Autor: D. ESTEVÃO BETTENCOURT, OSB
Enquanto as disputas teológicas no Oriente versavam principalmente sobre Deus e Jesus Cristo, envolvendo problemas altamente especulativos, no Ocidente o debate teológico se voltou mais para questões de ordem prática, abordando especialmente o binômio “santidade e pecado” na Igreja. – Examinaremos, a seguir, três controvérsias que, em última análise, desenvolveram essa temática.
O Re-batismo
À medida que se foram registrando heresias e cismas entre os cristãos, foi-se colocando uma questão nova: o Batismo ministrado por um herege é válido? Se o herege quer converter-se à Igreja Católica, deve ser batizado de novo? Essas perguntas suscitaram respostas contraditórias. A Igreja em Roma seguia a tradição antiga, admitindo a validade do Batismo conferido pelos hereges, pois se dizia, com razão, que é Cristo quem batiza, servindo-se do ministério dos homens. Na África do Norte, porém, a tendência era contrária: em Cartago, o escritor Tertuliano († após 220), homem de retórica e projeção, escreveu o opúsculo “Sobre o Batismo” (em grego e em latim), que rejeitava a validade do Batismo conferido pelos hereges. Três Sínodos, um em Cartago (220) e dois na Ásia Menor (230), adotaram tal sentença, a qual passou a ser observada na prática de muitas dioceses (era o re-batismo). A situação se tornou mais grave quando o bispo S. Cipriano em 255-6 passou a apoiar a sentença e a praxe do re-batismo. Tal posição era fortalecida pelo fato de que os hereges montanistas batizavam “em nome do Pai, do Filho e de Montano ou de Priscila (fundadores da corrente montanista)”. Tal Batismo era evidentemente inválido, pois não observava a fórmula ensinada pelo Senhor Jesus (cf. Mt 28,18-20); se, porém, o batismo dos montanistas era inválido, parecia a muitos cristãos que o batismo de qualquer facção herética devia ser igualmente tido como inválido. Em Roma o Papa S. Estevão opôs-se ao costume do re-batismo, ameaçando de excomunhão os cristãos da África do Norte, caso insistissem em re-batizar os hereges batizados fora da Igreja Católica; apenas se deveria exigir que tivessem penitência para entrarem em comunhão com a Igreja Católica. Dizia textualmente o Papa uma frase que ficou célebre: “Se os hereges vêm a nós, qualquer que seja a sua seita, nada se inove, mas siga-se a Tradição, impondo-lhes as mãos para que façam penitência” (o Papa supunha naturalmente o Batismo conferido segundo a fórmula do Evangelho). O mesmo Pontífice enviou semelhantes determinações aos bispos da Ásia Menor que re-batizavam; em 256, informado de que 87 bispos reunidos em Sínodo haviam reafirmado a necessidade do re-batismo, o Papa os excomungou (não se sabe, porém, se tais bispos tinham recebido previamente as instruções de Estêvão I)
Em conseqüência, a tensão foi assaz forte entre Roma e os bispos da parte oposta. Não tardou, porém, a se amainar, pois morreram mártires Estêvão em 257 e Cipriano em 258. O sucessor de Estêvão I, o Papa Sixto II, aparece em comunhão com os bispos do Norte da África, o que significa que atenderam às disposições de Santa Sé. Houve, porém, casos de re-batismo até o século IV, como atesta o Concílio de Arles em 314. A questão tinha um fundo teológico e não meramente disciplinar. Tertuliano e os cristãos da África tendiam a restringir a Igreja aos santos, de modo que só seriam válidos os sacramentos ministrados por pessoas ortodoxas e de reta conduta de vida; por conseguinte, quem estivesse fora de Igreja ou em pecado mortal não poderia validamente batizar. A concepção eclesiológica de Roma era outra: a Igreja consta de santos e pecadores, pois o Senhor mesmo insinuou que nela o joio e o trigo devem permanecer até o fim dos tempos (cf. Mt 13,24-30); na Igreja quem ministra os sacramentos é o próprio Cristo, que se serve dos homens como instrumentos seus; por isto o batismo conferido por um ministro validamente ordenado que tenha a intenção de fazer o que Cristo faz, é sempre válido. Tal é a concepção até hoje vigente na Igreja Católica. Como se vê os africanos insistiam mais no elemento pessoal, ético e subjetivo da administração dos sacramentos, ao passo que Roma considerava mais o aspecto objetivo da mesma. Este se tornaria mais claro ainda nos tempos de S. Agostinho.
As controvérsias penitenciais
A Igreja antiga tinha viva consciência de que os cristãos deviam dar o testemunho de uma vida pura. Esta consciência se manifestou de maneira extremamente rigorista em alguns momentos da história:
Até o século VI só era concedido uma vez na vida o Sacramento da Reconciliação. Os bispos julgavam que quem precisasse de mais de uma Penitência sacramental, não estava interiormente disposto a recebê-la; tal pecador era confiado diretamente à misericórdia de Deus. Tertuliano († após 220) parece ter sido o primeiro a falar de pecados irremissíveis, que seriam a apostasia, o homicídio e o adultério. O Papa Calixto I (217-220), porém, concedia reconciliação a todo pecador que fizesse a devida penitência. Esta praxe foi confirmada pelos sínodos de Roma e de Cartago sob o Papa Cornélio (251-253). Contra este levantou-se então o presbítero Novaciano, que abriu um cisma, encabeçando uma facção de caráter rigorista: Novaciano negava a reconciliação aos apóstatas mesmo em perigo de morte; estendeu esta severidade aos dois outros pecados ditos capitais na época (homicídio e adultério). Queria constituir uma Igreja de puros e santos; por isto rebatizava os católicos que entrassem nas suas fileiras. Em 251 um Sínodo de Roma, reunindo 60 bispos, excomungou Novaciano e seus seguidores. S. Cipriano de Cartago e Dionísio de Alexandria se lhes opuseram. Apesar disto, a facção novaciana se difundiu largamente, encontrando eco especial no Oriente. Em Cartago deu-se o movimento laxista, chefiado pelo presbítero Novato e pelo diácono Felicíssimo. Pleiteavam a reconciliação dos apóstatas sem a penitência sacramental, desde que fossem recomendados por confessores da fé, isto é, por cristãos que houvessem padecido por causa da fé sem chegar à morte do martírio. S. Cipriano manteve-se firme à disciplina da Igreja, que readmitia, sim, os apóstatas, mas após a prestação da devida penitência sacramental.
Os Donatistas
As controvérsias sobre o batismo dos hereges prolongaram-se na história do Donatismo. Este reavivou a questão: a eficácia dos sacramentos depende da santidade do respectivo ministro ou é algo de objetivo, garantido pelo sacerdócio do próprio Cristo? A problemática donatista teve origem com a morte do bispo Mensúrio de Cartago (311). Foi eleito em seu lugar Ceciliano; este, porém, tinha opositores, pois na perseguição de Diocleciano (284-305) se opusera a uma equívoca veneração e a exagerada exaltação dos confessores da fé18. Espalharam então o rumor de que os bispos sagrantes de Ceciliano, Felix de Aptunga, Fausto de Tuburbo e Novelo de Tyzica foram traidores, isto é, tinham entregue os livros sagrados aos perseguidores; em tais condições, diziam os adversários de Ceciliano, Felix, Fausto e Novelo não podiam ter ordenado validamente o novo bispo de Cartago. Diante dos rumores, 70 bispos da Numídia (Norte da África) se reuniram em Cartago e elegeram o antibispo Majorino, ao qual sucedeu em 315 Donato o Grande. Estava aberto o cisma donatista. A expansão do cisma provocou a intervenção do Imperador Constantino. Este mandou examinar as acusações proferidas contra Ceciliano: um sínodo, presidido em Roma pelo Papa Milcíades (313), reconheceu a legitimidade do bispo Ceciliano e rejeitou os donatistas. Estes não se davam por vencidos. Por isto Constantino convocou em 314 um Sínodo Geral do Ocidente, que, reunido em Arles (França), confirmou a sentença de Roma e acrescentou explicitamente que a ordenação conferida por um bispo traidor é válida; além do que, reprovou o uso, de cristãos da África, de rebatizar quem tivesse sido batizado por hereges. Visto que os donatistas não se rendiam, Constantino mandou, para o exílio os chefes da facção e tirou-lhes as igrejas. Todavia estas medidas só surtiram acréscimo de fanatismo. Os donatistas puseram-se a questionar o direito, do Estado, de intervir em questões da Igreja; retomando o conceito novaciano, declararam ser “a Igreja imaculada dos mártires”, em oposição à Igreja “contaminada por traidores” (os católicos),somente na facção donatista seriam ministrados validamente os sacramentos; por isto também rebatizavam todos os que se lhes agregassem. O número de donatistas foi aumentando a tal ponto que em 336 puderam celebrar um Sínodo em Cartago com 270 bispos. O Imperador Juliano (361-363), desejando restaurar a cultura pagã no Império, praticou uma política simpática aos donatistas. Estes, em parte, se aliaram a grupos fanáticos, chamados “dos circunceliões” (porque cercavam as habitações dos camponeses); praticavam a pilhagem e outros delitos nas regiões campestres. Finalmente dois grandes bispos se puseram a combater o donatismo no campo doutrinário: eram Optato de Milevo (que expôs as origens e a história do cisma no De schismate Donatistarum) e principalmente S. Agostinho de Hipona, que a partir de 393 foi escrevendo seus tratados teológicos contra os donatistas, a respeito de Igreja e da eficácia dos sacramentos. Os bispos católicos em 404 pediram ao imperador Honório que aplicasse aos donatistas as leis do Estado referentes aos hereges – o que de fato aconteceu. S. Agostinho, diante de tal procedimento, foi mudando de alvitre: a princípio era contrário à intervenção do Estado em questões de doutrina e disciplina da Igreja; depois, passou a aceitá-la, apoiando-se no texto do Evangelho de Cl 14,23 (“obriga a entrar”); o Estado teria a obrigação de proteger a Igreja, mesmo aplicando medidas coercitivas com exclusão da pena de morte. Es palavras do S. Doutor escritas ao donatista Vicente: “Outrora era eu de opinião de que ninguém deve ser coagido à unidade do Cristo; dever-se-ia recorrer à palavra, combater mediante discussão e vencer pela razão; caso contrário, teríamos entre nós falsos católicos, em vez de ter contra nós hereges confessos. Tal era minha convicção. Ela teve de se dobrar diante da reflexão de meus contraditores; não diante das palavras deles, mas diante dos fatos que eles citavam. Primeiramente, apontavam-me a história da minha cidade natal, Talaste, que outrora pertenceu toda ao partido de Donato, e que fora de novo levada à unidade católica por força das leis imperiais; agora Talaste é tão alheia ao vosso partido de ódio e de morte que ela parece ter sido sempre estranha a vós. Citavam-me também o exemplo de muitas outras cidades, cuja história me era contada” (epíst. XCIII 5,17). Ademais as violentas incursões e os atentados dos donatistas pareciam a S. Agostinho exigir a intervenção do Imperador. Esta atitude de S. Agostinho há de ser entendida no seu respectivo contexto histórico: os donatistas eram os primeiros a apelar para a autoridade imperial. Em nenhuma de suas outras polêmicas Agostinho pleiteou o apoio do braço civil; em mais de uma passagem de suas obras, o mestre advogou o trato caridoso até dos adversários. Em 411 realizou-se em Cartago uma grande assembléia, da qual participaram 286 bispos católicos e 279 donatistas. Durante três dias os debates não lograram resultado algum, apesar dos esforços de S. Agostinho em prol da reconciliação. O poder civil aplicou suas leis repressivas, que também pouco adiantaram. O DONATISMO só começou a desaparecer do mapa com a invasão dos vândalos do Norte da África a partir de 429; a invasão muçulmana no século VII pôs o termo definitivo à facção de Donato. S. Agostinho, na polêmica antidonatista, teve a ocasião de desenvolver a noção de catolicidade da Igreja; esta, sendo universal, deve compreender bons e maus; o Senhor fará a triagem no fim dos tempos; a seita de Donato jamais se poderia dizer católica.
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