a grande tragédia em relação a esse problema é o afastamento entre o pastoreio, a coordenação das comunidades eclesiais e as bases, o povo. Na medida em que os pastores se afastam efetivamente do povo, na medida em que eles se colocam em uma situação de poder e de autoridade, isso cria problemas para todos os agentes de pastoral que estão comprometidos com o povo. E aí cria-se o conflito entre pessoas engajadas em uma prática de libertação e o pessoal que coordena as igrejas. Creio que, hoje em dia, esse conflito está menos agudo do que na década de 1980, talvez pelo fato de que o próprio mundo atual enfrenta uma espécie de recuo ideológico. Parece que está fora de moda falar em justiça, em socialismo. Por conta disso, eles acham, e muitos dizem isso, que a Teologia da Libertação morreu. A gente sabe que não morreu. Estamos aqui num encontro mundial da Teologia da Libertação. Participo de reuniões de grupos de Teologia da Libertação que se encontram duas vezes por ano e vejo que ela continua muito viva. Mas, de fato, ela não tem aquele espaço na mídia e aquela produção que tinha no mundo inteiro ao longo da década de 1980. Por conta disso, um cardeal da Cúria romana disse recentemente que o problema não é mais a Teologia da Libertação, mas sim a Teologia do Pluralismo Religioso. Não sei como é que ele vai ficar quando descobrir que estamos nos unindo…
CM – Na sua avaliação, quais são as principais categorias e conceitos que a Teologia da Libertação e a Teologia do Pluralismo Religioso podem fornecer para um movimento como o Fórum Social Mundial? Em que elas podem contribuir para enfrentar o problema do recuo ideológico?
MB – A primeira contribuição que me parece fundamental é o fato de que o importante é a prática, que a fé, o caminho de Deus e a espiritualidade são importantes, mas devem estar acompanhadas de ações. Hoje no mundo há uma fome de espiritualidade muito grande. Você entra em uma livraria qualquer e os livros que estão em destaque são os livros do Paulo Coelho, a Profecia Celestina, o Código da Vinci, etc. Isso tem um lado bom, está ótimo, mas tem que vir acompanhado por uma prática engajada baseada nas idéias de solidariedade e justiça. Sem isso, não dá. Me parece que outro elemento fundamental é a idéia de uma solidariedade internacional e não simplesmente local e isolada. Então, a fé cristã, islamita, muçulmana, budista, mostram que é a opção pela vida, onde ela estiver, que é o caminho que devemos perseguir. Penso que o Fórum Social Mundial tem que trabalhar mesmo essa questão de uma economia alternativa, de um outro modelo de globalização. Mas estou convencido que não basta pensar uma outra economia para um outro mundo possível.Se não houver uma outra espiritualidade, se não houver uma espécie de mística de solidariedade, só a economia não vai resolver. Tomemos, por exemplo, a questão da ecologia. Você pode pensar milhões de alternativas para o problema da crise da água no mundo. Meu último livro, “O espírito vem pelas águas”, trata disso. Ou você muda a cultura, a relação do ser humano com a água, de um ponto de vista afetuoso ou espiritual, ou você não vai resolver o problema propondo apenas dessalinizar a água do mar, ou descobrir novas tecnologias. Só a economia e a política não vão resolver isso, embora sejam muito importantes. Então, uma de nossas contribuições fundamentais é trazer uma mística para o movimento por uma outra mundialização.
CM – Um dos slogans do Fórum Mundial de Teologia e Libertação é “Um Deus para um outro mundo possível”. Isso quer dizer que é preciso repensar a própria idéia de Deus?
MB – Isso é muito importante. No III Fórum Social Mundial, em 2003, o escritor português e Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, escreveu uma carta lida no ato público de encerramento do Fórum, onde dizia que a maioria dos crimes e das tragédias que atingiram a humanidade tiveram como responsável o que ele chamou de “Fator Deus”. Deus seria, de algum modo, responsável pelos crimes cometidos contra a humanidade. Infelizmente, tenho que concordar com ele. O nome de Deus foi usado para justificar muitos desses crimes e tragédias. A minha pergunta é se isso foi um acidente da história ou se foi decorrente da própria concepção que a humanidade desenvolveu a respeito de Deus, nas mais diversas religiões. Quando, por exemplo, fui a Machu Pichu, no Peru, uma coisa encantadora o Templo do Sol dos incas, um lugar lindo. Como compreender que a adoração a Deus era feita com sacrifícios humanos? Vim do México a semana passada, onde vi a mesma coisa nas pirâmides astecas. Mas será que isso é só das religiões indígenas ou o próprio cristianismo não praticou sacrifícios, apoiando guerras, cruzadas, inquisições? Tudo isso em nome de Deus.
Como é que a gente pode justificar o fato de haver no mundo hospitais psiquiátricos, clínicas psicológicas, especializadas em curar pessoas vítimas da religião, de igrejas cristãs que, em nome de Deus, massacram consciências. Não matam fisicamente, não dão um tiro em alguém – até já fizeram isso -, mas massacram consciências? Quantas guerras continuam sendo praticadas por motivos religiosos? Será que há um engano brutal aí ou vem da própria concepção de Deus que nós construímos? Então é preciso mudar isso. Deus é mistério. Toda vez que falo de Deus falo a partir da minha experiência. Se os cavalos pudessem pensar e pudessem pensar em Deus, eles iriam pensar em um Deus cavalo. Então, a imagem de Deus, o que a gente diz de Deus, tem muita projeção que é nossa, coisas nossas que jogamos e atribuímos a Deus. Por isso, precisamos pensar em uma imagem de Deus a partir da paz, do carinho, da ternura, da solidariedade com as pessoas, e mudar totalmente essa imagem de um Deus da guerra e do egoísmo, como fazem os fundamentalismos de todas as religiões.
CM – Na sua avaliação, quais são as chances que temos hoje de enfrentar esse tipo de fundamentalismo, tanto o religioso quanto o político?
MB – Há uma relação muito grande entre fundamentalismo religioso e injustiça social. Se os Estados Unidos fazem o que fazem em sua fronteira com o México, construindo uma nova cortina de ferro, um muro da vergonha, se a Europa se torna cada vez mais uma ilha de luxo, jogando fora e expelindo o lixo da humanidade que somos nós, o Terceiro Mundo, qual é a conseqüência disso? A conseqüência é, primeiro, a “invasão dos bárbaros”, que chegam lá e, para poder sobreviver, são obrigados a se destruir a si próprios culturalmente e acabam se apegando a única coisa que eles têm, o que é mais íntimo e profundo, ou seja, a fé. Então, os muçulmanos que sobrevivem na França, não todos mas muitos deles, acabam se tornando fundamentalistas. Um muçulmano em um país como a Arábia Saudita pode ser muitas coisas, pode ser fundamentalista ou pode ser adepto da Teologia da Libertação. O mesmo ocorre no Egito e em muitos outros países. Na Europa, isso é muito difícil…
CM – Tornar-se fundamentalista acaba se tornando uma questão de sobrevivência…
MB – Exatamente. Poderíamos dizer o mesmo em relação ao que ocorre no Brasil e em muitos países da América Latina com os grupos neopentecostais. O meu amigo cineasta João Moreira Salles, que está no Brasil inteiro com o filme “Entreatos” sobre a campanha do Lula, ele durante dois anos pesquisou e fez um documentário chamado “Santa Cruz”, que também está passando nos cinemas. Ele pesquisou como é que na Baixada Fluminense, em um dos bairros mais pobres e mais violentos da cidade de Santa Cruz, um homem aposentado da Polícia Militar foi orar num barraco, juntou um grupinho de gente e começou uma igreja nova, uma igreja pentecostal. O que é que fez com que esse pessoal fosse pra lá e, em dois anos, essa igreja estivesse consolidada, extremamente forte e florescente? O fato de que aquela comunidade se reuniu naquele barraco como uma questão de sobrevivência cultural. Tinha marido se separando da mulher, adolescente e jovens caindo nas drogas, toda a tentação da violência em uma região como aquela. De repente, aquela igreja se tornou um pólo de identidade humana sadia. Agora, pra fazer isso tem um preço a pagar e o preço é o fundamentalismo religioso. Então, não estou defendendo o fundamentalismo religioso, estou dizendo que ele é conseqüência da pobreza, da opressão e da injustiça…
CM – É um efeito colateral…
MB – Exatamente. É um efeito colateral. Na hora em que tivéssemos um mundo livre, onde a dignidade humana fosse respeitada, acho que esse movimento seria muito reduzido.
CM – Uma última questão, mudando um pouco de assunto, mas não muito. Qual sua avaliação sobre a trajetória do governo Lula até aqui, um governo que foi eleito sob o símbolo da esperança?
MB – Eu fui o único religioso católico, não-representante oficial de igrejas, convidado para a posse de Lula no Palácio do Planalto. Muita gente me viu na televisão apertando a mão do Lula, fui a quarta pessoa que o cumprimentou. Recebi esse convite nem sei porque. Talvez ele quisesse alguém da Teologia da Libertação presente. No lugar de escolher um dos grandes nomes, escolheu a mim. Foi um momento de grande alegria para mim. Hoje, não posso dizer o mesmo. Acho que a política econômica que vem sendo implementada não ajuda em nada a resolver os problemas do nosso povo. E o pior é que boa parte da oposição ao governo Lula é uma oposição para pior. Quero que esse modelo econômico que vem sendo praticado mude, mas não quero que voltemos para trás. Na verdade, acho que o problema do governo Lula é mais embaixo. Acredito que estamos batendo nos limites da democracia representativa. Não creio que ela possa resolver nossos problemas. Veja o caso de São Paulo, onde cerca de 48% da população achava o governo da Marta bom e, no entanto, elegeu Serra por uma larga margem. O bombardeio feito pela grande mídia paulista contra o governo da Marta contribuiu muito para isso. Muitas políticas sociais importantes serão interrompidas. Então, só creio que poderemos mudar esse quadro apostando na democracia participativa. Sei que a democracia representativa não pode ser descartada, mas esse modelo sozinho não vai nos levar a lugar nenhum. Precisamos mesclá-la, cada vez mais, com práticas de democracia participativa. É nisso que acredito.
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