Autor: Josivaldo de França Pereira
“E será pregado este evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as nações. Então, virá o fim” (Mt 24.14)
1. Missio Dei: o termo e seu significado
Em um trabalho lido na Conferência Missionária de Brandemburgo, na Alemanha, em 1932, Karl Barth tornou-se um dos primeiros teólogos a articular a missão como atividade de Deus mesmo. Do início ao fim da conferência a influência de Barth foi crucial. O influxo de Barth no pensamento missionário atingiria seu auge na Conferência de Willingen em 1952. Em Willingen reviveu um antigo termo (que veio dos tempos da patrística [séculos II-V] com as famosas discussões trinitárias): Missio Dei. Foi lá que a idéia da missio Dei emergiu, pela primeira vez, de maneira clara. Compreendeu-se a missão como derivada da própria natureza de Deus. Ela foi colocada, pois, no contexto da doutrina da Trindade, não da eclesiologia ou da soteriologia.
Outro nome que se destacou na Conferência de Willingen foi o de George Vicedom, autor da famosa obra Missio Dei: An Introduction to the Science of Mission. A ênfase de Vicedom foi: “Deus é o sujeito ativo da missão. Deus o Pai enviou o Seu Filho, e ambos enviaram o Espírito Santo. A Trindade envia a igreja e os crentes em particular, para cumprir a tarefa da Grande Comissão”. Ou seja, Pai, Filho e o Espírito Santo enviando a igreja para dentro do mundo.
Na Conferência de Willingen reconheceu-se que a igreja não poderia ser nem o ponto de partida nem o alvo da missão. A obra salvífica de Deus precede tanto a igreja quanto a missão. Não se deveria subordinar a missão à igreja e, tampouco, a igreja à missão; pelo contrário, ambas deveriam ser inseridas na missio Dei, que se tornou então o conceito abrangente. A missio Dei (missão de Deus) institui as missiones ecclesiae (missões da igreja). A igreja deixa de ser a remetente para ser a remetida.
Em tempos mais recentes temos o sul-africano David Bosch como um dos principais expositores da missio Dei. Bosch morreu em 1992 num acidente de carro na África do Sul aos 62 anos de idade. Sua magnum opus “Transforming Mission: Pradigm Shifts in Theology of Mission” apresenta a missio Dei como tema dominante.
A missão não é primordialmente uma atividade da igreja, mas um atributo de Deus. Deus é um Deus missionário. Compreende-se a missão, desse modo, como um movimento de Deus em direção ao mundo; a igreja é vista como um instrumento para essa missão. “Participar da missão é participar do movimento de amor de Deus para com as pessoas, visto que Deus é uma fonte de amor que envia” (Bosch).
Nossa missão não tem vida própria: só nas mãos do Deus que envia pode-se denominá-la verdadeiramente de missão. Nossas atividades missionárias só são autênticas na medida em que refletirem a participação na missão de Deus. A missio Dei é atividade de Deus, a qual abarca tanto a igreja quanto o mundo e na qual a igreja tem o privilégio de poder participar.
2. Mateus 24.14 e a missio Dei
O que temos em Mateus 24.14 é uma promessa? Na verdade há nessa passagem bíblica muito mais que promessa. As promessas normalmente vêm acompanhadas da condicional “se”. Por exemplo: As promessas das bênçãos decorrentes da obediência e dos castigos da desobediência de Israel em Levítico 26 estão todas condicionadas. Disse Deus: “Se andares nos meus estatutos, guardardes os meus mandamentos e os cumprirdes, então, eu vos darei as vossas chuvas a seu tempo; e a terra dará a sua messe, e árvore do campo, o seu fruto” (vv3,4). “Mas, se não ouvirdes e não cumprirdes todos estes mandamentos”, etc. (v14). “Mas, se confessarem a sua iniqüidade e a iniqüidade de seus pais, na infidelidade que cometeram contra mim, como também confessarem que andaram contrariamente para comigo”, etc. (v40). Bem mais adiante Deus diria a Salomão: “Se andares nos meus caminhos e guardares os meus estatutos e os meus mandamentos, como andou Davi, teu pai, prolongarei os teus dias” (1Rs 3.14).
O que temos em Mateus 24.14 é uma profecia preditiva. Jesus profetizou que o Seu evangelho será pregado por todo o mundo. E Ele disse isso quando tinha apenas doze frágeis discípulos. Ele sabia que um deles iria traí-lo, que outro iria negá-lo e que no Getsêmani todos fugiriam de medo. Como era possível Jesus fazer uma predição dessa natureza diante de tais circunstâncias? É porque Ele é o Deus da verdade e tem poder para cumprir todas as coisas (cf. Jo 14.6; Mt 28.18).
A profecia de Mateus 24.14 não está condicionada à vontade humana. Sendo assim, não tem sentido a pergunta que às vezes se faz: “Então, se não pregarmos o evangelho Cristo não voltará?”. A vinda de Cristo não está condicionada a nossa boa ou má vontade em se pregar o evangelho. Cristo virá depois que o evangelho for pregado a todas as nações porque Ele disse que assim será. Ele não virá independente do evangelho ser pregado primeiro (cf. Mc 13.10). O evangelho será pregado no mundo todo para testemunho a todas as nações, e então virá o fim.
Com freqüência pregadores bem intencionados usam Mateus 24.14 para apelos do tipo “você pode estar retardando a vinda de Cristo por não pregar o evangelho ao seu vizinho, aos seus amigos, a uma tribo não-alcançada”, etc. Desse modo, acabam descambando para a chantagem emocional, além de semearem mais confusão teológica do que motivações evangelística e missionária. É verdade que em 2Pe 3.11,12 está escrito: “Visto que todas essas cousas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus…”; mas qual o significado da expressão “apressando a vinda do Dia de Deus” nessa passagem? Naturalmente que por “Dia de Deus” Pedro se refere ao Dia do Senhor; a parousia de Cristo (cf. 2Pe 3.10). Quanto ao termo “apressando”, o comentário que Russell Champlin faz desse texto parece ser bastante esclarecedor. Diz ele que 1) Alguns eruditos assumem a idéia de que podemos “literalmente apressar” a vinda do citado dia, mediante o evangelismo. Dificilmente esse é o sentido dessa palavra, embora, isoladamente, ela pudesse ter tal significado. 2) Outros pensam que a idéia aqui é a de “desejar anelantemente”. Esse é um significado legítimo do vocábulo grego, mui provavelmente o sentido tencionado pelo autor sagrado. A tradução do texto grego de Champlin de 2Pe 3.12 é: “desejando ardentemente a vinda do dia de Deus”.
3. A responsabilidade missionária da igreja
Depois da Conferência Mundial de Willingen (e mesmo em Willingen, no relatório americano), o conceito de missio Dei sofreu uma modificação gradual. No estágio dos relatórios preparatórios sempre se referia à divisa “God’s Mission, Not Ours” (A Missão de Deus, Não a Nossa). As pessoas que apoiavam uma compreensão mais ampla do conceito tenderam a radicalizar o ponto de vista de que a missio Dei era maior que a missão da igreja, mesmo a ponto de sugerir que ela excluía o envolvimento da igreja. Aparentemente, a igreja se tornou desnecessária para a missio Dei: “Nós não podemos ‘articular’ a Deus. Em última análise, ‘missio Dei’ significa que Deus articula a si mesmo, sem necessidade alguma de que o auxiliemos nesse sentido através de nossos esforços missionários”; e “Deus não tem qualquer necessidade da contribuição missionária dos cristãos”.
É claro que nem a igreja; nem qualquer outro agente humano pode, alguma vez, ser considerado o autor ou a origem da missão. A missio Dei é uma obra exclusiva do Deus Triúno, Criador, Redentor e Santificador por amor ao mundo; porém, é através da igreja que Deus operacionaliza Sua missão de amor ao mundo. A missio Dei não anula a responsabilidade da igreja na evangelização do mundo. Muito pelo contrário. A missio Dei exige as missiones ecclesiae. A profecia de Mateus 24.14 não exclui a igreja. Jesus conta com homens e mulheres que o amam para serem testemunhas dEle a todos os povos através dos tempos. Esse é um ministério do qual a igreja tem o privilégio de poder participar.
Muitas vezes dizemos que “amamos ao Senhor” e que “Ele é tudo de bom que nós temos”. “Nós o amamos e por Ele entregamos a nossa vida”, é o que dizemos também. Entretanto, existe algo no coração de Deus que nem sempre está no coração dos filhos de Deus: a paixão pelos perdidos. Às vezes nós, pastores e líderes, temos dificuldade para inculcar em alguns a coisa mais natural da vida cristã: Missões.
O coração de Deus é um coração missionário. A obra missionária está no coração de Deus. Está no seu? “Deus tinha um único Filho e fez dele um missionário”, disse David Livingstone. Jesus teve seus seguidores e fez deles missionários. A igreja do Senhor foi edificada com o propósito de proclamar as virtudes daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (cf. 1Pe 2.9). Por que somos tão egoístas? Por que pensamos tanto em nós mesmos? Não basta dizer (como algumas vezes temos ouvido): “Eu não tenho nada contra missões”. É preciso envolvimento e compromisso com a obra do Senhor. Precisamos amar o trabalho missionário. Existem missões porque Deus ama as pessoas. Temos que gostar do que Deus gosta e amar o que Deus ama. Missões não é um dom, é uma responsabilidade em amor da qual você e eu não podemos ficar fora dela.
A questão principal “Não é se eu impeço ou não a volta de Cristo, mas se Ele vai me achar envolvido com a tarefa missionária quando Ele voltar para recolher os Seus. Não é o orgulho de ser indispensável para o plano de Deus, mas a percepção humilhante de que Deus tem outros instrumentos disponíveis mas escolheu me dar a oportunidade de ser útil em Sua seara” (C. Osvaldo Pinto).
Soli Dei Gloria.
O autor é pastor da IPB em Bragança Paulista.
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