Autor: Braulia Ribeiro
Entramos na sala de espera depois de atravessar uma porta pesadíssima de madeira com ferrolhos do século passado. Tudo simples, paredes caiadas, mas com aquele quê de arquitetura barrôca, aquele lastro de arte pré-renascentista, gótica, neo-clássica, e por aí vai, ao qual não estamos acostumados em nossa artisticamente pobre cultura protestante.
Sentamos num sofá grande puído pelos muitos traseiros que se sentaram ali na mesma expectativa. Como seria o dom? Seria um dom ou um Dom? Fui católica na infância, era freqüentadora de missas por imposição da minha mãe, fiz catecismo com as freirinhas. E minha sensação era sempre a mesma, seja na igreja simples que o padre construiu no bairro de favela onde morávamos, com um cristo negro meio tosco que nos olhava de uma cruz na lateral da nave, ou no convento onde ia para o catecismo, com as casinhas das freiras no fundo, a sala de catecismo nua. Minha sensação sempre era a de estar em um lugar onde na verdade não deveria estar. Era a de estar xeretando nos afazeres de um Deus que não me conhecia e não me queria por perto, mas que era íntimo dos padres belgas e de suas freiras de mãos frias.
As secretárias na sala vizinha conversavam sem parar conversas frívolas num burburinho que não combinava com o clima meditativo em que eu queria estar. Afinal iríamos falar com o Dom, rompendo uma barreira de quase quinhentos anos desde a reforma protestante, tentando construir uma ponte sobre as ruínas há muito desaparecidas, achando pontos de referência comuns entre as estranhezas dos dois mundos. As secretárias no entanto, totalmente indiferentes se atarefavam com rotinas, água mineral que se acabou copo descartável em falta, esperadores de dom que entravam e saíam.
Tentei ler alguma das muitas revistas espalhadas na mesinha de frente ao sofá. Algumas “normais”, Istoé, Época, Caras não, graças a Deus, o que me deu uma sensação de respeito maior ainda pelo Dom. Não tem Caras na sala de espera dele não, já era um elogio que eu podia espalhar por aí. Tinha também Porantim, um jornal favorável à causa indígena publicado pelo CIMI, braço católico missionário entre os índios, jesuítas extemporâneos, que lutam politicamente mas são contra a evangelização. Meu marido me cobrou logo: -Não vai ler o Porantim não? Nossa obrigação de militantes da causa nos obriga a isto, mas eu já tinha folheado, e visto que aquela manhã eu não estava muito indígena, queria mais era ver o dom.
Me agarrei numa Época, entrando bem dentro dela, de medo de que chegasse a nossa vez. O sofá de couro envelhecido, e a imagem de São Cristóvão na frente não me incomodavam. O que diríamos ao Dom? O que estávamos fazendo ali? Será que iríamos com uma visita desfazer todo o trabalho de Lutero, manchando com uma aliança espúria o trabalho de tantos homens de Deus e o sangue de tantos mártires? Eu me senti querendo correr dali e do Dom. Estou me tornando ecumênica? Uma visita como esta vai me ligar irremediavelmente à idolatria de uma maneira que demônios idólatras me perseguirão, tornarão meu evangelho impuro e meu Jesus incapaz de salvar curar e libertar?
Ai, ai, vai chegar nossa vez, a Época velha está muito interessante, esta eu não li, não sabia que esta modelo estava de caso com aquele ator, nem que o político fulano que hoje tem uma aliança com aquele outro, antes espinafrava tanto o coitado.
A mulher de verde se aproximou, e nos adivinhando tomados dum pânico mudo disse: – “Olha era a minha vez agora, mas eu passo pra vocês.” –Obrigado”, dissemos ao mesmo tempo. Aí passou o Dom cruzando o corredor, e sabíamos que na volta ele nos chamaria. Chegou mais um homem todo sujo, sentou-se e tinha um rosto de quem não iria ficar esperando a sua vez como qualquer pessoa comportada. Me inquietei com aquilo. Só falta esta agora, este cara só porquê é mendigo tem o rei na barriga, afinal não sou daqui, mas não sou capacho, ele que espere sua vez como todo mundo.
Aí veio o Dom chamando os que estavam na vez. O homem recém-chegado se levantou e começou a falar sem parar, meio gago, sobre uns negócios que estava fazendo, e de como a vida estava dando certo para ele. O dom prestou atenção, lhe ouviu ali mesmo na sala de espera, tratando-o pelo nome, dizendo que bom, depois você vem me contar melhor. Não pareceu irritado, nem com pressa. Tratou-o como um bom camarada, mas também não nos deixou esperando. Nos encaminhou para seu escritório.
Chegou rindo falando sobre o rapaz, de como ele sempre ia ali todo dia falar de sua vida. Sentamos e a conversa fluiu. Falamos da barreira que nos separa, e de como que apesar de todas nossas diferenças ainda cremos no mesmo Deus. Falamos de como estamos convictos de que uma ponte tem que ser construída e de que o Espírito Santo vai andar por ela. O Dom, com olhos cansados nos ouvia admirado como se não esperasse nunca um reconhecimento deste de nossa parte.
Aí abriu a boca e foi falando também de como vê a igreja como responsável pela sociedade e de como juntos podemos fazer muita coisa para transformá-la. Falou de muitos evangélicos com uma propriedade e um respeito que nós mesmos não temos uns pelos outros, e no final olhou sua agenda para marcar um segundo encontro. A agendinha marcada a lápis estava cheia de ações pela sociedade, gritos dos excluídos, campanhas de moralização do poder político… O governador tinha ido lá no dia anterior para pedir sua intermediação num problema que envolvia a população indígena e a construção de uma represa que estava secando os rios da reserva e deixando os índios com fome. Com um sorriso triste ele nos contou que o governador tentou lhe vender a idéia de que as represas não causam tanto dano ambiental assim, mas ele o dom, e nós também, sabíamos que causava. Neste momento, nós três respiramos fundo, num respiro assim de quem não é deste mundo e que quer ir logo pro céu porque não agüenta mais tanta injustiça.
Pensei na agenda de muitos pastores que conheço. Culto disto, culto daquilo, como se a igreja vivesse fora da terra numa bolha religiosa. O que eles teriam pra falar com o governador?
O Dom continuou a dizer que queria se encontrar conosco mas que com a agenda deste jeito estava difícil. Disse com voz embargada que se fôssemos fazer algum ato público de pedido de perdão, e esta proposta era o motivo principal de nossa visita, ele também pediria perdão em nome de toda a intolerância e indisposição da Igreja Católica de tratar com seu braço amputado há 486 anos atrás…
Naquela hora acreditei que existe uma reconciliação possível. Acreditei que o Corpo é um, e que um dia cada um vai prestar conta de suas próprias idolatrias. Para alguns de nós, o dinheiro, grandes templos, nomes, títulos. Para outros imagens, Marias, santos de todos os nomes e cores. Ambos idólatras.
Saímos apertando a mão sólida do dom, que nesta hora não foi o Dom, mas um dom de Deus do Espírito Santo, um dom humilde e honesto como qualquer Maria e José que conhecemos. E cremos juntos ali que, quem sabe, com fé nossa luta para implantar o reino d´Ele na terra será ainda mais intensa e vitoriosa se nos respeitarmos.
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