Irreverência, riso e humor: dinamismo da religiosidade popular

Autor: Francisco van der Poel




Entendendo a cultura como elemento de transformação, torna-se importante destacar a irreverência, o riso, como base dos sonhos, desejos e utopias, e seu valor de luta ideológica e política.

Sempre existiu um preconceito em relação às pessoas irreverentes. Considerando a religião ‘praticante’ dos fiéis formados pela Igreja tradicional, onde seriedade é sinal de santidade e honestidade, e descontração e alegria é sinal de irresponsabilidade, podemos avaliar o quanto nosso povo pobre e religioso tem sofrido pela falta de sensibilidade dos chefes religiosos que tentam ensinar com ‘seriedade’ e moralismo aquilo que já é religiosamente vivenciado nas alegrias e festas das comunidades.

Mas, o autoritarismo de quem detém o poder, encontra resposta no humor popular presente no carnaval, no teatro popular e, antigamente, nos autos e no bobo da corte. Outras armas usadas são a caricatura, a paródia e a piada.

Humor na Religiosidade Popular

Com humor, o povo reune carnaval e o ritual de quarta-feira de cinzas, o canto das pastorinhas e as piadas apimentadas do Velho, a adoração do menino Jesus pela folia e a dança dos palhaços, a Páscoa e o Testamento de Judas, o terço cantado de São João e o casamento da roça, a domingada e o baile, a festa do rosário e as brincadeiras dos tamborzeiros, um enterro e piadas, a novena e o leilão. Muito humor encontramos nos autos populares, por ex.: no bumba-meu-boi.

Ao moralismo oficial, os versos populares respondem com humor: Dizem que o beijo é/ um pecado horroroso./ Oh meu Deus porque fizeste/ um pecado tão gostoso.//

Paródias relativizam o valor das orações: Te benzo e te curo/ com bosta de burro./ Te benzo e te saro/ com bosta de cavalo.// [1]

Irreverência na Idade Média

O folclorista português Pe.Firmino A.Martins lembra que na Idade Média, especialmente na França, existiram as “festas dos loucos”. Participavam “sacerdotes” montados em jumentos, levando ao centro o Balaão(Num.22, 22-35). Após a eleição do bispo dos loucos, entravam nos templos onde mascarados fingiam celebrar o ofício divino. Desde 1212, vários concílios proibem estas festas.[2]

Paulo Cézar Loureiro Botas analisa esta questão: "Quando a cidade medieval realizava a sua festa da colheita, era porque o excedente era repartido entre todos que trabalharam na sua realização. Quando nas cidades pré-capitalistas se iniciou o processo de acumulação, o excedente não era mais repartido em festas mas servia como mercadoria para o negócio entre as cidades. E ‘negócio’ vem de ‘negação do ócio’. Negar a festa é reprimir a crítica social porque é através dela que todos os poderes são colocados na sua verdadeira dimensão de dominação.

Na festa medieval, a crítica política, social e religiosa era feita publicamente através de farsas e pantomimas, no uso de máscaras e disfarces que caricaturavam o poder local. No séc.XV, um teatro mascarado chamado “A Festa do Asno” ridicularizava o clero e só a repetida condenação dos concílios conseguiu suprimi-lo.”

Nada contêm o humor popular

Paulo Cezar continua: “Não há nada mais destruidor da ‘seriedade’ do poder do que a crítica irreverente e festiva. Não é a toa que as ditaduras militares proíbem sempre os teatros, as músicas, as danças e os disfarces de carnaval que ‘desrespeitem’ a moral, a família, a religião, o Estado e o poder militar. E por falar em irreverência, os artesanatos estão plenos de fradinhos que escondem o seu órgão sexual avantajado debaixo das batinas, noivinhas que trazem bebês na barriga, quepes militares transformados em pinicos. Nada pode conter a irreverência popular como forma mais perfeita de resistência ao poder e à repressão. Nada pode conter o humor popular quando as ‘pessoas sérias’ tentam lhes mostrar um mundo ‘sério’, bem construído e sem possibilidade de sonhos.

O pensamento ortodoxo é o pensamento ‘sério’ em nome do qual todas as atrocidades são cometidas. O revolucionário que é incapaz de rir do seu fracasso na conquista de concretizar as suas utopias será o futuro ditador que massacrará o direito que as pessoas tem à irreverência e a sonhar seus desejos. A cultura de resistência, feita de riso e desejos, é diretamente proporcional à cultura da opressão feita de escárnio e sarcasmos."[3]

O humor é coisa difícil de ser entendida por pessoas autoritárias e inseguras. No entanto, ele é necessário para viver, sobretudo nas horas de grande sofrimento, como doença e pobreza. Com humor se enfrentam os horrores da vida e a ironia da história. Com humor, o cemitério é chamado de chácara do vigário.

O riso, que é expressão do prazer, da satisfação, da alegria, do amor, também pode ser uma forma de superar medo e sofrimento. Observem a expressão: O que dá pra rir, dá pra chorar.

O riso e o humor na religião

O céu é o reinado do riso. Isto nos asseguram o poeta italiano Alighiere Dante(1265-1321), na Divina Comédia, e o poeta nordestino Rodolfo Cavalcante(1959). O último, no folheto “A chegada de Lampião no Céu”, faz Jesus dizer: Seus pecados são tantos/ que nada posso fazer/ Alma desta natureza/ aqui não pode viver/ Pois dentro do paraíso/ é o reinado do riso/ onde só existe prazer.//

O riso de Cristo para a teologia tradicional é um problema. Mas para o povo é diferente. Em Alagoinhas(BA), pastorinhas cantam na marcha da retirada: Vamos às nossas moradas/ cheias de santa alegria/ porque para nós sorriu-se/ Jesus Filho de Maria.//[4] Também na cruz, Jesus riu. Isto constatamos no folheto de cordel “História de Dimas, o bom ladrão” de João Martins de Athayde. Aqui resumimos a parte final:

Depois de vingar a morte de seu pai, Dimas retirou-se para as montanhas e juntou-se a Abdon e seus quatorze ladrões numa fortaleza. Depois da morte de Abdon, Dimas virou o chefe dos ladrões. Ele mandava respeitar os velhos e enterrar os mortos. Num mesmo dia passaram por lá os soldados de Herodes e a Sagrada Família. Dimas respeitou a Maria e Jesus pelas barbas brancas de São José e serviu-lhes uma refeição. Depois de os ter servido/ com todo zelo e carinho/ olhou para ela(Maria) e disse: / Dá-me o teu pequenininho/ para que eu dê um beijo/ nas façes do teu filhinho!// (…) A terna Virgem chorava/ vendo tanta piedade/ naquele homem perdido/ pelo crime e a maldade/ pensava no seu filhinho/ tanta ternura e bondade!// Dimas continua ladrão mas despediu-se emocionado: Oh! menino formosíssimo/ entre toda geração!/ Se eu precisar algum dia/ ter a vossa proteção/ por vossa misericórdia/ tende de mim compaixão!// (…) Trinta e três anos depois/ Jesus foi crucificado/ justamente o Bom Ladrão/ foi preso e sentenciado/ para morrer mais Jesus/ já estava profetizado.// (…) Estava chegado o tempo/ profetizado e preciso/ de Jesus recompensá-lo/ e cheio de graça e riso/ respondeu: hoje entrarás/ comigo no Paraíso.//

A teologia do palhaço

O teólogo inglês Harvey Cox, num esboço de uma teologia do palhaço, cita São Paulo: “O que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens”(1Cor 1,25) e apresenta um Jesus palhaço: a personificação da festa e da fantasia, num tempo em que estão perdidas ambas. Lembra que os primeiros cristãos consideravam-se “loucos por causa do Reino de Deus”.

O pintor francês Georges Rouault(1871-1958) pintou um Jesus palhaço explicitamente. Em 1966, um Jesus palhaço do filme protestante  “A Parábola”(The Parable) chocou os visitantes da exposição Mundial de Nova Yorque.

Com o riso de Jesus, devolve-se à liturgia o aspecto lúdico. Na obra “Homo Ludens”, o historiador Huizinga fala da proximidade entre religião e jogo. O liturgista Romano Guardini, no seu livro “O Espírito da Liturgia”(1930) escreveu um capítulo intitulado ‘A liturgia como jogo’. O cômico está enraizado na fé. Num bendito popular ouvimos: Fui no céu jogar com Deus/ na mesa da comunhão/ Deus ganhou a minha alma/ e eu ganhei a salvação.//

O ensaista inglês Gilbert Keith Chesterton(1874-1936) chama a São Francisco de Assis de “Jongleur de Dieu”(jogral de Deus). Disse que o santo e seus companheiros espirituais praticavam a ‘ciência alegre’ do amor à dama pobreza. Eram irmãos menores na prática da verdadeira liberdade.

Segundo Chesterton, “São Francisco, bobo real do Rei do Paraíso, engolfava-se na pobreza com a mesma avidez de um homem que cavasse ouro”.[5]

Devéras admirável foi a sociedade medieval que foi capaz de criar ao lado do rei, a figura do bôbo da corte; colocaram assim um fator crítico ao lado de quem tem todo poder.

Harvey Cox ainda constata a volta do palhaço na cultura moderna, nos filmes de Charlie Chaplin aos de  Frederico Fellini, na música do bailado Petrouchka de Igor Stravinski(1882-1971), na obra de Picasso(1881-1973).

Por fim

Segundo o teólogo Hugo Rahner, “embora pareça uma heresia, o sentido do humor encontra-se na força da instituição religiosa; porque a ação do humor consiste em mostrar o tanto que as coisas terrestres e humanas ficam a quém das medidas de Deus.”[6] 

Conclusão de Harvey Cox: “O Cristo palhaço nos leva a uma valorização lúdica do passado e a uma negação cômica do fantasma de um futuro sem saída.”[7]

Frei Francisco van der Poel ofm
e-mail: freixico@uai.com.br

[1] Registrado em Ribeirão Preto.SP. 1994.
[2] MARTINS, Firmino.Pe. Folclore do Concelho de Vinhais. Vol.II. Lisboa, Imprensa Nacional, 1938. pp.133-134.
[3] BOTAS, Paulo Cézar Loureiro. Cultura, a concretização dos desejos. Festival de Inverno UFMG, Belo Horizonte, Julho/89. Mímeo. p.4-6.
[4] MORAIS FILHO, Mello; OTT, Carlos; et allii. Bailes Pastoris na Bahia. Salvador, Livr.Progresso Ed., 1957. p.237.
[5] CHESTERTON, G.K. São Francisco de Assis. Rio de Janeiro, Casa Ed.Vecchi Ltda., 1946. Cap.V: Le Jongleur de Dieu.  pp.75-79,84, 93.
[6] RAHNER, Hugo. Man at Play. New York, Herder and Herder, 1967. p.21.
[7] COX, Harvey. Het Narrenfeest.(Feast of the Fools). Bilthoven, Amboboeken, 1970. pp.163-184.

B i b l i o g r a f i a:
JÓNSSON, Jacob. "Humour and Irony in the New Testament, illuminated by parallels in the Talmud and Midrash". Leiden, E.J.Brill, 1985.
BAJTIN, Mijail. "La Cultura Popular en la Edad Media y en el Renacimiento."(El contexto de François Rabelais) Mexico, Alianza Universidad, 1987; fala da irreverência e da cultura do grotesco. –
SWAIN, Bárbara. “Fools and folly during the middle ages and the renaissance.” New York, Columbia University Press, 1932.
JACOBELLI, Maria Catarina. "Risus Paschalis."(El Fundamento Teologico del Placer Sexual.) Barcelona, Ed. Planeta, 1991.
 
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