Livros históricos do Antigo Testamento

Autor: Father Alexander

Introdução

Entre os vários gêneros literários da Bíblia, a história, por sua extensão, ocupa o primeiro lugar. Esse fato já prova quanto a história fosse cultivada pelo antigo povo de Israel. O fato é confirmado pelas fontes de que logo falaremos. E comparando, sob esse aspecto, a Bíblia com a literatura dos demais povos do Oriente antigo, notaremos o lugar preeminente e singular que cabe aos Livros Sagrados. A abundante literatura histórica que os egípcios e os assírio-babilônios, os dois povos mais poderosos e evoluídos da Antigüidade, nos transmitiram, consiste quase toda em documentos, tais como as inscrições dos soberanos, onde se narram com intenção e estilo laudatórios, as façanhas dos mesmos. Mais tarde, entre os babilônicos, surge o gênero, menos oficial e mais literário, da crônica que registra, ano por ano, os acontecimentos mais importantes. Nenhum povo, porém, nos legou, como os israelitas, uma série de escritos que, reunidos, formam como que uma história nacional desde as origens até os tempos do cristianismo; tampouco quadros históricos de períodos particulares comparáveis aos dos Juízes e de Samuel.

Rigorosamente falando, devia figurar entre os livros históricos grande parte do Pentateuco, assinaladamente o Gênesis; estas partes, porém, devido à sua estreita relação com a legislação mosaica, formam um só corpo com o nome de lei.

Os escritos históricos da Bíblia propriamente ditos Livros históricos, pela matéria e pelos caracteres internos, são divididos em três categorias:

1° Josué, Juízes, Rute, Samuel e Reis relatam a história do povo de Israel desde a conquista da Palestina até o exílio na Babilônia (586 a.C.);

2° as Crônicas e Esdras-Neemias retomam essa mesma história sob pontos de vista particulares desde o reino de Davi (as idades precedentes, desde as origens do homem, estão, como que resumidas, no princípio 1Crôn 1-9 em tábuas genealógicas) até à formação da sociedade judaica depois do retorno do exílio (cerca de 430 a.C.);

3° os livros de Tobias, Judite e Ester ilustram alguns episódios notáveis dos últimos séculos (VII-V a.C.), nos dois livros dos Macabeus narra-se a resistência dos judeus contra o jugo dos selêucidas e a reconquista da soberania política (séc. II a.C.).

A série dos livros históricos Josué-Reis, considerados como grupo autônomo, os hebreus chamam-nos “Profetas anteriores,” formando com os “Profetas posteriores” (Isaías, Jeremias, Ezequiel e os Doze menores) a segunda classe (“os Profetas”) da sua Bíblia tripartida. Os livros históricos contidos na série Crônicas-Macabeus recebem apreciações diversas dos hebreus. A maioria deles admitem no seu cânone as Crônicas, Esdras-Neemias e Ester, mas colocam-nos, com os restantes Livros Sagrados, na terceira classe dos “Escritos.”

Essa divisão é antiga (atesta-a já S. Jerônimo no “Prólogo Galeato” ou prefacio a sua tradução de Samuel e Reis), não, porém, primitiva. Nos manuscritos da antiquíssima tradução grega dos LXX, e nas listas (cânones) das igrejas ou escritores cristãos, os livros das Crônicas e, com diferença de ordem, os outros, são anexados aos precedentes Reis com o título comum de “histórias.” Os dois dos Macabeus nas Bíblias latinas apareciam habitualmente no fim do Antigo Testamento, mas a conveniência da matéria e razões práticas persuadem-nos, seguindo, além disso, o exemplo de tradutores modernos católicos, a não separá-los do grupo dos outros livros de caráter narrativo, e o leitor os encontrará, quase em ordem cronológica, depois de Judite.

Quase todos os livros históricos da Bíblia indicam, ainda que parcamente, uma ou mais fontes escritas donde tiraram o material e às quais remetem o leitor para maiores e mais amplas informações (Núm 21:14 o livro das batalhas do Senhor; ib., 27 os poetas). Tornam-se mais freqüentes nos livros seguintes, especialmente nos Reis e Crônicas. Desde os primeiros tempos da monarquia (2Sam 8:16), entre outros oficiais do rei encontramos um “monitor” ou “chanceler” encarregado de registrar os acontecimentos do reino (cf. 1Rs 11:41). Daí o encontrarem-se freqüentemente alusões a tais memórias dos reis de Judá e de Israel desde 1Rs 14:19-29 até 2Rs 24:5. O autor das Crônicas cita escritos de vários profetas: Samuel, Natan, Gad (1 Crôn 29:29), Ala, Ado (2 Crôn 9:29), Semeia, Jeú, Hozai (ib.,12:15; 20:34;33:19). O primeiro deles provavelmente é o livro canônico de Samuel; os outros se perderam, excetuando-se, talvez, alguma parte incorporada aos livros canônicos dos Reis.

Comparando-se as passagens paralelas dos livros das Crônicas e dos Reis -quer os Reis tenham servido de fonte ao redator das Crônicas ou quer ambos haurissem duma fonte comum – observamos que a fonte geralmente é transcrita literalmente conforme os hábitos da historiografia semítica, numa época que não conhecia os direitos de propriedade literária. Nesse caso, o autor sagrado, apropriando-se das palavras da fonte, torna-as expressão do seu próprio pensamento e, através do carisma da inspiração divina, que não se opõe ao uso de fontes profanas, imprime-lhe o selo da sua infalibilidade.

Pode acontecer que o autor sagrado julgue útil citar um documento como notícia interessante deixando, porém, quanto à exatidão dos fatos, a responsabilidade pela afirmação ao autor primitivo. Isto pode-se sempre admitir no caso de citação explicita, isto é, com a expressa designação da fonte, como nas cartas citadas em Esdras 4,7-16; 1 Mac 12:5-23; 2 Mac 11:16-38. Não havendo indicação da fonte, e, portanto, quando a citação é implícita, requer-se maior circunspecção.

Para apreciar devidamente os livros históricos do Antigo Testamento é mister levar em conta a finalidade dos autores sagrados, bem como o espírito que os animava ao escreverem seus livros. Os escritores bíblicos não pretendem escrever história propriamente dita, nem narrar para satisfazer a sede de saber. Eles querem evidenciar a mão de Deus no dirigir a sociedade humana segundo as altas finalidades de sua Providência, especialmente de acordo com a religião e com a salvação do gênero humano. A sua historiografia é religiosa e não profana. Daí a escolha, sensível de modo especial, nos livros dos Reis e das Crônicas, de poucos fatos dentre a enorme quantidade de acontecimentos que, mesmo limitando-se à Palestina, decorreram nos largos tempos abrangidos pela sua narrativa; enquanto se atribui um papel importante aos profetas, ministros e porta-vozes de Deus, junto do seu povo, Segue-se que não devemos esperar dos hagiógrafos um quadro completo da sociedade israelita da época. Apesar disso oferecem sempre excelente material para a reconstrução da história profana, completando os dados transmitidos pelos documentos extra-bíblicos, principalmente as inscrições cuneiformes dos reis assírios e babilônicos, onde se registram muitos fatos e personagens dos livros dos Reis.

Josué

O livro de Josué toma o nome do protagonista dos fatos nele contidos. Moisés, libertando o povo da escravidão dos egípcios, organizou-o na península do Sinai e o conduziu até às margens do Jordão. Para continuar a mesma missão de Moisés, sucede-lhe Josué. Tinha na sua frente duas tarefas: ocupar a terra de Canaã ou Terra Prometida, expulsando os antigos habitantes, e dividir, o país entre as várias tribos de Israel. O livro de Josué é a narração, ora pormenorizada e viva, ora esquematizada, desta grande empresa. Daí a divisão lógica do livro em duas partes: ocupação da Terra Prometida e sua partilha; segue-se um apêndice sobre os últimos fatos de Josué.

Os fatos aqui resumidos abrangem um período de cerca de 30 anos, como se pode inferir de dois indícios oferecidos pelo próprio livro. Josué, sendo quase da mesma idade de Caleb (Núm 13:6-8;14:6-38), tinha, no tempo do Êxodo, aproximadamente 40 anos (Jos 14:7); morreu com 110 anos. Tendo em conta os 40 anos passados no deserto, resulta que empreendeu a ocupação da Palestina aos 80 anos, sobrevivendo mais trinta.

Cronologicamente, esses 30 anos coincidiram com a época de ‘el-Amarna se, conforme alguns, colocarmos o Êxodo no reinado de Amenófis II; se, conforme outros, o colocarmos no de Menefta, então coincidiram com o fim do reinado de Ramsés III (1198-1167) e de seus fracos sucessores. Duas indicações do próprio livro de Josué estariam a favor dessa data: não existe indício algum duma dominação dos egípcios na Palestina; pelo contrário, encontramos firmemente estabelecidos e fortalecidos os filisteus (13:2-3), dois fatos explicados pela decadência do Egito sob a dinastia (XX) dos Ramésidas.

O relato do glorioso passado visa à uma dupla finalidade: evidenciar a fidelidade divina no cumprimento das suas promessas (vide 21:43) e agir sobre o povo como um estímulo a repelir o desânimo no tempo da provação e a continuar fielmente no serviço do Senhor.

O livro de Josué foi considerado pelas escolas críticas do século XIX, intimamente ligado ao Pentateuco. Os mesmos documentos do Pentateuco teriam servido para a sua compilação, que seria obra de vários autores sucessivos, e cuja última redação teria visto a luz por volta dos séculos V ou IV a.C.

Hoje, a dita crítica modificou bastante a sua hipótese; começa-se, também por parte da maioria dos racionalistas, a considerar o livro de Josué como um livro independente; reconhece-se que a sua composição é diferente da composição do Pentateuco, formando um conjunto distinto e bastante harmônico. É uma espécie de retorno ao que a tradição judaica e cristã sempre defenderam.

Apesar dessas concessões, entretanto, não se deixa de impugnar, embora sem sólido fundamento, a unidade do livro e a sua origem antiga. É verdade que se encontram alguns trechos de,estilo diferente, certas expressões e algumas repetições discordantes do corpo do livro, mas para explicar isso seria suficiente supor um único autor que tenha aproveitado documentos parciais.

Da unidade do livro não se pode facilmente chegar à determinação concreta e segura nem da data de origem, nem do autor. Alguns indícios levariam a concluir que o livro é anterior ao tempo de Isaías (cf. 8:28 com Is 10:28), de Salomão (16:10 com 1 Rs 9:16), de Davi (15:63 com 2 Sam 5:6-9). Não faltam, entretanto, dificuldades em contrário, que podem, porém, ser adequadamente solucionadas. Uma das principais é a repetição da fórmula: “até o dia de hoje” (4:9; 5:9; 6:25; 7:26; 8:29; 9:27; 10:27; 13:13; 14:14; 15:63; 16:10; 22:3-17), que faz supor se tenha passado um longo período de tempo entre os fatos e a composição do livro. Mas, os trinta anos decorridos entre estes fatos e a morte de Josué são espaço de tempo suficiente para legitimar tais expressões.

A origem antiga do livro de Josué e o fim que o autor sagrado se propôs contribuem para fortalecer a autoridade do livro. Os seus relatos são confirmados, em muitos pontos, pelos documentos oficiais encontrados em el-Amarna, a oriente do Egito, bem como pelas escavações feitas na Palestina desde 1902 especialmente em Jericó, Betel, Gezer e Laquis, que nos revelaram vestígios da invasão dos israelitas, ou pouco antes.

Juízes

Juízes foram chamadas certas personagens insignes que, depois da morte de Josué até à constituição do reino – isto é, desde o século XII ao XI a.C. – libertaram, em várias circunstâncias, o povo de Israel dos inimigos.

Não formaram uma série ininterrupta, mas eram chamados pelo Senhor segundo as necessidades. Eram uma espécie de “ditadores” que, cumprida a missão libertadora, continuavam a exercer autoridade sobre o povo pelo resto da vida. Não dominavam sobre todo o povo, mas só nas tribos que libertavam do inimigo; desta forma não é impossível que alguns juízes exercitassem ao mesmo tempo sua função.

O livro dos juízes narra as empresas desses beneméritos libertadores do povo eleito. Em vez de uma história propriamente dita, da época, é uma coleção de memórias dos diversos heróis. São doze ao todo, classificados em maiores e menores, não tanto pela diferente importância dos empreendimentos e dos heróis, quanto pelo modo de serem apresentados. Dos menores, o autor contenta-se com citar o nome, alguma notícia da família, a duração de sua atividade e o lugar da sepultura, sem especificar o empreendimento; ao passo que dos maiores narra a história com mais particularidades, segundo um esquema fixo, que comporta quatro momentos: o pecado do povo (práticas idolátricas), o castigo (dominação estrangeira), o arrependimento e a libertação por obra de um juiz.

Esse esquema está em perfeita harmonia com o pensamento dominante (2:11-19) da introdução especial (2:6-3:6) ao corpo do livro, que defende a tese segundo a qual Israel foi feliz enquanto se manteve fiel ao Senhor, e infeliz quando se apartou dele. Com isto dá-nos a conhecer a finalidade do autor: afastar eficazmente os israelitas do culto idolátrico.

Destarte o corpo da obra resulta composto, com sua própria introdução, à qual foi anteposta outra introdução geral (1:1-2:5) e foram acrescentados dois apêndices (17-18 e 19-221).

Não é fácil precisar a data dos dois fatos narrados nesses apêndices; há, contudo, razões sérias para admitir que ambos se deram nos primeiros tempos dos juizes, pois no episódio dos danitas aparece como sacerdote um neto de Moisés (Jz 18:30) e um neto de Arão é contemporâneo de outro episódio. A cronologia do corpo do livro é uma das dificuldades mais laboriosas que possam ocupar os intérpretes e entre as soluções propostas não há nenhuma que satisfaça plenamente. Como quer que seja, sem entrar em discussões inúteis, basta recordar que segundo (1Rs 6,1), entre o Êxodo e a construção do templo (4° ano do reinado de Salomão) passaram 480 anos. Portanto, se desse número subtrairmos 4 anos de Salomão, 40 de Davi e outros tantos de Saul (At 13:21), e ainda 70 anos que decorreram desde o Êxodo à primeira opressão, restariam ainda 330 anos para o período dos juízes. Esse resultado estaria suficientemente de acordo com o que disse Jefté ao rei de Amon (11:26). Somando-se, porém, todos os tempos das opressões e os dos domínios dos juízes, obtêm-se 410 anos. Deve-se, portanto, admitir que o autor relatou números aproximados.

A parte principal (2:6-16:31) é obra de um só autor, como prova o esquema delineado e fielmente seguido em toda a narração. O autor, porém, não podia ter sido testemunha de tudo o que narra, já que sua história abrange um período de quase dois séculos. Serviu-se, portanto, de documentos preexistentes e de tradições orais. A sua fidelidade às várias fontes se manifesta na concisão com que narra fatos de máxima importância e que um escritor menos escrupuloso teria ampliado a seu bel-prazer.

Quando foi composto o livro? Com boa verossimilhança pode-se crer que foi nos primeiros anos do reinado de Saul. Com efeito, quatro vezes observa-se nos apêndices que os inconvenientes narrados aconteceram quando “em Israel não havia rei e cada um fazia o que lhe agradava.” Tal coisa só podia ter sido escrita nos primeiros tempos da monarquia, quando se gozava dos seus bons efeitos e ainda não pesavam gravames que sobreviriam mais tarde.

Rute

A comovente história de Rute, que dá o título a este opúsculo, é um idílio pela suavidade e pelo ambiente campestre; um pequeno drama pela variedade e vivacidade das cenas. Apenas um terço de todo o livro pertence ao gênero narrativo, sendo o resto, diálogo.

Os quatro capítulos em que se costuma dividi-lo são como quatro atos no drama; podemos assim resumi-los:

1. Em companhia da sogra que volta à pátria. Rute, jovem moabita, viúva sem filhos, de um hebreu que emigrara de Belém, não abandona a sogra que, depois da morte do marido e dos filhos, deseja voltar ao torrão natal.

2. A respigadura.. Para o sustento próprio e o da sogra, Rute vai respigar atrás dos segadores, conquistando com os seus encantos e suas virtudes a afeição de Booz, rico proprietário, parente de seu sogro.

3. A noite passada na eira. Por conselho da sogra, que pensa em casá-la com Booz, Rute passa uma noite junto de Booz na eira da colheita e aproveita a ocasião para lembrar ao mesmo o dever de desposar a viúva do parente falecido sem filhos.

4. As núpcias de Booz com Rute. O convite de Rute agrada a Booz, mas há outro parente com direito de precedência. Superado o obstáculo pela desistência deste parente, Booz desposa Rute, que o torna pai de Obed, de quem nasceu Isaí (Jessé), pai, por sua vez, do grande rei Davi, antepassado do Messias.

Dessa relação com Davi, provém a importância do opúsculo, bem como o seu lugar no cânon, entre Juízes e Samuel, ao primeiro dos quais pertence pela época dos acontecimentos narrados (Rut 1:1), e com o segundo se relaciona pela fundação da dinastia davídica, cf.(1Sam 16) (2Sam 2-8). É aqui, portanto, que as Bíblias gregas e latinas o inserem; os hebreus, antigamente, também o colocavam aqui, e só na Idade Média, devido ao uso litúrgico, foi colocado, juntamente com os outros quatro opúsculos (Cânt, Ecl, Lani, Est), entre os componentes da última das três partes na qual eles dividem os Livros Sagrados.

Além desta importância histórica, Rute oferece numerosos e preciosos ensinamentos. A protagonista é um modelo de, piedade filial, de dócil obediência para com a sogra, de espírito de sacrifício no cumprimento destes seus deveres. Na sua história sobressai o papel da divina Providência que, por caminhos inesperados, premia a virtude de Rute, dando-lhe uma posição social elevada. Além disso, sob o aspecto religioso, é digno de nota como esta estrangeira, que deixa a pátria e os concidadãos para não abandonar a sogra hebréia, não somente é recebida na verdadeira fé para fazer parte do povo de Deus, mas também teve a honra de ser inscrita na genealogia do Messias (Mt 1:5).

O autor de Rute nos é totalmente desconhecido. O tempo em que foi escrito, deve-se deduzir do próprio livro. Sem dúvida correu muito tempo entre os acontecimentos e sua narração (cf. 4:7). A linguagem, afora algumas particularidades, é da boa época da monarquia; o estilo, simples e polido, a beleza da narrativa, a pintura viva dos caracteres e dos costumes colocam Rute entre os melhores modelos de prosa narrativa do Antigo Testamento. Em Rute temos a amenidade da novela unida à singela veracidade histórica.

Samuel

O livro de Samuel, dividido pelos gregos e pelos latinos – não pelos hebreus – em dois, recebe o nome do santo profeta, cujas gestas constituem os seus primeiros capítulos, e cuja ação o dominam inteiramente. A matéria tratada divide-se marcadamente em três partes, segundo as três personagens que governam sucessivamente o povo de Israel: Samuel, Saul e Davi.

1a parte. Samuel, o último Juiz:

1) Nascimento de Samuel (1:1-2,10); sua juventude a serviço do templo; reprovação do sacerdote Heli e de seus filhos (2:11-3,21).

2) Primeira guerra filistéia; derrota, captura da arca, morte de Heli e de seus filhos (4). Retorno da arca santa (5-7).

3) Judicatura de Samuel: reforma religiosa, segunda guerra filistéia, vitória; governo de Samuel (7:3-17).

4) Mau governo dos filhos de Samuel. O povo pede um rei (8) Saul é ungido e proclamado rei (9-10). Vitória sobre os amonitas (11). Samuel abdica e despede-se do povo (12).

2a parte. Saul, primeiro rei:

1) Terceira guerra filistéia; desobediência de Saul; audácias de seu filho Jônatas; vitórias. Sumário do reinado de Saul (13-14).

2) Vitória sobre os amalecitas; e outra desobediência de Saul, que é por isso reprovado (15).

3) Samuel unge secretamente rei a Davi, que é chamado à corte de Saul, assaltado por mania furiosa (16).

4) Quarta guerra filistéia. Davi vai ao acampamento e mata o gigante Golias (17:1-54). Amizade de Jônatas com Davi e inveja de Saul para com o mesmo (17:55-18:9).

5) Saul procura matar Davi, o qual foge da corte (18,10-19,17); vai ter com Samuel, renova com Jônatas o pacto de amizade (19:18-21:1).

6) Davi anda errante por vários lugares (21:2-22:5) Saul mata os sacerdotes fautores de Davi (22:6-23). Davi em Ceila (23:1-13); em Zif salva-se de grave perigo (23:14-28) em Engadi poupa a vida a Saul (24) ofendido por Nabal, é aplacado por Abigail, que de pois desposa (25) novamente, poupa a vida a Saul (26) vive entre os filisteus (27).

7) Quinta guerra filistéia. Saul consulta a nigromante de Endor (28). Davi, afastado pelos filisteus (29), vence os amalecitas (30). Saul morre no campo de batalha (31) e Davi pranteia a sua perda (2Sam 1).

3a parte. Davi, fundador da dinastia (2Sam 2-24):

1) Rei de Judá em Hebron (2:1-7); guerra civil entre os dois partidos, progressos de Davi (2:8-3:5) assassínio de Abner (3:6-39) e de Isboset (4).

2) Rei de todos os Israelitas em Jerusalém (5:1-16) vitória sobre os filisteus (5:17-25) transladação da arca para Sião (6) promessa messiânica (7) conquistas no exterior (8) favores ao filho de Jônatas (9).

3) Desordens domésticas. Guerra amonita (10); duplo pecado de Davi (11); arrependimento de Davi (12); incesto de Amnon (13:1-22); vingança de Absalão (13:23-36); seu exílio e repatriação (13:37-14:33).

4) Revolta de Absalão (15:1-12) fuga de Davi (15:13-16:14) e entrada de Absalão em Jerusalém (16:15-17:23); guerra civil (17:24-18:8); morte de Absalão e luto de Davi (18:9-19:8). Davi retorna à capital (19:9-43) a rebelião de Seba é dominada (20:1-22) governo (20:23-26).

5) Diversos episódios. Cessa a fome, dando satisfação aos gabaonitas (21:1-14). Heroísmo de alguns homens contra os filisteus (21:15-22). Cântico triunfal de Davi (22). – Últimas palavras de Davi (23:1-7). Os heróis campeões (23, 8-39). Recenseamento do reino; a peste; ereção de um altar sobre o Sião (24).

Todos esses acontecimentos encheram o período de cerca de um século e meio, aproximadamente os anos 1120-970 a.C., um lapso de história israelita isento de toda interferência quer do Egito, quer da Assíria e da Babilônia.

Ao escrever o livro, o autor sagrado tem por finalidade mostrar-nos as vias providenciais pelas quais foi estabelecida no povo de Deus a monarquia e a dinastia davídica, de cuja cepa devia nascer o Messias, cujas glórias ter-lhe-ia perpetuado. Em Samuel apresenta-nos o modelo do ministro fiel de Deus, em Davi o tipo de magnanimidade aliada a uma sincera piedade.

Reis

Aos livros de Samuel, que narram a fundação da monarquia hebraica seguem-se Reis, cuja história continua até sua queda sob os assaltos dos poderosos impérios da Assíria e da Babilônia, isto é, desde os últimos dias de Davi (cerca de 970 a.C). até à tomada de Jerusalém em 587 a.C., uma duração de cerca de quatro séculos. A cisão política e religiosa, que se seguiu à ascensão ao trono do segundo sucessor de Davi, cindiu a nação em dois reinos rivais, o de Israel e o de Judá, e findou com o desaparecimento do primeiro na luta com a Assíria (721 a.C.), delimitando este lapso de tempo em três períodos, com reflexos análogos na composição da obra.

O livro é escrito à base de um esquema simples e transparente, sobretudo na segunda e maior parte, daquela dos reinos separados. Seu enredo é formado pelas notícias sobre cada um dos reis, quer de Judá, quer de Israel, redigido com um cunho uniforme e distribuído em três partes: 1) Introdução: sincronização do outro reino com o rei contemporâneo, duração do reinado no momento e para os reis de Judá também os anos de idade à elevação ao trono e nome da rainha-mãe. 2) Corpo: qualidades morais relativamente à religião e ao culto mosaico, e breves referências a algum fato mais relevante. 3) Epílogo: envio para notícias mais amplas, aos “anais dos reis” (de Judá ou de Israel, segundo o caso), morte e sepultura.

Nas linhas deste traçado, inserem-se os mais amplos e minuciosos relatos de coisas concernentes à religião e à atividade dos profetas, entre os quais avultam as grandiosas figuras de Elias e Eliseu. O interesse religioso, sobre o qual se fixa o olhar do autor sagrado, manifesta-se, inclusive nos poucos acontecimentos políticos narrados com abundância de pormenores fora do comum, como as ações de Acab (1Rs cc. 20-22), a ascensão de Jeú ao trono (2Rs 9:1-7), o cerco e libertação de Jerusalém do exército de Senaquerib (2Rs 18:13-19:37). Essas notícias mais abundantes formam o fundo do livro, ao passo que os esquemáticos perfis dos reis, donde lhe vem o título usual, constituem-lhe como que a moldura e o enredo. As primeiras, o autor hauriu-as das histórias dos profetas, transmitidas, por escrito ou de viva voz; pelos discípulos dos mesmos. Nos segundos, isto é, na mencionada moldura, devemos ver um trabalho mais pessoal do redator final, baseado por certo em bons documentos.

O valor histórico do livro dos Reis é incontestável. Garantido pela inspiração divina, é confirmado por documentos paralelos da história profana, cabendo a primazia à assírio-babilônica, que aqui se nos apresenta com tão grande riqueza, não igualada para nenhum outro livro do Antigo Testamento.

Não nos foi transmitido quem seja o autor de Reis nem a data da sua existência; seu nome permanecerá provavelmente para sempre ignorado, ao passo que a idade pode ser deduzida do próprio livro. Se os últimos quatro vv. (2Rs 25:27-30) não são um apêndice ou acréscimo posterior, como em si é possível, sem, contudo, parecer provável, o autor teria terminado a sua obra entre os anos 560 (37° da prisão de Joiaquin) e 538 a.C., que marca o fim do exílio babilônico, porque não faz nunca alusão ou referência a este grande acontecimento.

É visível o caráter essencialmente religioso desta história dos reis. Numerosos ensinamentos de doutrina e vida religiosa estão contidos especialmente na atividade dos profetas, que ocupam continuamente o centro da cena, e nas reflexões do autor sagrado sobre o procedimento dos reis e dos povos, que freqüentemente rematam o quadro. Cumpre não deixar de notar o impressionante fato de que, enquanto no reino cismático de Israel houve em apenas dois séculos (c. 930-730 a.C.), nada menos de oito mudanças de dinastia, no vizinho e politicamente mais fraco reino de Judá dominou, por mais de 4 séculos (c. 1010-586 a.C.), constante e invariavelmente a descendência de Davi, embora não faltassem as violências e os contrastes a partir do exterior (intromissões de Atalia, de Necao, de Nabucodonosor). Verificava-se assim a promessa divina feita a Davi por boca do profeta Natan (2 Sam 7), anúncio e penhor do reino do Messias, filho de Davi por excelência (Lc 1:32), insigne pedra miliar na preparação da salvação humana.

Crônicas

Samuel e Reis receberam uma obra paralela nas Crônicas. Nas Bíblias hebraicas constituem os mesmos um só livro e tem o título equivalente ao nosso termo “anais.” É aquilo que nos Reis se lê tantas vezes no epílogo dos respectivos reinados. Seguindo uma sugestão de S. Jerônimo (no “prólogo Baleato” ou prefácio aos livros de Samuel e Reis), os modernos dão, comumente a esta obra, o nome de “Crônicas.” Na versão grega dos LXX acha-se, dividida em dois livros e intitula-se “Paralipômenos,” que significa “coisas omitidas”; subentende-se, nos livros dos Reis. Este título com a respectiva divisão introduziu-se na Igreja latina.

A narração das Crônicas, excetuando-se as genealogias dos nove primeiros capítulos e a alusão ao decreto de Ciro nos dois últimos vv., abrange o mesmo espaço de tempo de Samuel e Reis. Distingue-se deles, porém, pela extensão da matéria, pois, de um lado, restringe-se ao reino de Judá e, de outro, acrescenta muitas notícias relativas ao culto divino.

Na verdade, a grande idéia central de toda a obra é o templo. O templo, único lugar destinado ao culto legítimo do Deus de Israel, é o centro vital de Jerusalém; Jerusalém é o centro de todo o Judá, que é a parte fiel do povo eleito. Destarte toda a vida de Israel palpita em torno do templo, o qual não é considerado como simples edifício material, fosse embora simbólico, mas como verdadeiro fator de unidade religiosa e nacional para todo Israel, mediante o único culto legítimo, exercido somente pelos descendentes de Levi. Donde o cuidado especial, a insistência, dir-se-ia, com que o autor desce a certas particularidades que a nós, tão afastados da sua época, nos parecem supérfluas, mas que então constituíam o fundamento da vida coletiva: assim as importantes genealogias, que eram verdadeiros documentos oficiais para provar o direito que todo o levita tinha de exercer os atos de culto; assim, as minuciosas normas litúrgicas, as amplas descrições de solenidades (da Páscoa, sobretudo), com o número das vítimas imoladas, sem faltar sequer as várias exceções ao rito legítimo, e todos os trabalhos executados no próprio edifício, desde os preparativos feitos por Davi até à restauração de Josias.

Paralela, mas subordinada a esta idéia principal, desenvolve-se outra, a da dinastia davídica. A família davídica é a única depositária do poder legítimo sobre todo o Israel. Os seus membros, portanto, são os principais servos de Javé, e os reis que dela descendem têm como dever primordial o cuidado do templo, pois a sua autoridade régia é um reflexo da autoridade divina, que brilha no templo. Todavia, a distinção entre o poder régio e o sacerdotal é radical: o rei não deve usurpar funções sacerdotais. O monarca é realmente o primeiro servo do templo, mas é o primeiro servo “externo,” fora do recinto sagrado.

Destas duas grandes idéias basilares, tomadas em conjunto, explica-se por que o autor se estenda tanto na citação das genealogias de Levi e de Judá (à qual pertencia a família de Davi) e por que se desinteresse do reino do norte, que constituía a parte mais numerosa do povo eleito. Este reino rebelara-se contra a dinastia davídica e rejeitara o culto do templo de Jerusalém, fabricando para si os bezerros de ouro. Por isso, depois de narrar a sua defecção, o autor alija-o do esquema de sua obra.

É evidente, e em mais de uma passagem (1 Crôn 10:13-20:1 etc.), que o autor supõe conhecida a história que narra, ao passo que, excetuadas as particularidades litúrgicas, raríssimos são os fatos que narra com exclusividade. Destes fatos, porém, um há que, em 1880, recebeu esplêndida confirmação das descobertas arqueológicas (cf. 2 Crôn 32:30). Quanto às freqüentes divergências entre as cifras de Crônicas e Reis, cumpre recordar que os números, no texto hebraico, têm muitas vezes contra si uma componente desfavorável; e muito mais em Crônicas, que na transmissão manuscrita, são dos livros mais corrompidos e mal conservados de toda a Bíblia.

Literariamente, Crônicas são um produto da decadência. O material lingüístico situa-o entre as obras mais tardias da Bíblia hebraica. O fraseado tortuoso, duro e insistente, é testemunho de uma época em que o hebraico já não era a língua comum, mas ia cedendo lugar ao aramaico.

Esdras

No texto hebraico e na versão dos LXX, Esdras e Neemias constituem um só livro, com o título comum de Esdras. Mas já no tempo de Orígenes (inícios do séc.III) eram divididos em dois. Na Vulgata latina são intitulados I e II de Esdras. Desde épocas longínquas, porém, chamam-se habitualmente Esdras e Neemias, nomes tomados da principal personagem de cada um deles.

Com o título de 3° de Esdras, as Bíblias latinas (1 Esdras nas gregas) contam com um livro composto de nove capítulos, e que apresenta versão diferente daquela dos dois últimos capítulos das Crônicas, de todo o Esdras (com a transposição de 4:7-24 na fim do c. 1) e de (Neemias 8,1-12). Além disso, tem de próprio a longa descrição (3,1-5,6, antes de Esdras 2) de uma disputa literária entre três pajens da corte de Dario, o terceiro dos quais, Zorobabel, tendo saído vencedor, obteve do rei todas as facilidades para reconduzir à pátria os seus compatriotas judeus. Por causa desse relato não canônico, isto é, não inspirado, todo o livro foi colocado pela Igreja católica entre os apócrifos.

O livro canônico de Esdras-Neemias descreve a volta dos judeus do exílio babilônico e a restauração religiosa, e, em parte, também a política da sua comunidade.

Por sua própria natureza divide-se em três partes, em cujo centro estão as três personagens que encabeçam o movimento.

1. Regresso, sob as ordens de Zorobabel no tempo de Ciro (no 537 a.C) e reconstrução do templo (Esd 1-6).

Decreto de Ciro permitindo a reconstrução do templo (1); elenco dos judeus que regressaram guiados por Zorobabel (2). Ereção do altar (3:1-6) e início da construção do templo (3:7-13) obstáculos da parte dos adversários e, suspensão dos trabalhos (4:1-5). Obstáculos opostos mais tarde pelos inimigos à reconstrução da cidade (4:6-24). Prosseguimento da construção do templo,

término e inauguração entre grandes solenidades (5-6).

2. Retorno sob a direção de Esdras, no sétimo ano de Artaxerxes, e reforma dos costumes (Esd 7,10).

Esdras obtém de Artaxerxes rescrito favorável (7); preparativos para a volta (8:1-30) partida e chegada a Jerusalém (8:31-36). Deploração da desordem dos matrimônios mistos (9), que são suprimidos (10:1-17). Rol dos culpados (10:18-44).

3. Regresso de Neemias, no vigésimo ano de Artaxerxes, reconstrução da cidade e restauração religiosa (Ne 1-13).

Tendo recebido notícias alarmantes, Neemias obtém do rei permissão para ir a Jerusalém (1:1-2:10); inspeção das muralhas e decisão de reconstruí-las (2:11-20) elenco dos que restauraram alguma parte delas (3) oposição e insídias de Sanabalat e outros inimigos (4). Extirpação da desordem econômico-social (5). Novas insídias dos inimigos; apesar delas, a muralha é terminada (6). Recenseamento do povo: elenco dos repatriados (7:6-57 = Esdr 2:1-55). Leitura pública da lei mosaica e festa dos Tabernáculos (8). Confissão pública e penitência (9) solene renovação da aliança com Deus (10). Medidas para repovoar Jerusalém (11:1-24); outras cidades repovoadas (11:25-36). Lista dos sacerdotes e levitas (12:1-26). Dedicação das muralhas de Jerusalém (12:27-42). Regulamentação das ofertas sagradas e dos matrimônios mistos (12:43-13, 14:23-31); medidas para a observância do sábado, no ano trigésimo segundo de Artaxerxes (13:15-22).

Os fatos aqui narrados abrangem o período de um século aproximadamente (537-432 a.C.), período importantíssimo para a história do povo eleito e da religião em geral.. O autor não pretende, porém, deixar-nos uma história completa daquele período memorável, mas descreve-nos apenas os fatos principais, agrupado mais segundo uma ordem lógica do que segundo a sucessão cronológica.

Tobias

Semelhante ao livro de Rute pela suavidade de cenas domésticas, Tobias supera-o pela variedade e entrelaçamento de acontecimentos e pela riqueza de ensinamentos morais.

O livro de Tobias foi escrito em hebraico ou aramaico. Encontraram-se fragmentos em ambas as línguas (1952) nas grutas próximas do mar Morto. S. ]erônimo verteu-o para o latim, servindo-se de uma redação aramaica, e assim foi inserido na Vulgata. A versão grega dos LXX deriva do texto original, seguindo outra via; dessas duas fontes, a grega e a latina, surgiram todas as outras versões chegadas até nós.

A primeira e mais palpável diferença entre essas duas versões é que na Vulgata toda a narração, desde o principio, desenvolve-se em terceira pessoa, ao passo que no grego o preâmbulo (1:1-2:6) é narrado por Tobias na primeira pessoa. Na Vulgata é mais abundante o elemento parenético, no grego prevalece o biográfico. Na Vulgata, pai e filho têm o mesmo nome: Tobias; no grego, ao invés, o pai chama-se Tobit, ou mais corretamente, Tobi, e somente o filho, Tobias.

A própria versão grega, porém, chegou-nos em três formas ou redações, duas principais e completas e uma secundaria e incompleta. As duas principais têm os seus representantes mais antigos e autorizados, respectivamente, nos dois reputadíssimos códices (aqui rivais, de resto, irmãos) Sinaítico (atualmente no Museu Britânico) e Vaticano (grego 1209, conhecido com a sigla B) do séc IV. A redação do Sinaítico difunde-se mais na narração, valendo-se de uma expressão mais vulgar, de colorido mais semítico; a do Vaticano é mais sucinta e de grecidade mais pura. Existe grande discordância entre os doutos em determinar qual das duas esteja mais próxima do original semítico; mas atualmente vai prevalecendo a opinião em favor da redação sinaítica, a qual tem por seguidora fiel a antiga versão latina e por aliados os fragmentos semíticos encontrados às margens do mar Morto.

Discutiu-se também se o livro de Tobias seria uma história verdadeira ou uma novela com finalidade moral. Não obstaria ao ensinamento da Igreja católica considerá-lo, em abstrato, uma narração de livre invenção. Mas, se por um lado, parece manifesta a intenção do autor, em vista do cuidado que emprega em referir nomes de pessoas e lugares, e circunstâncias pormenorizadas, de narrar fatos realmente ocorridos, de outro lado, porém, às razões aduzidas contra a historicidade dos fatos narrados, como anacronismos de pessoas e alguma pseudoqualificação, responde-se facilmente que, faltando-nos o texto original; os erros podem provir de traduções incorretas ou de falhas de copistas. O maravilhoso que ressalta no livro pode criar dificuldades somente para quem, por princípio, nega-se a admitir o sobrenatural. Isto posto, nada nos veda que retenhamos a estrita historicidade de Tobias, ou pelo menos com alguns escritores católicos, admitamos um amplo fundo histórico com acessórios embelezadores.

A primeira documentação dos fatos narrados neste livro deve ter sido, indubitavelmente, o testemunho dos dois protagonistas, Tobi e Tobias, e nada obsta que tenha sido escrita por eles; contudo, tampouco está provado, nem mesmo pelo emprego da primeira pessoa em 1-3, que eles sejam os autores do nosso livro; um escritor posterior pode muito bem ter-se servido daquilo que eles deixaram dito ou escrito.

Judeus e protestantes não reconhecem o livro de Tobias como canônico, isto é, inspirado, relegando-o entre os “Apócrifos.” Mas a Igreja católica, tanto latina corno oriental, recebeu-o desde o princípio no cânone das Divinas Escrituras, não obstante a opinião contrária de alguns Padres da antiguidade. Com isso a igreja oferece-nos para instrução um delicioso modelo de prosa narrativa, pleno de ensinamentos religiosos e morais. Nele, virtudes domésticas e sociais, sobretudo o exercício de uma generosa beneficência, e a paternal providência de Deus para com os seus servos fiéis fulgem numa luz tão viva quão suave.

Judite

Com maior razão do que Rute e Ester, a heróica mulher que foi Judite empresta o seu nome ao livro sagrado, no qual a narração do episódio memorável da vida hebraica nacional é inteiramente dominada pela pessoa e pela corajosa empresa dessa mulher.

O texto do livro de Judite apresenta um caso muito semelhante ao de Tobias. O original semítico (hebraico ou aramaico), perdeu-se. Tomou-lhe o lugar uma antiga versão grega, diferenciada, nos numerosos códices, em três recensões especiais.

A variedade dos textos pode oferecer, em alguns casos, a solução às numerosas dificuldades históricas e geográficas disseminadas especialmente nos primeiros capítulos do livro. Mas quando os textos concordam, o que sucede na maior e mais importante parte dos casos, o seu testemunho têm importância capital para a exclusão de erros de copistas e para fazer remontar a leitura ao próprio autor do livro. Pois bem, logo no início do livro (1:1 grego, 1:5 Vulgata), todos os textos nos apresentam Nabucodonosor, rei dos assírios, que reina em Nínive e empreende guerra contra Arfaxad, rei dos medos. Ora, os fatos narrados concordemente por todos os textos, são posteriores ao repatriamento dos hebreus (cf. 4:3; 5:18-19; Vulgata 5:22-23), quando Nínive já era um montão de ruínas há mais de um século, e nenhum rei dos assírios chamou-se jamais Nabucodonosor; nem rei algum dos medos, Arfaxad. Outras incongruências do gênero notam-se ainda no correr do texto. O próprio nome de Betúlia, cenário dos acontecimentos e lugar de suma importância estratégica, jamais é citado na Bíblia. Tudo leva a conjeturar que (salva a veracidade dos acontecimentos narrados), o autor sagrado tenha dado aos lugares e pessoas nomes fictícios, por razões de oportunidade ou de simbolismo. Nabucodonosor, por exemplo, personificaria os inimigos do povo hebreu. Para os contemporâneos do hagiógrafo devia ser fácil atinar com o que se oculta sob os véus desses nomes estranhos, ao passo que para nós resulta assaz difícil e quiçá inalcançável.

Isto posto, procurou-se saber (questão primeira e fundamental) a qual personagem histórico corresponde o Nabucodonosor de Judite. Propuseram-se já nada menos do que quinze soberanos, reinantes em países diversos num período de oito séculos, desde Assurbanipal, rei da Assíria (667-625 a.C.), até Trajano ou Adriano, imperadores romanos. A opinião mais comum e mais provável, porque melhor se harmoniza com os dados do texto, é a que teve por primeiro autor a Sulpício Severo (†cerca de 420), no seu Chronicon (11:14-16). Para ele, Nabucodonosor seria o rei persa Artaxerxes III, cognominado Ochus (358-338 a.C).

O autor sagrado propõe-se mostrar como nos momentos de maior necessidade o Senhor vem em auxílio dos que observam fielmente a sua lei e nele confiam, e apresentar-nos em Judite um modelo, acima de tudo, de impávido patriotismo, mas também, como observa S. Jerônimo, de castidade vidual. Com efeito, recusando-se a contrair novas núpcias após a morte do primeiro marido (16:26), levou no recolhimento de sua casa uma vida que tem algo de monástico (8,4-6;16,26). Sua exímia piedade religiosa transparece da sua exortação aos chefes do povo (8,10-26), da sua oração ao Senhor (9:2-19), do seu cântico triunfal (16:1-21). Sua rigorosa observância da lei divina sobressai no uso exclusivo dos alimentos legais e na prática das abluções rituais, que faz questão de manter até mesmo no acampamento inimigo e na corte de Holofernes (12:2-9). Numa palavra: Judite hauriu da religião tal cabedal de virtudes, que não dava azo à menor suspeita.

Neste terso espelho de virtudes femininas não faltaram os que quiseram descobrir duas obras: os artifícios com que a mulher hebréia iludiu os assírios (10:11-11:17) e as artimanhas empregadas para seduzir Holofernes, excitando-lhe a paixão e expondo a grave perigo a própria honra (10:2-4). Para o que concerne ao primeiro ponto, veja-se a nota a 10:12s. Quanto ao segundo reparo, cumpre notar que Judite visava a alcançar o acesso a Holofernes e ter assim ocasião para encontrar-se a sós com ele a fim de mata-lo sem tropeços.

Ester

É provável que desde o séc. V a.C. (cf. 2 Mac 15-27), os hebreus tenham celebrado a festa chamada “purim,” em memória da eliminação do perigo de excídio decretado contra os seus antepassados durante a dominação persa. O livro de Ester narra os fatos que deram origem a essa festa, mostrando a providência especial usada por Deus com o seu povo eleito, naquela ocasião tão crítica.

Duas redações nos chegaram deste livro: a hebraica e a grega dos LXX, com a única diferença, entre si, de que a grega, além da versão fiel do hebraico, contém mais seis seções, que, tomadas em conjunto, igualam a dois terços do livro hebraico.

O rei da Pérsia, sob o qual se desenrolam esses acontecimentos, é chamado Ahasveros no texto hebraico (donde “Assuero” na Vulgata), transcrição imperfeita do nome persa Hsarjarsa, que os gregos transcreveram como Xerxes. A versão grega, ao invés, traz constantemente “Artaxerxes” no livro inteiro. Daqui as divergências em torno da pessoa do rei assim denominado. Hoje, a opinião mais comum e provável sustenta que seja Xérxes I, o qual reinou de 485 a 465 a.C. e é conhecido sobretudo por sua campanha infeliz contra a Grécia. Não perdeu, porém, a sua boa probabilidade a opinião dos antigos, assinaladamente de Eusébio e S. Jerônimo, de que se trata, ao invés, de Artaxerxes II, chamado o Mnemon (405-365 a.C.), que antes de subir ao trono tinha o nome de Arsu (V. PLUTARCO, Vida de Artaxerxes, I), forma abreviada ou carinhosa de Hsajarsu. O caráter efeminado de ambos os monarcas, como no-lo dão a conhecer os escritores profanos, condiz admiravelmente com o que se reflete no livro de Ester.

Ambos entregues aos prazeres, ambos dominados pela influência de cortesãos e de mulheres, as histórias dos seus reinados são tecidas de intrigas, de amores ilícitos e também de, crueldades. Sobre Xerxes veja-se HERÓDOTO, Histórias, IX, 108-110. A respeito de Artaxerxes II, Plutarco, na Vida do mesmo, carrega as tintas sobre a sua moleza e volubilidade e afirma que no seu gineceu sustentava tantas mulheres quantos eram os dias do ano (24:3; 27:1-3; cf. Est 2:1-4). Esta é já uma das provas da verdade histórica do livro. Outras são: o conhecimento exato dos costumes persas, a descrição precisa do palácio real em Susa, confirmada por escavações recentes, a narração cheia de vida, colorido e particularizada, a ausência de todo anacronismo, a reiterada referência aos anais oficiais do reino (2:23; 6:10); o próprio fato da celebração da festa dos purim, desde tempos imemoriais, como foi dito acima, fato que, sem dúvida, deve sua origem a algum evento extraordinário na vida da nação hebraica; e não se tem provas para indicar outro qualquer, a não ser exatamente o que vem narrado neste livro.

Pode-se ter como provável que, sobre um fundo comum, oral ou escrito, foram inicialmente redigidas: a narração hebraica atual e uma redação grega mais ampla; feita depois a tradução grega da narração hebraica, passou ela a ser adotada, inserindo-se as seções excedentes da redação grega, isto é, as seções deuterocanônicas. Assim chegou-se a atual versão grega, ao que parece, por obra do Lisímaco.

No que tange ao gênero literário, já S. Jerônimo notava grande diferença entre as duas redações, hebraica e grega, diferença que tem suas raízes profundas nos costumes estilísticos das respectivas literaturas.

Mas, seja qual for o modo de pensar em torno disso, nenhuma das duas composições do livro de Ester tem por finalidade única recordar a origem da festa de purim, e sim também, e mesmo preponderantemente, mostrar os cuidados que Deus teve por seu povo naquele terrível transe da sua história sob a dominação persa; e bastaria isso, sem dúvida, para levar-nos a apreciá-lo altamente.

Costuma-se lamentar sobre o livro o nacionalismo acanhado dos protagonistas hebreus e a sua dureza para com os adversários. Decerto, os seus sentimentos e atos estão assaz afastados da abertura de coração e mansidão do espírito cristão. Mas, cumpre julgar os homens pelo seu tempo. Em todas as épocas, até nos tempos modernos, acontecem casos de crueldades incompreensíveis.

I Macabeus

O título de I ou II Macabeus deve ser tomado em sentido totalmente diferente de I ou II Samuel, ou Reis ou Crônicas. Nestes últimos, que formam uma única obra literária; a divisão em dois livros é artificial, arbitrária e nada original, ao passo que os, dois livros dos Macabeus são duas obras originariamente distintas. Tomam o nome de Judas, apelidado Macabeus, figura central da história que narram (1Mac 2,4). O objeto comum dos dois livros é a libertação da nação judaica do jugo dos selêucidas, os soberanos gregos do mais vasto dos reinos surgidos após a divisão do império de Alexandre Magno. O primeiro livro abrange um período de 41 anos (175-135 a.C.), ou seja, desde o início do reinado de Antioco IV Epifanes (175-163) até ao assassínio de Simão, chefe do novo estado judaico (135 a.C.). O segundo inicia-se um pouco antes, desde os últimos dias de Seleuco IV Filópator, predecessor de Antíoco Epífanes, mas vai somente até a morte de Nicanor, general do rei selêucida, no ano 161 a.C., pouco tempo antes da morte heróica de Judas Macebeu, abrangendo assim um período de cerca de 15 anos. Em extensão de tempo, o 1° livro alcança quase o triplo do 2°, mas na narração do período comum é quase um quarto mais breve (1Mac 1-7; 2Mac desde 4,7 até o fim). O seu conteúdo, depois de expostas, à guisa de introdução, as causas e as origens da insurreição judaica, divide-se facilmente em três partes, correspondendo cada uma ao governo respectivamente dos três irmãos Macabeus.

Do epílogo pode-se deduzir que o autor, cujo nome e profissão se desconhecem, escreveu o livro no tempo de João Hircano (134-103 -a.C). isto é, em tempos não muito afastados da ocorrência dos acontecimentos narrados; sendo, portanto, muito provável que tenha tido acesso a fontes e a testemunhas diretas. Cita doze documentos oficiais por extenso: cartas entre chefes de estado (12:5-23; 14:20-23), indultos dos reis (10:17-45; 11:30-37; 13:36-40; 15:2-29), documentos cuja exatidão estilística e diplomática foi recentemente demonstrada mediante o confronto com papiros e inscrições daquela época.

Outra prova da exatidão do autor sagrado são as freqüentes datas precisas de cada acontecimento. Conta os anos segundo a era dos gregos (cf. 1:10), outrora dita dos Selêucidas, que começava oficialmente no ano 312 a.C.; mas para os acontecimentos especificamente judaicos emprega o início do ano no equinócio da primavera (cf. 4:52; 10:21) o que demonstra que toma as datas de documentos oficiais, de fontes de primeira ordem. Tudo isso nos leva a concluir quão importante seja o valor histórico deste livro.

A obra revela a índole da antiga literatura hebraica, em estilo simples e conciso, elegante e nervoso no conjunto, mas, às vezes, se alonga em lamentações, descrições e júbilos de colorido poético (cf. 1:25-28, 37-40; 2:7-13; 3:3-9; 14:4-15), também essas recolhidas, com reservas embora, das fontes orais ou escritas, das quais o autor se serviu. Escreveu em hebraico, mas o original, que são Jerônimo ainda conseguiu ter em mãos, perdeu-se; para nós ocupa-lhe o lugar uma antiqüíssima versão grega.

O espírito que perpassa toda a narração é um apego fervoroso à religião tradicional e à santa lei de Deus, com cordial adesão à dinastia sacerdotal que havia restituído a liberdade religiosa e civil ao povo hebreu. A intervenção divina é notória e marcante através do livro inteiro. Não obstante, nunca se lê o nome de Deus ou Senhor. Em substituição, o autor sagrado emprega uma dúzia de vezes o vocábulo “Céu” (note-se especialmente em 4:24,_ a antífona ou estribilho tão freqüente nos Salmos e em outros livros: 2Crôn 5:13; 7:3; 20:21; Jer 33:11; Esdr 3:11; Dan 3:89). E uma forma de religioso respeito para com o augusto nome de Deus, que passou também para a linguagem do Novo Testamento. Em conjunto, pelas suas eminentes qualidades históricas, literárias e religiosas, este livro é tido com justiça como uma pérola do cânon católico da Sagrada Escritura.

II Macabeus

O segundo livro dos Macabeus, conforme, testemunho do próprio autor (2,23), é o resumo de uma obra mais vasta, composta de cinco livros, que não chegou até nós, e de autoria de Jasão de Cirene, autor, de resto, completamente desconhecido, como desconhecidas nos são as características de sua obra. Podemos, todavia, compreender perfeitamente que um historiador de certa importância pudesse surgir de Cirene, na África do norte, porque não ignoramos que no séc. I a.C. existia ali uma florescente comunidade judaica. As informações que Jasão possuía – segundo o que podemos deduzir do resumo fiel – especialmente as notícias minuciosas e exatas sobre certas particularidades da história dos Selêucidas, informações precisas sobre títulos, cargos etc., nos levam a crer que tenha consultado arquivos palestinenses e ouvido boas testemunhas. É sabido, com efeito, que os judeus cultos da época costumavam empreender tais viagens e pesquisas. Memórias escritas já haviam sido recolhidas por Judas Macabeu (2:14) e, por ocasião das festas da Dedicação e de Nicanor, não deviam faltar os habituais rolos narrativos para uso “litúrgico.” As interessantes cartas dos cc. 9 e 11, agora ilustradas por descobertas papirológicas, provêm de arquivos.

A exatidão das notícias, que Jasão só poderá ter recolhido por via oral, leva-nos a crer que as tenha escrito quando ainda vivas as testemunhas oculares dos fatos, e que, portanto, sua obra tenha sido escrita nos últimos 20 anos do séc. II a.C.

Ignoramos também o autor do resumo, isto é, do presente livro. Revela-se-nos ele como homem de índole piedosa, zeloso da sua fé e do seu templo, amante das memórias pátrias e profundo conhecedor da retórica grega (cf. especialmente o prólogo e o epílogo), muito estudada naquela época.

Faltam-nos provas para afirmar que toda a obra original tenha sua parte representativa no compêndio também e, em que relação estejam, quanto à extensão, as duas obras. Parece que o autor do resumo não seguiu um critério constante de composição.

Quanto ao conteúdo, a obra relata essencialmente os feitos de Judas Macabeu, precedidos, porém, de uma longa apresentação das condições em que surgiu a revolta, e, antes ainda, de duas ou três cartas de judeus de Jerusalém aos do Egito, documentos que não têm por fonte Jasão e que talvez nem mesmo tenham sido apostos ao livro pelo autor do resumo, mas são de autenticidade comprovada.

No tocante à inspiração, o livro oferece possibilidades especiais de observação, além de no prólogo e no epílogo, na abundância de citações documentadas. Quanto a estas, aplica-se o princípio comum em tais casos: o autor garante que o documento foi realmente escrito, e nas circunstâncias em que ele o coloca; pelo simples fato de citá-lo, porém, não lhe garante o conteúdo (Sto Agostinho, A Orósio contra os Priscilianos, 9). Isto é, esses documentos não são em si inspirados, ao passo que é inspirada a sua inserção no texto sagrado. O resto do texto está nas condições costumeiras dos livros históricos; inspirado é o texto grego, não, porém, a obra de Jasão, que ele compendia. O livro não era geralmente reconhecido como sagrado pelos judeus palestinenses, que consideravam encerrado o cânon no tempo dos Macabeus. Mas era tido como tal em Alexandria, bem como os demais deuterocanônicos, e nesta qualidade passou à Igreja.

O livro contém ensinamentos já no próprio espírito com que foi escrito, espírito de entusiasmo pela liberdade do povo, de fé na providência divina, de piedade. Diretamente, e com palavras de profunda convicção religiosa, são ensinados, de modo particular, alguns pontos: a ressurreição da carne (cf. especialmente 7:11; 12:43-44; 14:46), a eficácia do sacrifício e da oração pelos defuntos e da oração dos santos por aqueles que ainda militam na terra (12:43-45; 15:12-16), a existência dos anjos e suas intervenções, também com efeitos miraculosos, em auxílio do povo de Deus, nos momentos mais críticos.

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