Autor: Cícero Bezerra
“Nossa geração não lamenta tanto os crimes dos perversos quanto o estarrecedor silêncio dos bondosos” . Martin L. King, Jr.
O vírus da violência
Onze horas da manhã. Em um semáforo, num ponto movimentado de uma cidade turística do sul do Brasil, pessoas atravessam a rua, enquanto os carros parados, esperam sua vez de prosseguir. Uma senhora, ao volante, tranqüila, espera o sinal abrir. De repente, ela é surpreendida por um assaltante. Violentamente, de arma em punho, obriga a mulher a entregar a bolsa e, como que surgindo do nada, aparece seu cúmplice numa moto. Eles saem em alta velocidade, ainda apontando a arma para os transeuntes que, estarrecidos, nada podem fazer.
Um amigo meu, que presenciou esse acontecimento, me falou dos sentimentos de revolta, ira e indignação que esse fato lhe causou. Ele sentiu medo, vergonha, revolta, ira; e também frustração, causada por uma sensação de impotência.
O Brasil é, hoje, o quinto país mais violento do planeta — 43 mil homicídios em 2001.[1] A ONU classifica um país como em situação de guerra quando este alcança a taxa de 15 mil homicídios ao ano. Já ultrapassamos esse número há bastante tempo; estamos na marca de 117 homicídios/dia.
A situação da sociedade e as reações de violência
O crime tem sido o vencedor na batalha contra a polícia: marginais fortemente armados contra uma milícia limitada, mal preparada e usando armamentos ultrapassados. Os cidadãos são prisioneiros em suas residências, que foram transformadas em verdadeiras fortalezas: cães ferozes, cerca elétrica, alarmes sofisticados, segurança 24 horas. Mesmo assim, em vários casos, são vencidos pela astúcia e audácia do s bandidos. Andar nas ruas se tornou uma aventura diária (ou seria pesadelo diário?). Em diversas situações o cidadão sai de casa e não tem garantias de que irá voltar. A situação está tão grave que delegacias até as delegacias têm sido assaltadas; ora para libertação de presos , ora para roubo de mercadorias apreendidas, ora pelas duas razões.
Uma das maiores autoridades em criminalística no Brasil disse que, atualmente, sequestros, roubos, assassinatos, estupros, assaltos a residências, etc., passaram a ser crimes banais, e que a segurança pública não consegue combater. Tudo isso tem contribuído para que estejamos vivendo o momento de maior insegurança pelo qual a sociedade brasileira já passou.
E para onde os pastores estão levando a igreja?
Diante dessa situação, gostaria de fazer algumas considerações a respeito do papel ou das responsabilidades da pastoral protestante. Não podemos ser simplistas a ponto de achar que o crente está imune a situações de roubo, sequestro, morte, etc., nem fatalistas e inconsequentes, crendo que a pessoa foi sequestrada, roubada, violentada por ser essa a vontade de Deus.
Primeiro, temos de estar cientes de que os problemas da sociedade são, na sua maioria, resultados de políticas opressoras e escravizadoras, impostas por governos que não levam em conta o indivíduo nem prezam as famílias. Nós, como cristãos, não podemos fechar os olhos a essas situações nem ficar esperando iniciativas políticas. Se acompanharmos a filosofia política mundial, perceberemos que o Estado está se retirando das atividades públicas.
Precisamos articular programas educacionais e de renda mínima, para evitar que os jovens caiam na marginalidade. Temos de criar projetos voltados para os grandes guetos, onde impera a delinquência. Cabe aos líderes de igrejas, pastores e responsáveis por ministérios, pensarem em alternativas comunitárias, educativas e produtivas, para encaminhar pessoas que, naturalmente, têm menos oportunidade do que outras.
A comunidade evangélica, com raríssimas exceções, está alienada, com as portas trancadas. Quando analisamos a proposta evangélica para a atualidade, nos assustamos. Os projetos são “ cultualistas” (tudo gira em torno do culto; se a igreja está cheia aos domingos, os pastores se dão por satisfeitos); “ritualistas” (nos conformamos com o “ritual”, e não enfatizamos a reflexão nem a prática da Palavra de Deus). Construímos um muro altíssimo, às vezes intransponível, entre a igreja e aqueles que precisam de Jesus.
Precisamos desenvolver uma pastoral comunitária, pois os pastores e os líderes cristãos se tornaram gerentes e executivos de igrejas, se esquecendo de sua função principal. Nos gabinetes, eles tentam resolver os problemas numa perspectiva clínica e gerencial. Não seguem o estilo de vida praticado e ensinado pelo apóstolo Paulo, onde se exalta a pessoa de Cristo, anulando a si mesmo. ”Porque não nos pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós mesmos como vossos servos, por amor de Jesus.” (2 Co 4.5,6.)
Também precisamos de uma pastoral de renúncia. Envergonhados, constatamos que muitos ingressam no ministério cristão em busca de uma vida melhor. O desapego aos bens materiais e a disposição de servir são uma raridade. O que vemos é, muitas vezes, uma louca corrida motivada pela vaidade pessoal, e uma busca desenfreada pelo poder.
Pensemos na vida e no ministério de Jesus. Diferentemente dos religiosos de sua época, ele não se conformou com os moldes da religião convencional. Seu ministério não se encaixava na estrutura padronizada dos rabinos do primeiro século. Desde o início, ele se comportou de modo diferente: simplesmente chamou alguns homens para segui-lo. Nada de programas espetaculares ou campanhas grandiosas para atrair multidões. Não apresentou nem mesmo um projeto para abrir uma escola.
Nas Escrituras Sagradas Jesus é o referencial de pastor. E por isso deve ser também o referencial para a igreja cristã que, pressupõe-se, continua a cumprir o propósito de Cristo aqui na terra. Essa vocação apostólico-pastoral é mostrada claramente ao longo do Novo Testamento. A igreja é enviada a buscar, sob a direção do Espirito, as outras ovelhas do aprisco (Jo 10.14-17; 20.21-23; 21.15-17). É constituída para ser o sal da terra e, portanto, enviada a dar sabor e a preservar (Mt 5.13). Também é agente de reconciliação (2 Co 5. 19,20; 6.1), comunidade sacerdotal (Hb 13.15,16; 1Pe 2.5), e profética (1Pe 2.9,10). Foi chamada para ser um testemunho vivo das virtudes de Deus e para comprometer-se com os que sofrem (Tg 1.26,27; Lc 10.25).
Tarefas e modelos pastorais contextualizados e relevantes
A tarefa pastoral não tem dimensão apenas teológica; ela também é política. Em Israel, era o pastor quem tinha a responsabilidade de conduzir o povo. Essa tarefa é eminentemente política. Ou seja, o pastor de Israel não era condenado por ser político e atuar politicamente como pastor mas, sim, por deixar de fazê-lo. Não estamos falando de “ politicagem” (conchavos políticos alinhavados a partir da exploração e do sofrimento do outro), mas de ações que visam articular projetos voltados para a espiritualidade, a educação, a integração familiar, o lazer, o trabalho, a saúde, a segurança, e outros necessários ao contexto comunitário.
A verdade perturbadora sobre os modelos pastorais contemporâneos é que, em grande parte, eles não podem ser reproduzidos. Os homens apresentados nas conferências como aqueles aos quais vale a pena ouvir são pessoas carismáticas, servos altamente dotados (eu lhes desejo o bem!). Contudo seus talentos são naturais e singulares. Seus dons e sua personalidade não podem ser empacotados, colocados numa caixa, embrulhados para presente e entregues. A pastoral precisa ser genuína. Ela é construída a partir do serviço e da comunhão com Deus. No lugar comum da existência humana, o cotidiano passa a ser “educativo” (aprender com as atividades do dia-a-dia).
Precisamos de uma pastoral que faça diferença na comunidade em que estiver inserida. Atualmente o líder sindical, o líder revolucionário do movimento dos sem terra, e o gerente financeiro de um determinado banco, juntamente com outras figuras da sociedade, exercem uma influência social mais objetiva e mais constante do que o pastor.
Podemos constatar que, quando alguém exerce as funções pastorais de maneira bem articulada e inspirada em Jesus, passa a fazer grande diferença na comunidade. Consideremos algumas atividades: participar da associação de moradores do bairro e da APAE, desenvolver programas de atendimento aos idosos, de orientação vocacional para jovens e de distribuição de literatura; visitas aos moradores do bairro, etc.
O pastor tem hoje, diante de si, o grande desafio de não ceder aos encantos da modernidade. Eles não propõem muita novidade; em vez disso, estimulam uma repetição dos modelos tiranos que têm sido desenvolvidos no decorrer da história. A religião é um excelente palco para que indivíduos mal intencionados, com sede de poder, se estabeleçam sobre muitos, em nome de Deus, mas agindo em proveito próprio.
Precisamos de referenciais como o de João Wesley, que no século XVIII foi usado por Deus para proclamar a mensagem da Reforma na Inglaterra. Na ocasião, percebeu-se que o evangelho era o poder de Deus para libertar o povo inglês, dentre outros pecados, da opressão e da escravidão. Inspirado no poder e no evangelho do reino de Deus, Wesley confrontou principados e potestades da economia, da política e da religião. Ele os enfrentou com a força vinda de Deus, o qual não deseja que nenhum dos seus pereça. A obra de João Wesley teve grande repercussão junto ao povo oprimido e empobrecido. Esse é um modelo pastoral a ser seguido: interagir na sociedade, obedecendo às ordenanças de Deus, para fazer diferença apresentando um evangelho orientador, libertador, e gerador de esperança.
Conclusão
A violência nas grandes cidades, os problemas familiares, a corrupção dos políticos, o desemprego, o desapego à vida, as drogas, a prostituição, o analfabetismo, a pedofilia, e o abuso sexual são temas aos quais a igreja não pode fechar os olhos. Como vimos no decorrer deste texto, as iniciativas devem surgir a partir de uma pastoral contextualizada, que participe da comunidade articulando projetos em favor do povo, e levando o evangelho de Jesus Cristo de forma integral. “O Evangelho todo, para o ser humano todo, a todo tempo.”
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