Autor: Samuel R. Pinheiro
Vivemos numa sociedade em que um número considerável de pessoas e particularmente de líderes de opinião nos mass media (televisão, rádio, revistas e jornais principais de âmbito nacional) desprezam, ignoram e até condenam a influência da Igreja na dimensão social, cultural, política e económica.
Vivemos no tempo de um laicismo intolerante e algumas vezes feroz. Avizinham-se dias em que tememos que as convicções espirituais sejam banidas à força para as catacumbas do privado. A cultura pós-cristã está a ser substituída rapidamente por uma cultura anti-cristã sob a cobertura de uma inconsistente definição de tolerância e no embalo de uma multiculturalidade que só serve de pretexto para obliterar a cultura cristã. Para o português Dr. Durão Barroso, Presidente da União Europeia, a Europa deixou de ter cultura própria para ser um caldear de culturas, todas elas iguais em qualidade e valor. Será mesmo assim? (Revista “Visão”, 6-12 Janeiro 2005, José da Cruz Policarpo – Cardeal Patriarca, pp. 30).
A Igreja evangélica foi a impulsionadora da ideia da separação da Igreja do Estado, embora isso não deva significar que a Igreja ignore o Estado, nem que o Estado faça obstrução à Igreja. É de todo em todo desejável que entre um e outro existam protocolos de cooperação e exista um espaço salutar no sentido de a Igreja se mover no que à sociedade diz respeito, trazendo para ela toda uma intervenção rica em solidariedade, assistência social, promoção da pessoa humana, participação activa do debate cultural e dos valores que suportam o tecido social, etc. E as igrejas evangélicas em caso algum, no meu entender, se devem abster de pronunciar-se, publicamente ou não, sobre todas as matérias concernentes à vida do homem, mormente os espirituais e éticos que necessariamente têm os seus desdobramento sociais, culturais e políticos.
Mas também somos parte de uma Igreja em que muitos desvalorizam a influência e a intervenção do espiritual na vida social, cultural, política e económica. Parece-nos que somos uma geração que ainda não conseguiu libertar-se da síndroma de minoria e da mentalidade de cidadão de segunda classe. Temos uma postura meio envergonhada, meio inibida, não porque tenhamos vergonha de Cristo ou do Evangelho como “poder de Deus para salvação de todo aquele que crê”, mas por acanhamento cultural. Tenho a impressão de que à semelhança dos judeus no êxodo, ainda nos vemos como gafanhotos diante dos gigantes da cultura, da política, da ciência, da tecnologia, das artes, da literatura, dos mass media, do poder económico, etc.
Uma parte da sociedade tem uma perspectiva negativa da influência da Igreja nas estruturas sociais, culturais, políticas e económicas por um lado devido à postura da Igreja Católica Romana e o casamento, por interesse, entre o poder político e o religioso de que ela tem sido instrumento, e por outro, devido ao preconceito alimentado de muitas formas.
Face a estes factores também certos sectores das igrejas evangélicas acabam por temer e evitar dar relevo a essa influência e intervenção.
Afinal de contas quem influencia quem? É a sociedade responsável por alguma mentalidade evangélica, ou é a mentalidade evangélica de gueto responsável pela postura secular?
Um dos sinais desta tendência surge da parte de alguns evangélicos que consideram que o espiritual é apenas uma das partes em que se reparte a vivência do ser humano, e não a essência que percorre todas elas. Outro dos sinais manifesta-se no distanciamento da coisa política, económica, social e cultural. Ainda outra é a desconsideração do trabalho, do associativismo, do voluntariedade e da intervenção político-partidária como se a unção do Espírito e o poder de Deus na vida dos Seus filhos não se repercutisse nestas áreas, como se a vida social fosse um mal necessário e não um bem a projectar e a valorizar.
Citamos aqui o Relatório da Consulta Internacional realizada em Grand Rapids sob a presidência de John Stott, no segundo volume da Série Lausanne, publicado pela ABU sob o título “Evangelização e Responsabilidade Social”:
“(…) a acção social responsável que o evangelho bíblico coloca sobre os nossos ombros, e o “evangelho social” liberal, que foi uma perversão do verdadeiro evangelho, são coisas muito distintas. Como declara o Pacto de Lausanne, ‘nós rejeitamos como sendo apenas um sonho da vaidade humana a ideia de que o homem possa algum dia construir uma utopia nesta terra’ (Parágrafo 15).
Uma outra causa do divórcio entre evangelização e responsabilidade social é a dicotomia que se desenvolveu em nosso modo de pensar. Nossa tendência é contrapor totalmente as ideias de corpo e alma, indivíduo e sociedade, redenção e criação, graça e condição natural, céu e terra, justificação e justiça, fé e obras. A Bíblia certamente faz distinção entre essas ideias, mas faz também uma relação entre elas, instruindo-nos a manter cada um desses pares em equilíbrio dinâmico e criativo. É um erro separá-los, como faz o ‘dualismo’, como também é um erro confundi-los, como faz o ‘monismo’. E é por esta razão que o Pacto de Lausanne, ao falar sobre evangelização e envolvimento sócio-político, afirma que ambos são ‘parte do nosso dever cristão’ (Parágrafo 5).” (pp. 18)
Faço ainda referência a obra mais pertinentes que li sobre a influência da cosmovisão cristã na vida individual, social, cultural, profissional, política e económica do cristão cidadão permanente do Reino dos Céus e cidadão temporário do seu país, de Charles Colson com o título “E Agora Como Viveremos?” publicado pela CPAD.
Apenas uma citação para despertar o interesse:
“Evangelismo e renovação cultural são, ambas, tarefas divinamente ordenadas. Deus exercita a sua soberania de duas maneiras: através da graça salvadora e da graça comum. Estamos bem familiarizados com a graça salvadora; é o meio através do qual o poder de Deus chama pessoas que estão mortas em suas transgressões e pecados para uma nova vida em Cristo. Como servos de Deus, devemos ser agentes de sua graça salvadora, evangelizando e trazendo pessoas a Cristo. Mas poucos de nós realmente entendem a graça comum, que é o meio através do qual o poder de Deus sustenta a criação, retendo o pecado e o mal que resulta da Queda e que, de outra forma, dominaria sua criação como uma grande enchente. Como agentes da graça comum de Deus, somos chamados a ajudar a manter e renovar sua criação, a sustentar as instituições formadas da família e da sociedade, a buscar a ciência e a sabedoria, a criar obras de arte e beleza e a curar e ajudar aqueles que sofrem com os resultados da Queda.” (pp. 13)
Não existem estudos científicos, rigorosos e quantificados sobre a influência da Igreja evangélica na sociedade portuguesa por parte de autores cristãos e dos seus institutos de formação teológica, nem por parte das universidades seculares. Não temos, pelo menos em Portugal, e não conheço em português, contributos para o que poderíamos chamar a “doutrina social da Bíblia”, nem ensaios sobre “o mover do Espírito e as transformações sociais”, ou “o poder de Deus e a transformação das estruturas político-económicas”, ou ainda “cristianismo e compromisso social”.
Recentemente tive conhecimento do livro “Madeirenses Errantes” publicado pela editora Oficina do Livro e escrito pelo reputado jornalista Ferreira Fernandes que foi repórter do Diário Popular, O Jornal e redactor principal no Diário de Notícias, e actualmente é redactor principal da revista Sábado. É, talvez, um documento pioneiro, fora dos arraiais evangélicos, da sua história rica de significado espiritual na coisa social, cultural, política e económica, embora pelas poucas páginas que li o jornalista não resista ao que parece ser uma certa veia céptica e talvez mesmo pouco favorável aos protestantes. Li nos apartes, passados que são 30 anos do 25 de Abril de 1974, um não disfarçado alinhamento pela batuta católica romana que atingiu as raias do absurdo, do obscurantismo e da intolerância mais primária. Mais que não seja na ausência de uma clara condenação de tais actos que aparecem muitas vezes justificados pela “militância” protestante intolerável numa sociedade secularmente católica. Pode ser que esta minha leitura seja resultado dos traumas da exclusão subtil ou explícita e mordaz sentida desde criança até à adolescência, mas não creio.
Deixo aqui duas citações:
“Nesta história feita como se fosse de pedrinhas de encaixar, não é menor essa outra coincidência de terem nascido, em 1809 e no Reino Unido, duas crianças com destinos notáveis, inicialmente paralelos e tão divergentes depois. Robert Kalley e Charles Darwin: ambos estudaram Medicina, tornaram-se embarcadiços como cirurgiões de navio, andaram pelo mundo e regressaram à Grã-Bretanha.
Entretanto, aconteceu-lhes uma revolução nas crenças. Charles, que se tornara clérigo, apaixonou-se pela ciência e o seu principal livro, Sobre a Origem das Espécies por Meio da Selecção Natural, iria desacreditar, como nenhum outro, a verdade da Bíblia. Robert, que se afastou da religião da infância para voltar a ela com ganas de ovelha que reencontra o redil, seria o grande difusor da Bíblia por um mundo vasto e inexplorado, o de língua portuguesa.” (pp. 25,26)
“O que estragou a lua-de-mel entre o bom doutro escocês e as autoridades da Madeira? Foi estas se darem conta de que pela pele do benemérito furava o evangelizador. O benemérito das escolas ensinava a ler crianças e adultos por livros religiosos importados de Londres; o benemérito médico, antes de se debruçar sobre os corpos, fazia breves orações, e o doente nunca partia só com remédios mas também com uma fase dos Evangelhos escrita num bilhete; e, aos domingos, o benemérito cidadão abria a sua quinta – depois do Caminho do Monte, tinha arranjado casa em Santa Luzia – para quem quisesse ouvir a leitura das Sagradas Escrituras.” (pp. 41)
Estes respigos apoiam a nossa convicção que não podemos esperar que os meios de comunicação social secular nos dêem uma cobertura isenta, imparcial e com igualdade. Se queremos ter voz precisamos de apoiar e desenvolver os nossos próprios estudos e meios de divulgação.
Este é um exemplo histórico da influência da Igreja protestante na sociedade portuguesa umbilicalmente ligada à evangelização, e das reacções violentas desencadeadas. A este propósito a RTP1 realizou um documentário (17nov2004) e a Assessoria de Comunicações da Aliança Evangélica Portuguesa realizou um programa de Actualidades na rubrica “A Fé dos Homens” (31dez2004).
Saliento ainda as conferências do Prof. Dr. Jónatas Machado realizadas pela ASPEC (Associação de Profissionais e Empresários Cristãos) “Aqui e Agora – Séc. XXI” em que abordou temas como: “Fundamentalismos: Tolerância e Convicções” (24jun2002) e “Democracia: Sociedade e Igreja” (22jul2003) e pelo Seminário Teológico Baptista a propósito do seu 35º aniversário em que tratou o tema “Formação dos valores Democráticos” (26nov2004). Em todos eles e com uma profundidade notável o conferencista “assinalou algumas figuras históricas que foram fortemente influenciadas pela leitura da Bíblia e que estiveram na génese de valores muito importantes para nossa sociedade actual, como por exemplo o moderno direito internacional, a liberdade de expressão, de consciência e a liberdade religiosa, entre outros” (O Semeador Baptista, out./nov.2004, LXXVIII, n.º 1026, pp. 3).
O Instituto Bíblico Português – Escola Superior de Educação Teológica Evangélica tem nos últimos anos (2002 a 2005) levado a efeito fóruns de debate sobre a presença evangélica na sociedade portuguesa em múltiplas facetas considerando temas como: “Denominacionalismo: um mal necessário?” (5março2004), “Carismáticos, Conservadores e Pentecostais: Existe qualidade de comunhão em Portugal?” (19março2004), “Existe saudável ‘competição’ religiosa em Portugal?” (14maio2004), “Quão positivos são os resultados da Nova Lei da Liberdade Religiosa em Portugal?” (4jun2004), “IVG – Despenalização? – Qual, porquê e para quê?” (22out2004), “Portugal e a Lusofonia: CPLP – Qual o papel do religioso no espaço lusófono?” (14jan2005).
Tenho forte convicção que existe uma influência considerável da Igreja evangélica na sociedade portuguesa, com uma tendência cada vez mais crescente nas últimas décadas, apesar de minoritária, e da perseguição e ostracismo a que foi votada até bem pouco tempo atrás e que em muitos aspectos ainda continua, assim como da sociedade na Igreja.
Existe igualmente uma fundamentação bíblica sólida para que a Igreja como um todo e cada membro em particular desenvolvam e aprofundem todas as implicações e vertentes da sua intervenção na sociedade, assim como também existe uma série de advertências bíblicas para que nos mantenhamos sempre atentos e vigilantes, de modo a não sermos corrompidos pela cultura envolvente e tenhamos a nossa fé carcomida nas suas raízes, perdendo desse modo a vitalidade na função de luz e sal que Jesus declarou a nosso respeito quando a referiu aos seus discípulos. “Vós sois o sal da terra…” (Mateus 5:13). “Vós sois a luz do mundo…” (Mateus 5:14). O Espírito Santo pelo apóstolo Paulo assim nos adverte: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus que apresenteis os vossos corpos por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que é o vosso culto racional. e não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus.” (Romanos 12:1,2).
A este propósito abro um parêntesis para referir o livro da autoria do teólogo inglês John Stott, intitulado “Ouça o Espírito, Ouça o Mundo”, publicado pela ABU, e que recomendo vivamente a todos os que querem contextualizar a sua presença e intervenção enquanto cristãos actuantes. O subtítulo da obra é sugestivo e verdadeiro no que concerne ao seu conteúdo: “Como ser um cristão contemporâneo”. O ilustre pensador evangélico escreve a dado passo:
“Recusemo-nos a nos tornar, ou tão absorvidos com a Palavra que acabemos fugindo dela e deixando de confrontá-la com o mundo, ou tão absorvidos com o mundo que nos conformemos com ele, deixando de submetê-lo ao julgamento da Palavra. Escapismo e conformismo são erros opostos, mas nenhum dos dois é uma opção cristã.” (pp. 29)
Permitam-me inclusive afirmar que considero artificial a separação que em muitos meios se faz entre o profano e o sagrado, entre o espiritual e o secular.
Deus é muito claro a este propósito:
“(…) quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.” (1 Coríntios 10:31)
“E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em acção, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.” (Colossenses 3:17)
“Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor, e não para homens.” (Colossenses 3:23)
A influência social da Igreja é notória e em muitos dos casos é francamente positiva. Permita-se-nos dizer que também em relação à Igreja Católica Romana esta influência nem sempre é negativa e, salvaguardando a necessária atenção para que os planos doutrinário e assistencial não se confundam, existe uma certa margem benéfica de cooperação.
Ressaltamos a influência da Igreja evangélica, antes de tudo o mais, na proclamação do evangelho para a salvação, com uma forte ênfase nas repercussões eternas. Esta é a razão de ser essencial da Igreja e de cada um de nós como parte dela. Tudo o que de alguma maneira possa tentar diminuir esta centralidade deve ser, no nosso entender, radicalmente recusado. A missão por excelência da Igreja está na proclamação e na vivência pessoal do evangelho. A proclamação está intimamente ligada à vivência e à proclamação. O viver deve apontar para a Fonte dessa vida; o discurso e o apontar para a Fonte deve ser feito através dos sinais da vida quotidiana. Jesus foi bem claro a este propósito e a Igreja primitiva manteve-se dentro desse compromisso. Ele é a vida que transforma vidas. A influência da Igreja na sociedade começa por ser sobrenatural.
Jesus Cristo ordenou aos Seus seguidores:
“Jesus, aproximando-se, falou-lhes, dizendo: Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado. E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.” (Mateus 28:18-20)
“Finalmente, apareceu Jesus aos onze, quando estavam à mesa, e censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, porque não deram crédito aos que o tinham visto já ressuscitado. E disse-lhes: Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for baptizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado. Estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem: em meu nome expelirão demónios; falarão novas línguas; pegarão em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados.” (Marcos 16:14-18)
“A seguir Jesus lhes disse: São estas as palavras que eu vos falei, estando ainda convosco, que importava se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. Então lhes abriu o entendimento para compreenderem as Escrituras; e lhes disse: Assim está escrito que o Cristo havia de padecer, e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que em seu nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados, a todas as nações, começando de Jerusalém. Vós sois testemunhas destas coisas. Eis que envio sobre vós a promessa de meu Pai; permanecei, pois, na cidade, até que do alto sejais revestidos de poder.” (Lucas 24:44-49)
“Ao cair da tarde daquele dia, o primeiro da semana, trancadas as portas da casa onde estavam os discípulos, com medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco! E, dizendo isto, lhes mostrou as mãos e o lado. Alegraram-se, portanto, os discípulos ao verem o Senhor. Disse-lhes, pois, Jesus outra vez: Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio. E, havendo dito isto, soprou sobre eles, e disse-lhes: Recebi o Espírito Santo. Se de alguns perdoardes os pecados, são-lhes perdoados; se lhos retiverdes, são retidos.” (João 20:19-23)
“Então os que estavam reunidos lhe perguntavam: Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel? Respondeu-lhes: Não vos compete conhecer tempos ou épocas que o Pai reservou para sua exclusiva autoridade; mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até aos confins da terra. Ditas estas palavras, foi Jesus elevado às alturas, à vista deles, e uma nuvem o encobriu dos seus olhos. E, estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto Jesus subia, eis que dois varões vestidos de branco, se puseram ao lado deles, e lhes perguntaram: Varões galileus, por que estais olhando para as alturas? Esse Jesus que dentre vós foi assunto ao céu, assim virá do modo como o vistes subir.” (Actos 1:6-11)
No início da Igreja encontramos um relatório eloquente acerca do sucedido:
“E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Em cada alma havia temor; e muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos.
Todos os que creram estavam juntos, e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade.
Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa, e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (Actos 2:42-47)
OS PRESSUPOSTOS DA INFLUÊNCIA ATRAVÉS DA COSMOVISÃO BÍBLICA
Existem alguns estudos que referem a importância decisiva do conceito bíblico de Deus como um ser pessoal trino e da cosmovisão cristã, no despontar e o desenvolvimento da ciência.
Citamos o livro “A Natureza e o Carácter de Deus” publicado pela Editora Vida, da autoria de Winkie A. Pratney:
“Talvez a maior oposição actual à doutrina da criação venha de uma disciplina que é, estranhamente, e em última análise, sua filha – o mundo da ciência! Robert Blaikie mostrou que a ciência deve suas origens a cinco influências: 1) a geometria grega (enquanto substituía o enfoque grego do conhecimento dedutivo a partir de um princípio por observações e experimentos), 2) as contribuições acumuladas da astronomia clássica, 3) a aritmética e álgebra árabes, 4) um enfoque que combinava a verdade tanto com o pensamento racional quanto com o facto empírico, e – finalmente e mais importante – 5) uma crença ‘na regularidade da natureza, a racionalidade de Deus e a certeza de que o universo realmente existe’. Veremos que ‘ Deus como Criador do mundo é nosso ponto inicial e fundamental para toda a ciência verdadeira. Reconhecer o que ele é (ontologia) também afecta profundamente a área de como podemos conhecer (epistemologia), o fundamento de todo o conhecimento verdadeiro’.”
“Quais são as implicações de Deus ser o Criador no domínio da ciência? Se esse conceito lançou as bases da ciência verdadeira, por que a teologia é com tanta frequência divorciada da ciência hoje? Thomas F. Torrance, em seu The fround and grammar of Theology [A base e a gramática da teologia], argumenta de forma convincente que nunca deveria ter havido tal dicotomia, e que as sementes dessa desconfiança mútua foram semeadas pela reintrodução das ideias dualistas do oriente na teologia, após a época da igreja primitiva.” (pp. 160,161)
Apesar disso todos já vamos sentindo na pele os efeitos destrutivos da aplicação de alguns desses conhecimentos na tecnologia e na indústria da civilização ocidental. Abro um parêntesis para citar aqui uma notícia assinada pelo jornalista Alfredo Maia do Jornal de Notícias, de 25 de Janeiro de 2005, e que é bem elucidativa da situação em que o Planeta Terra se encontra:
“A Terra atravessa a pior crise desde a extinção dos dinossáurios, há 6 5 milhões de anos. Catastrófico, o aviso foi feito ontem na Paris gelada (os termómetros baixaram aos quatro graus centígrados negativos), onde 1200 cientistas e decisores de 30 países se reuniram para discutir o futuro da vida no Planeta. Falando na abertura da Conferência Internacional sobre Biodiversidade, Ciência e Governabilidade, o director do Programa das Nações Unidas para o Ambiente, Klaus Toepfer, pediu à comunidade internacional que não repita os erros humanos. E o homem, dizem os cientistas, é responsável pela extinção de espécies a um ritmo cem a mil vezes superior ao natural. Segundo a União Mundial para a Natureza, 15.589 espécies estão ameaçadas, ou seja, uma de mamífero em cada quatro, uma de ave em cada três, uma de anfíbio em cada três, por causa da intervenção humana nos seus habitats e devido às alterações climáticas.
‘Quarenta e cinco por cento das florestas originais desapareceram, 10%dos corais estão gravemente ameaçados’, avisou o secretário e executivo da Convenção da Biodiversidade, Hamdallah Zedan. ‘Sobre todos os continentes e em todos os oceanos’, clamou o presidente francês, Jacques Chirac, exortando à criação de um grupo internacional de cientistas para melhorar os conhecimentos e alertar os decisores políticos e prometendo ele próprio criar um parque nacional na Guiana Francesa e proteger a barreira de coral da Nova Caledónia. Demasiado tarde? Nos territórios ultramarinos, a França é responsável por 10% dos recifes de coral do Planeta, 20% dos atóis e mais de milhões de hectares de floresta amazónica (Guiana).” (Jornal de Notícias, 25.1.2005, pp. 3)
Que outra instituição tem uma palavra de esperança a não ser a Igreja que acredita que Jesus vai voltar e também aí a motivação e a razão de ser para não embarcar pessoalmente na destruição do Planeta. Embora eu creia que a questão tem uma dimensão global e o processo do sistema industrial e tecnológico é imparável, o que pode concorrer para que individualmente as pessoas se tornem insensíveis. Pelo contrário o cristão acreditando na acção redentora do Criador, tem razões de sobejo para não se alienar e não se tornar prisioneira do desespero ou do “tanto faz”.
Segundo a Bíblia o papel do homem na criação é de um mordomo e não de um tirano. Precisamos fomentar uma consciência ecológica fundamentada e inspirada biblicamente. Aqui é decisivo verificar quais são as reais motivações e qual é a cosmovisão que anima as propostas apresentadas pelos ambientalistas. Podemos estar de acordo em relação a determinadas propostas e estarmos totalmente em desacordo em relação aos seus pressupostos espirituais. Pode parecer que o mais importante são as propostas e os objectivos, mas mais cedo ou mais tarde vamos verificar que pressupostos errados acabam por distorcer e comprometer os objectivos a longo prazo. Neste âmbito cabe aqui uma referência à organização ecologista evangélica em Portugal “A Rocha” e ao livro publicado pela ABU de Peter Harris com o título “A Rocha – Uma Comunidade Evangélica Lutando pela Conservação do Meio Ambiente”.
Onde quer que o avivamento espiritual de cunho bíblico eclodiu declarou guerra ao analfabetismo, à alienação, ao vício, à violência, ao absentismo, à miséria, à doença, à morte prematura, etc.
Se a cura divina é um facto bem patente na vida de muitos cristãos não é menos marcante a prevenção que os princípios bíblicos de vida acabam por realizar. A influência da Igreja na sociedade move-se na dimensão sobrenatural e na dimensão natural. Tanto uma como outra estão interligadas na sua dinâmica. Não há qualquer dicotomia entre elas o natural apenas é para nós o sobrenatural que acontece todos os dias.
A assistência social é uma vertente por excelência da acção da Igreja com uma forte influência sobre a sociedade tão carecida dessas acções. Esta acção dirige-se antes de tudo o mais aos domésticos da fé, mas alarga-se a todos os que na sociedade dela necessitam e a Igreja tem possibilidade de alcançar.
A Bíblia tem referências claras à acção nestes domínios. Esta foi a razão pela qual os diáconos foram instituídos segundo o relato que encontramos no livro de Actos:
“Ora, naqueles dias, multiplicando-se o número dos discípulos, houve murmuração dos helenistas contra os hebreus, porque as viúvas deles estavam sendo esquecidas na distribuição diária. Então os doze convocaram a comunidade dos discípulos e disseram: Não é razoável que nós abandonemos a palavra de Deus para servir às mesas. Mas, irmãos, escolhei dentre vós sete homens de boa reputação, cheios do Espírito e de sabedoria, aos quais encarregaremos deste serviço; e, quanto a nós, nos consagraremos à oração e ao ministério da palavra. O parecer agradou a toda a comunidade; e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Pármenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentara-nos perante os apóstolos e estes, orando, lhes impuseram as mãos. Crescia a palavra de Deus e, em Jerusalém se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé.” (Actos 6:1-7)
É interessante reparar também que esta foi a chamada de atenção que os apóstolos deixaram a Paulo segundo ele mesmo refere:
“(…) e, quando conheceram a graça que me foi dada, Tiago, Cefas e João, que eram reputadas colunas, me estenderam, a mim e a Barnabé, a destra de comunhão, a fim de que nós fôssemos para os gentios e eles para a circuncisão; recomendando-nos somente que nos lembrássemos dos pobres, o que também me esforcei por fazer.” (Gálatas 2:9,10)
O mesmo é citado pelo apóstolo João em relação a todos os cristãos membros da Igreja de Jesus Cristo:
“Ora, aquele que possuir recursos deste mundo e vir a seu irmão padecer necessidade e fechar-lhe o seu coração, como pode permanecer nele o amor de Deus? Filhinhos, não amemos de palavra, nem de língua, mas de facto e de verdade.” (1 João 3:17,18)
Textos que fazem eco do que o próprio Senhor Jesus Cristo ensinou e reforçou tendo em vista a recompensa eterna:
“Quando vier o Filho do homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos à esquerda; então dia o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai! entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; era forasteiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me. Então perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer? ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te hospedamos? ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que sempre o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.
Então o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos, Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; sendo forasteiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; achando-me enfermo e preso não fostes ver-me. E eles lhe perguntarão: Senhor, quando foi que te vimos com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso, e não te assistimos? Então lhes responderá: em verdade vos digo que sempre que o deixastes de fazer a um destes mais pequeninos, a mim o deixastes de fazer.
E irão estes para o castigo eterno, porém os justos para a vida eterna.” (Mateus 25:31-46)
“E eis que certo homem, intérprete da lei, se levantou com o intuito de pôr Jesus em provas, e disse-lhe. Mestre, que farei para herdar a vida eterna? Então Jesus lhe perguntou: Que está escrito na lei? Como interpretas? A isto ele respondeu: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento; e amarás o teu próximo como a ti mesmo. Então Jesus lhe disse: Respondeste correctamente; faze isto, e viverás.
Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: Quem é o meu próximo?
Jesus prosseguiu, dizendo: Certo homem descia de Jerusalém para Jericó, e veio a cair em mãos de salteadores, os quais, depois de tudo lhe roubarem e lhe causarem muitos ferimentos, retiraram-se deixando-o semimorto. Casualmente descia um sacerdote por aquele mesmo caminho e, vendo-o, passou de largo. Semelhantemente um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, também passou de largo. Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele. E, chegando-se, pensou-lhe os ferimentos, aplicando-lhes óleo e vinho; e, colocando-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele. No dia seguinte tirou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: Cuida deste homem e, se alguma coisa gastares a mais, eu to indemnizarei quando voltar.
Qual destes três te parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu-lhe o intérprete da lei: O que usou de misericórdia para com ele. Então lhe disse: Vai, e procede tu de igual modo.” (Lucas 10:25-37)
A revelação de Deus como pessoa e a Sua encarnação pessoal em Jesus Cristo têm uma repercussão decisiva no que é mais essencial e determinante na vida do homem e das sociedades: os relacionamentos, a afectividade, o amor incondicional, a identificação, a abnegação, a negação pessoal e o serviço. O evangelho impele os homens à solidariedade, ao pacifismo, à tolerância e ao respeito mútuo sem escamotear a verdade e a denúncia da mentira e das injustiças. Existe hoje em dia uma falsa definição de tolerância que procura escamotear o saudável confronto de convicções, querendo meter no mesmo saco o que é contraditório.
É mais do que evidente a forte influência da revelação bíblica na criação artística, seja ela literária, plástica ou musical o que é sem dúvida alguma resultado de sermos à imagem e semelhança de um Deus plenamente criativo. O nosso património ficaria reduzido a muito pouco se lhe fosse subtraído tudo o que se fica a dever à inspiração do texto sagrado e da fé. Neste particular há ainda que estabelecer uma destrinça entre os objectos que são parte da idolatria absolutamente condenada por Deus, e a expressão artística que consubstanciam. Até mesmo as produções mais reprováveis podem transpirar algum toque da capacidade inventiva e criadora que Deus nos conferiu.
Uma outra contribuição decisiva e que não é ressaltada porque seria tida como politicamente incorrecta, é o facto de que a comum dignidade humana da imagem e semelhança de Deus e a consequente negação de qualquer tipo de casta e de karma inexorável, ou de uma fuga para um nirvana qualquer está na base dos sistemas de segurança social, de saúde e dos cuidados médicos em culturas e civilizações profundamente influenciadas pelo cristianismo. Faltam estudos comparativos sérios e creio que dificilmente eles surgirão pelo que poderão comportar de incómodo no clima de fundamentalismo e intolerância religiosos que se vive, do modo como cada religião influenciou ao longo da história e influencia hoje em dia as políticas de assistência hospitalar, de saúde, de cuidado pelos mais desprotegidos, dos sem-abrigo e desempregados, das crianças, dos órfãos, das viúvas, das mães solteiras, dos idosos; das políticas da educação e da investigação científica; das organizações não governamentais que actuam no apoio de catástrofes e calamidades, fomes, epidemias, etc. Fico com a impressão de que quando ocorrem catástrofes como aquela que se abateu sobre o sudeste asiático em Dezembro de 2004, aquando do tsunami que varreu a costa e matou em segundos um número superior a 200.000 pessoas, que o grosso dos donativos com vista à assistência social e reconstrução humanitária tem por trás nações de maioria cristã.
O aparecimento dos sindicatos para a defesa dos direitos dos operários e demais trabalhadores tem as suas raízes na igual dignidade de todos os homens, criados à imagem e semelhança de Deus.
Os dez mandamentos, o sermão da montanha e todas as restantes formulações dos valores bíblicos em conjunto com as doutrinas da recompensa para os salvos e do juízo final, são um esteio para a vivência em sociedade. Não fora a crença num conjunto de valores eternos, imutáveis e universais fundamentadas na natureza pessoal de Deus e teríamos provavelmente já desaparecido.
Mas acima de tudo é na doutrina da graça que encontramos um impulso decisivo na influência da Igreja numa sociedade marcada pela concorrência, pela competição, pelo salve-se quem puder. Perante uma cultura em que o ter e o fazer têm prevalência sobre o ser e em que este está à mercê daqueles, o evangelho ressalta o ser como primordial. Mas o evangelho não é apenas o enunciado de boas intenções ou o discorrer de uma filosofia própria de contos de fadas, de utopias ou de mitologias. O evangelho é o próprio Deus, criador dos céus e da terra, o Senhor de todo o Universo, entrando na história dos homens, despindo-se da Sua glória, esvaziando-se de todo o Seu esplendor, abrindo mão dos Seus atributos de omnisciência, omnipotência e omnipresença, para viver entre nós como homem e entre nós privilegiar nos seus contactos e amizades os mais pobres, os mais negligenciados, os mais rejeitados. Ele mesmo rejeitado, proscrito, amaldiçoado, injustiçado, oprimido, esmagado. Esta sim é quanto a nós a marca por excelência da influência cristã na sociedade pré-moderna, moderna e pós-moderna.
Numa era profundamente marcada pelo modelo evolucionista não apenas biológico e genético, mas social, económico e moral, a graça soa como escândalo e loucura, mas é esse escândalo e loucura que provêm a salvação no tempo e para a eternidade.
Fazemos aqui uma referência indispensável à obra de Philip Yancey “Maravilhosa Graça”, em que a marca de Cristo aparece desvendada desde a relação familiar até às relações entre os blocos políticos, económicos e militares. No capítulo “A Nova Matemática da Graça” o autor escreve: “O mundo é governado pela ausência de graça. Tudo depende do que eu faço. Tenho de fazer os pontos. O reino de Jesus nos chama para trilhar outro caminho, um caminho que não depende de nossas realizações, mas, sim, da realização dele. Nós não temos de realizar, mas apenas seguir. Ele já ganhou para nós a preciosa vitória da aceitação de Deus.” (pp. 73)
Referimos igualmente a sua obra “Deus Sabe que Sofremos” como demonstração da influência de um médico cristão entre os que sofrem porque não sentem a dor, numa compreensão interessantíssima do problema do sofrimento do ponto de vista bíblico e da ciência médica.
Pensamos que só quando do arrebatamento da Igreja é que verdadeiramente e já numa segunda etapa se aquilatará da importância e relevância da Igreja para a estabilidade e justiça sociais.
Abro um parêntesis para referir como o dízimo é um sinal marcante da Igreja numa sociedade profundamente egoísta e que prima pela desigualdade, alimentando-a e necessitando dela para promover um desenvolvimento destrutivo e ruinoso como se vê hoje em dia. Se o comunismo caiu estrondosamente no século passado, o capitalismo e o liberalismo económico não está muito bem de saúde. A leitura do capítulo 18 do livro do Apocalipse sobre a Queda de Babilónia, dos lamentos dos seus admiradores e da sua ruína completa e definitiva é interessante neste contexto.
INFLUÊNCIA DA IGREJA DISPERSA E INFILTRADA
Analisemos a influência da Igreja na sociedade em primeiro lugar no que podemos considerar a Igreja infiltrada, espalhada, dispersa, penetrando a sociedade, pessoa a pessoa, em cada um dos seus membros, discípulos de Jesus Cristo vivendo a vida cristã no âmbito da família, da vizinhança, do emprego e de todos os círculos em que possam estar envolvidos sejam eles culturais, artísticos, desportivos, políticos, etc.
Cada um dos seguidores de Jesus individualmente considerado tem um impacto insubstituível no seu raio de acção. Onde quer que esteja, qualquer que seja o momento da história em que se mova, Deus tem um propósito e um plano para ele.
Há como que uma acção “subversiva” em que cada filho de Deus ilumina e salga o mundo à sua volta.
É na família, nos vínculos matrimoniais e conjugais que privilegiadamente se regista essa influência. Não cabe em nenhuma estatística a influência que cada pai e mãe deixam na sociedade através do amor, do afecto, do respeito mútuo, da ajuda, do diálogo e da amizade que se vivem no lar.
A educação dos filhos é semente que até que Jesus volte há-de multiplicar-se em influências múltiplas.
A vizinhança é igualmente marcada pela presença e acção dos filhos de Deus. Os relacionamentos de amizade são determinantes para a expressão da fé. O bom cheiro repercute-se junto dos que mais perto se encontram. As cartas vivas são lidas pelos que moram ao lado.
A esfera do emprego é um contributo decisivo para a sociedade quando é vivida de acordo com os parâmetros bíblicos de excelência, serviço, dedicação, integridade, honestidade, verdade e respeito. Como é vasta a influência de cada um e de todos os discípulos de Jesus como alunos e professores, como funcionários e operários, como pescadores e agricultores, como engenheiros e arquitectos, como médicos e enfermeiros, como técnicos e artistas, como empresários e trabalhadores quando animados pelo Espírito de Cristo e movidos, também aí pela unção do Santo.
Mas é saudável que a participação e envolvimento do cristão enquanto cidadão se estenda a outros domínios para lá do seu emprego, vizinhança e família, como é o caso das várias associações, organizações e instituições que desenvolvem projectos culturais, assistenciais, desportivos e políticos.
Uma vida transformada provoca mudanças e transformações no mundo à nossa volta e aponta para Aquele que é o agente e motor dessa mudança e transformação. Diferentes para fazer a diferença.
Há uma dimensão de missão, há um mandato cultural na vivência do evangelho que provoca alterações nas estruturas e nos relacionamentos pessoais. Transformados pela relação com Deus para provocar transformação nos relacionamentos sociais. Pessoa a pessoa, indivíduo a indivíduo, deixando marcas que o Espírito Santo usa para levar outros à salvação.
O texto bíblico faz eco dessa influência necessariamente com uma linguagem distinta daquela que hoje utilizamos, mas cujo sentido está a ela vinculado.
Família:
“Vós, mulheres, estai sujeitas a vosso próprio marido, como convém no Senhor. Vós, maridos, amai a vossa mulher e não vos irriteis contra ela. Vós, filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isso é agradável ao Senhor. Vós, pais, não irriteis a vossos filhos, para que não percam o ânimo.” (Colossenses 3:18-21)
(Efésios 5:22-33 – O lar cristão: marido e mulher)
(Efésios 6:1-4 – Filhos e pais)
(I Pedro 3:1-7 – A vida exemplar cristã: deveres dos casados)
Mercado de trabalho:
“Vós, servos, obedecei em tudo a vosso senhor segundo a carne, não servindo só na aparência, como para agradar aos homens, mas em simplicidade de coração, temendo a Deus. E, tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como ao Senhor e não aos homens, sabendo que recebereis do Senhor o galardão da herança, porque a Cristo, o Senhor, servis. Mas quem fizer agravo receberá o agravo que fizer, pois não há acepção de pessoas. Vós, senhores, fazei o que for de justiça e equidade a vossos servos, sabendo que também tendes um Senhor nos céus.” (Colossenses 3:22-25; 4:1)
(Efésios 6:5-9 – Servos e senhores)
(I Timóteo 6:1,2)
Estado e respectivas autoridades:
“Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade, resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação. Porque os magistrados não são para temor quando se faz o bem, e, sim, quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem, e terás louvor dela; visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem. Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo que ela traz a espada; pois é ministro de deus, vingador, para castigar o que pratica o mal.
É necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por causa do temor da punição, mas também por dever de consciência. Por esse motivo também pagais tributos: porque são ministros de Deus, atendendo constantemente a este serviço.
Pagai a todos o que lhes é devido: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem respeito, respeito; a quem honra, honra.” (Romanos 13:1-7)
(I Timóteo 2:1-4 – A prática da oração por todos os homens)
(Tito 3:1,2 – A obediência ás autoridades)
Esta vivência desperta o interesse e a curiosidade pelas razões que lhe assistem que apenas têm um foco – Jesus Cristo e o novo nascimento que Ele proporciona.
INFLUÊNCIA DA IGREJA COMO ORGANISMO ESPIRITUAL E INSTITUIÇÃO CIVIL E JURÍDICA
As igrejas evangélicas como organismos espirituais e instituições civis e jurídicas têm também uma influência com um peso significativo hoje em dia.
Esta influência faz sentir-se em domínios como:
– Apoio à terceira idade – apoio domiciliário, centros de dia, terapias ocupacionais, lares;
– Apoio à infância – infantários, escolas para o 1º ciclo, lares, adopção;
– Apoio à saúde – cuidados de saúde, prevenção das dependências;
– Apoio social – recuperação e inserção social de toxicodependentes, acolhimento de mães solteiras, apoio a reclusos, apoio a famílias disfuncionais, apoio aos sem abrigo, centros de alfabetização, lares para a terceira idade;
– Apoio à cultura – bibliotecas e mediatecas, periódicos, edição de livros sobre as mais diversas temáticas, produção de rádio e televisão;
– Apoio às artes – escolas de música, canto, drama, som e imagem, pintura, ateliers, seminários;
– Apoio transnacional – a mesma assistência além fronteiras.
Desfolhando o Prontuário Evangélico, publicado pelo Núcleo, tomámos nota de mais de uma centena de organizações nas mais diferentes áreas de intervenção social que representam parte do esforço e do labor das igrejas evangélicas no nosso país e que constituem sinais dessa influência cujos valores ainda estão por determinar, mas cujo impacto é mais importante do que qualquer estatística pode revelar. Isto para não falar no trabalho que as cerca de 1.371 igrejas evangélicas, segundo o levantamento do Núcleo publicado em 2002, desenvolvem internamente.
Existem nomes como a “COMACEP – Comissão para a Acção Educativa Evangélica nas Escolas Públicas”, “Desafio Jovem” e a “Associação de Beneficência Luso-Alemã – ABLA”, certamente entre outros, que têm uma repercussão pública de relevo a nível nacional e até internacional.
Se pode ser verdade que poderíamos fazer muito mais, não tenho uma avaliação negativa do trabalho social desenvolvido pelas igrejas evangélicas em Portugal. E se muito mais queremos ver feito precisamos acarinhar o que foi empreendido pelos que nos antecederam, com a humildade de nos interrogarmos se nas mesmas condições teríamos feito melhor.
INFLUÊNCIA POLÍTICA
A Igreja como organismo espiritual e organização com personalidade jurídica não tem intervenção politico-partidária embora, certamente, a sua cultura tenha influência na consciência, nos valores éticos tanto individuais quanto sociais dos seus membros, e estes tenham, e é desejável que o tenham, uma participação política, quer seja nos actos eleitorais, quer seja no envolvimento político partidário.
Na minha análise a Igreja, a sua liderança em particular e os seus membros em geral, valorizam na sua vida e influência, mais do que tudo, a vertente ética, principalmente a que se dirige à bioética nas matérias do aborto, da eutanásia, do suicídio assistido, da reprodução com o recurso a meios laboratoriais; à sexualidade no que diz respeito aos meios contraceptivos, à homossexualidade e ao lesbianismo.
Normalmente ficam de fora as referências, tomadas de posição e consciencialização sobre a injustiça social na distribuição da riqueza, as políticas da família, educação, saúde, segurança e emprego, os modelos de desenvolvimento, os modelos económicos, etc.
Na minha opinião tanto uma como outra são morais. Um gestor corrupto, um cidadão que foge às suas responsabilidades fiscais é tão imoral quanto um homossexual ou uma prostituta, ou quem pratica o aborto.
Se por um lado se espera que como cristãos não pratiquemos o adultério, também não é menos verdade que se espera que sejamos trabalhadores cumpridores, empresários escrupulosos, cidadãos que observam as suas obrigações fiscais.
Se por um lado como pais ou como filhos somos chamados a ter uma postura de respeito e atenção, também como colegas e vizinhos somos chamados à solidariedade e ao serviço.
Estamos num período eleitoral e, ao olhamos para o espectro político que nos é oferecido, verificamos a ausência de uma proposta politico-partidária que concilie a vertente ética e a justiça social de forma consistente.
Ao que julgamos saber a Europa do norte, até algum tempo atrás e ao contrário do que acontece no sul, tinha partidos políticos cujos programas, de inspiração reformada, defendiam políticas em que tanto os valores da ética da vida e da sexualidade eram tidos em consideração, como as políticas chamadas sociais, com especial atenção para a família, os idosos, os mais carenciados, desprotegidos, pessoas com deficiência, incapacitados de vária ordem, etc.
No nosso parecer está a faltar em Portugal uma forte influência sobre o centro esquerda para que a política que tem que ver com as dimensões éticas da vida alinhem pela revelação bíblica, ou sobre o centro direita para que as políticas sociais tenham em consideração os valores bíblicos relativos aos mais desfavorecidos.
O apóstolo Tiago pelo Espírito Santo espevita a consciência social por uma maior igualdade de oportunidades, exigência no trabalho, mordomia dos recursos, justiça na distribuição da riqueza produzida e solidariedade para com os mais carenciados mesmo aqueles que o são, porventura, por falta de responsabilidade e até por dependências ruinosas.
“Atendei, agora, ricos, chorai lamentando, por causa das vossas desventuras, que vos sobrevirão. As vossas riquezas estão corruptas e as vossas roupagens comidas de traça, o vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos, e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias. Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até aos ouvidos do Senhor do Exércitos. Tendes vivido regaladamente sobre a terra. Tendes vivido nos prazeres. Tendes engordado os vossos corações, em dia de matança. Tendes condenado e matado o justo, sem que ele vos faça resistência.” (Tiago 5:1-6)
Do Velho Testamento cito o texto que nos é dado através do profeta Isaías, no capítulo 58, versículos 6 a 10: “Porventura não é este o jejum que escolhi, que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo o jugo? Porventura não é também que repartas o teu pão com o faminto, e recolhas em casa os pobres desabrigados, e se vires o nu, o cubras, e não te esqueças do teu semelhante? Então romperá a tua luz como a alva, a tua cura brotará sem detença, a tua justiça irá adiante de ti, e a glória do Senhor será a tua retaguarda; então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás por socorro, e ele te dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o dedo que ameaça, o falar injurioso; se abrires a tua alma ao faminto, e fartares a alma aflita, então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio-dia.” (Isaías 58:6-10)
Permita-se-nos algumas considerações sobre as questões éticas que hoje se nos colocam como igreja e como membros individuais.
O ordenamento jurídico nunca poderá implantar o Reino de Deus, porque este é constituído por homens e mulheres transformados pelo poder de Deus, que são filhos de Deus, que nasceram de novo, foram justificados e santificados para viverem de modo santo e justo.
Se a lei permite o que Deus proíbe, o cristão bíblico obedece ao que Deus diz e não “aproveita” a ocasião da permissividade da lei humana. O que é ou não pecado é definido segundo a Palavra de Deus e não segundo o costume ou a lei humana.
Pessoalmente partilho da opinião de que a lei humana nunca pode apropriar-se da penalidade extrema da lei divina, porque só Deus está em condições de exercê-la e porque só verdadeiros e genuínos servos de Deus estavam em condições de aplicá-la. Daí que não concordo em absoluto com a pena de morte.
Decorre também daqui que à luz da Bíblia não é possível termos hoje em dia um Estado teocrático em que a lei divina é imposta aos cidadãos, mesmo que estes maioritariamente ou minoritariamente a respeitem. A liberdade do homem pecar existe à luz da revelação divina embora o Estado democrático deva estabelecer limites à conduta individual e dos grupos, sem o que a convivência social se torna impossível. A sociedade tem tudo a beneficiar em que esses princípios sejam inspirados na ética cristã, mas daí à concepção de um Estado teocrático vai uma grande distância.
Existindo um referendo sobre um determinado comportamento que envolve princípios éticos definidos biblicamente o voto do cristão evangélico no nosso entender deve pautar-se pelas suas convicções fundamentadas biblicamente. Embora como cristão não tenha o direito de impor as minhas convicções a quem quer que seja, ao ser chamado a exprimir a minha opção devo, no meu entender, ser coerente com a ética cristã porque ela será o melhor para a sociedade.
Quando a Igreja é confundida pela sua militância com uma maioria moral, existe o perigo de a sua natureza e fim último ser distorcido gravemente. Na nossa ideia a Igreja é muito mais do que apenas um baluarte de regras morais e de catecismos éticos, ela é, antes de tudo o mais, portadora e demonstradora, na prática da vida quotidiana, da graça divina que envolve esperança e perdão, amor incondicional e transformação. Sendo assim, mais do que condenar a homossexualidade e o aborto, é necessário que os que por eles estão enredados entendam pelas nossas atitudes e palavras a real possibilidade de arrependimento e conversão, perdão e nova vida por Deus proporcionada.
Nas propostas políticas mais do que defender a penalização das transgressões ou contestar a sua despenalização, deve exigir-se políticas de prevenção e a acção da Igreja será sempre no sentido de promover a transformação que leva a um novo estilo de vida.
Um político cristão será confrontado com decisões em que não será possível sempre implementar o desejável do ponto de vista moral cristão, mas o possível, o que não significa ceder à corrupção e à injustiça. Um político evangélico nem sempre agradará a certos sectores da igreja, o que não quer dizer forçosamente que esteja a contrariar os valores e princípios bíblicos.
DESVIOS A CONSIDERAR
Não podemos escamotear as manchas que marcaram a postura espiritual, ética e social da Igreja como foi o caso da escravatura, do racismo e da xenofobia, do apartheid e até do nazismo, e outras que ainda infelizmente marcam.
Em todos esses momentos sempre houve cristãos que levantaram a sua voz, marcaram com a sua vida e até pagaram com o seu sangue uma postura diferente.
Isso serve para lembrar-nos como em todo e em qualquer caso sempre estamos à mercê da graça divina e não somos perfeitos, mas temos um Deus que é perfeito. Isso não serve de desculpa para branquearmos os erros do passado, nem negligenciarmos as nossas responsabilidades presentes. Também aqui é verdade o desafio do Senhor: “Quem dentre vós estiver sem pecado seja o primeiro a atirar a pedra”. O século passado foi pródigo em mostrar os desmandos da incredulidade, do cepticismo, do ateísmo e agnosticismo.
O livro de Philip Yancey “Alma Sobrevivente” da Editora Mundo Cristão denuncia alguns dos aspectos mais tenebrosos da história da Igreja, e o livro de Erwin Lutzer “A Cruz de Hitler”, da Editora Vida, dá-nos uma panorâmica histórica muito pertinente do que foi a conivência de alguns sectores da igreja alemã protestante e católica durante o regime nazi, apontando alguns aspectos que nos dias de hoje devemos ter em consideração, para não tropeçarmos nos mesmos erros.
A primeira obra tem um subtítulo um pouco incómodo “Sou Cristão, Apesar da Igreja”, o que nos deve fazer reflectir seriamente como membros da igreja evangélica neste país, de modo a não servirmos de tropeço a quem quer que seja na sua vida cristã ou na sua compreensão de quem é realmente Jesus Cristo. A dado passo o autor refere:
“Frequentei duas igrejas durante a minha adolescência. A primeira, uma igreja baptista com mais de mil membros, orgulhava-se de sua identidade de ‘uma igreja que ama a Bíblia e onde as pessoas são amáveis’, bem como do sustento de 105 missionários em outros países, cujos cartões eram afixados num enorme mapa que ficava na parte posterior do santuário. Essa igreja era uma das principais referências de famosos oradores evangélicos. Conheci a Bíblia ali. Ela não possuía um laço muito forte com a Convenção Baptista do Sul, uma denominação formada em 1845, quando os abolicionistas do Norte decidiram que os donos de escravos não se encaixavam no perfil de um missionário, o que fez com que os sulistas se separassem em protesto. (…)” (p. 24)
“A outra igreja que frequentei era menor, mais fundamentalista e mais abertamente racista (aquela a cujo sepultamento eu havia assistido). Ali pude aprender a base teológica do racismo. O pastor ensinava que a palavra hebraica cam significa ‘queimado’, ‘preto’, fazendo do filho de Noé o pai de todas as raças negras. Numa maldição imprecada por Noé, Cam deveria ser o mais baixo dos servos (veja Gn 9:18-27). Era isso o que eu ouvia quando meu pastor explicava por que os negros eram bons garçons e as negras, boas empregadas domésticas. Ele imitava seus movimentos na plataforma, mexendo os quadris como se estivesse evitando uma mesa, fingindo agitar uma bandeja com comida acima de sua cabeça, e todos nós ríamos de suas brincadeiras. ‘Os garçons negros são bons nesta profissão porque este é o trabalho que lhes foi destinado por Deus por meio da maldição de Cam’, dizia ele. Ninguém se preocupava em destacar que a maldição fora pronunciada, na verdade, contra o neto de Noé, Canaã, e não contra Cam.”
“Na mesma época, o Baptist Record, uma publicação do Estado do Mississippi, publicou um artigo que defendia a ideia de que Deus queria os brancos governando sobre os negros porque ‘uma raça cuja inteligência média beira a estupidez’ está obviamente ‘privada de qualquer bênção divina’. Se alguém questionasse essa doutrina claramente racista, os pastores saíam com o expediente infalível da miscigenação (mistura de raças), que alguns especulavam ser o pecado que havia levado Deus a destruir o mundo nos dias de Noé. A simples pergunta ‘você quer que sua filha traga para casa um namorado negro?’ silenciava todos os argumentos raciais.” (pp. 25,26)
“Em 1995, quase 150 anos depois de ter apoiado a escravidão, a Convenção Baptista do Sul arrependeu-se formalmente de sua política de longo prazo de apoio ao racismo. Um pastor da Igreja Baptista Abissínia disse: ‘Finalmente, respondemos à carta de Martin Luther King Jr., enviada da prisão de Birminghan em 1963. Infelizmente, 30 anos depois’.”
“Até mesmo a grande igreja baptista que frequentei durante a minha infância aprendeu a se arrepender. Quando fui a um culto, alguns anos atrás, fiquei chocado em ver apenas umas poucas centenas de adoradores espalhados pelo enorme santuário que, em minha infância, costumava abrigar mais de 1.500 pessoas. A igreja parecia amaldiçoada. Finalmente, um pastor que fora meu amigo de classe durante a infância tomou a iniciativa incomum de promover um culto de arrependimento. Antes da realização do culto, ele escreveu para Tony Evans e para o professor da Escola Dominical que fora afastado, pedindo seu perdão. Então, publicamente, de maneira dolorosa, com a presença de líderes afro-americanos, ele recontou o pecado do racismo da maneira como era praticado por aquela igreja no passado. Ele se arrependeu e recebeu perdão. Apesar de ter-se a nítida sensação de que um fardo fora tirado da congregação naquele dia, isto não foi suficiente para salvar a igreja. Poucos anos depois, a congregação branca mudou-se para a periferia, e hoje, uma congregação afro-americana chamada Asas da Fé ocupa o prédio e faz tremer as janelas mais uma vez.” (pp. 40,41)
Numa outra colocação da mesma análise o mesmo autor, no livro que já citámos “Maravilhosa Graça”, refere: “Rejeitei a igreja durante algum tempo porque encontrei bem pouca graça ali. Voltei porque não descobri graça em nenhum outro lugar”. (pp. 14)
No segundo livro a que fizemos referência Erwin Lutzer escreve a propósito da sua visita a um museu berlinense sobre a resistência, no antigo prédio do Ministério da Guerra:
“Contudo as fotos que chamaram minha atenção foram as que retratavam pastores protestantes e padres católicos prestando a saudação nazista. E o que me surpreendia ainda mais eram as fotos de bandeiras com a suástica enfeitando igrejas cristãs – flâmulas da suástica com a cruz de Cristo no centro!”
“Em pé, naquele museu, decidi-me a estudar como Hitler conquistara a simpatia da igreja cristã. Sabia que 95% do povo alemão era formado por protestantes ou católicos. Agora, só queria saber por que os cristãos da Alemanha não condenaram Hitler corajosamente e a uma só voz. Perguntava-me por que milhões de pessoas, de bom grado, tomaram a Hakenkreuz (cruz gamada ou quebrada) de Hitler, colocando sobre ela a cruz de nosso redentor crucificado. Somente mais tarde viria a compreender quanto essa confusão de cruzes iludiu a igreja alemã, atraindo o julgamento de Deus.” (pp. 14)
“Sim, nós também enfrentamos a tentação de nos curvar perante os deuses de nossa época, que nos incitam a misturar Cristo com outras religiões, planos políticos ou objectivos mundanos. A experiência da igreja na Alemanha nos lembra que Cristo deve sempre estar sozinho; ele não deve ser adorado como aliado de líderes de governos deste mundo, mas como alguém que está acima deles, como Rei dos reis e Senhor dos senhores.” (pp. 15)
“As semelhanças entre a Alemanha nazista e os EUA podem não ser tão evidentes, mas só quem for cego para as realidades que nos cercam poderá negar que esse relatório da Alemanha de Hitler significa um alerta para muitas nações cristãs de hoje e, incluindo os EUA. Os inimigos da religião não se contentam em banir a religião do Estado, enquanto permitem a liberdade religiosa nas igrejas e sinagogas. O objectivo é o controle total – a completa submissão da igreja aos caprichos morais e despóticos do governo político.”
“Essa intrusão dos tribunais na esfera espiritual continuará. À medida que as nações cristãs escorregam para o paganismo, a igreja sofrerá pressões para realizar casamentos homossexuais. As pregações contra o aborto, o homossexualismo e contra as doutrinas heréticas de outras religiões serão definidas como ‘violência verbal’. Se os planeadores sociais puderem agir do seu jeito, as igrejas e as escolas cristãs serão obrigadas a empregar homossexuais para o cumprimento de cotas de contratação. Novas leis que proibirão as pessoas de testemunhar sobre Jesus nos mercados e até mesmo pelo rádio serão aprovadas. Um Estado hostil, se não puder extinguir a mensagem da cruz, tentará mesmo assim abafá-la.”
“A liberdade também será restringida nos locais de trabalho. O Departamento do Trabalho do Oregon apresentou acusações contra James Meltebeke, o dono de um negócio de pinturas naquela localidade, por convidar seus empregados para ir à igreja, como também por dizer a um casal que eles estavam a viver em pecado e que iriam para o inferno se não se casassem e fossem para a igreja. O Departamento decidiu que seus comentários criaram um ‘ambiente de trabalho ameaçador e ultrajante’. De modo inconcebível, esse órgão definiu que o proselitismo era um acto físico que poderia ser regulamentado pelo Estado. O testemunho poderia ser proibido, se fosse considerado ‘transgressor de importantes deveres sociais e subversivo à ordem’. Meltebeke teve de pagar uma multa de três mil dólares e fixar um letreiro em sua oficina que regulasse a discriminação.”
“A experiência de Meltebeke poderia se tornar a política-padrão, se as directrizes do Equal Employment Opportunity Commission [Comissão para a Igualdade nas Oportunidades de Emprego] se tornassem leis federais. Enquanto escrevo, a oposição a essa nova lei impediu sua aprovação no Congresso. Porém, se a história se repete, seus defensores retornarão quando as condições políticas forem mais favoráveis. As liberdades serão solapadas, sob o pretexto de criar um ‘local de trabalho livre da religiosidade’.”
“Mesmo agora, os empregadores só podem expressar suas convicções religiosas com ‘o enorme risco de serem responsabilizados civilmente e com um potencial prejuízo para os negócios’. Alguns empregadores, com medo dessas novas directrizes, não permitirão que sejam entoados cânticos cristãos em suas festas natalinas. Os símbolos religiosos, como crucifixos ou Bíblias, podem ser declarados ilegais sob essas novas directrizes. Na verdade, o povo será orientado a deixar para trás sua crença mais estimada quando for para o trabalho. Podemos dizer, como os cristãos da Alemanha nazista, que o que ‘se espera é que a igreja definhe até desaparecer’.”
“Quem quer defender a liberdade é apontado como se quisesse destruí-la. No artigo intitulado New right wrongs [Abusos dos novos direitos], o rev. Robert Meneilly ataca os extremistas e os religiosos fanáticos que disseminam ‘práticas perversas […] abomináveis perseguições […] crimes de ódio e caos político’. James Dobson, que foi especialmente visado por esse ataque, destaca que Meneilly não estava se referindo a militantes da Jihad islâmica, e tampouco se tratava de uma alusão a Adolf Hitler, mas aos cristãos que têm a audácia de falar sobre as grandes questões do nosso tempo.”
“Meneilly disse que esses cristãos eram uma ameaça maior para a democracia que a antiga ameaça comunista. Na verdade, ele insistiu que os cristãos não tinham nenhum direito de expressar o que pensavam sobre questões políticas e sociais. Se mantivessem para si suas ideias, isso seria aceitável, mas expressá-las é verboten [proibido].”
“(…) Estas atitudes são apoiadas pela mídia amplamente favorável, que está decidida a transformar os EUA em um Estado secular. (…)” (pp. 250,251)
“ESPERANÇA PARA A EUROPA”
Diante do quadro global o pessimismo tem-se apoderado até mesmo dos líderes políticos e religiosos mundiais. Será que há esperança? Os cristãos têm a resposta e ela passa antes de tudo o mais por eles, tanto no plano do imediato terreno, como em termos escatológicos e eternos.
As hipóteses de sermos ouvidos passa em grande parte pela diferença que as nossas vidas representem e a intervenção social é um dos factores determinantes para isso.
O homem é um todo e a assistência espiritual implica e envolve a assistência emocional e física, do pensamento e da consciência, do físico e do material.
A Aliança Evangélica Europeia lançou um projecto intitulado “Esperança para a Europa” e publicou um opúsculo da autoria do teólogo alemão Thomas Scirrmacher com 66 propostas, prefaciado por Peter Regez.
Terminamos com uma citação da obra em apreço:
“Todos os Reformadores do século XVI defendiam a separação entre Igreja e Estado, mas ao mesmo tempo encorajaram a sociedade a erguer-se conscientemente sobre valores e preceitos cristãos. Estavam convictos de que Deus quer renovar a Igreja e o Estado, bem como cada pessoa individual. A ideia de que Lutero, Calvino ou os outros Reformadores não estavam interessados em questões sociais, ou que não tinham esperanças para esta vida é absurda. Todos eles queriam renovar tanto a sociedade como a Igreja e perseguiram este alvo, ensinando valores bíblicos ao povo.”
“Os Pais do Pietismo e dos Movimentos de Reavivamento, como Philipp Jacob Spener, August Hermann Francke, Jonathan Edwards, John Wesley ou George Whitefield não só descobriram a conversão pessoal como também, motivados pela sua própria renovação pessoal, esforçaram-se por influenciar tanto a Igreja como a Sociedade em favor dos pobres e dos fracos. Todos foram transformados pelas suas esperanças sendo por isso muitas vezes denunciados como ‘revolucionários’.”
“O programa reformista pietista de Philipp Jakob Spener estimulava não apenas um aumento de actividade missionária, mas também inúmeras instituições sociais. August Hermann Francke fundou ou encorajou a criação de numerosos orfanatos, escolas para os pobres, farmácias e hospitais. A sua Realschule (Escola Real), uma ‘invenção’ pietista, forneceu a crianças de famílias de classe pobre ou média uma educação real planeada para as preparar para as realidades da vida. Conventos protestantes com a sua ajuda aos pobres, idosos e doentes, hospitais, lares para idosos e, em épocas mais recentes, centros de reabilitação para toxicodependentes são tudo parte integrante da história pietista! Os líderes pietistas desenvolviam continuamente programas e listas de exigências ao Estado e à sociedade e publicavam ensaios para educar tanto o Estado como os seus cidadãos no significado dos valores cristãos para a sociedade.”
“Os pais de quase todas as denominações cristãs – os Pais da Igreja, Reformadores luteranos como Lutero e Melânchton, teólogos reformados como Calvino, Bucer e Knox, Anglicanos como Cranmer e os Pais do Metodismo, como Wesley e Whitefield e os Baptistas (em especial nos EUA e na Inglaterra) assumiram que os cristãos conhecem os padrões certos para a sociedade e lutarão por concretizar as suas esperanças pela oração, ensino, discurso profético e obras. A ideia de que os cristãos devem afastar-se por completo da sociedade e que a nossa esperança pessoal não tem consequências para a sociedade é completamente estranha às confissões de qualquer denominação!”
“Os cristãos europeus devem recomeçar a semear em esperança, como os Reformadores, os Pietistas, os Revivalistas e muitos outros fizeram e trabalhar para alvos distantes, não apenas para os problemas do futuro imediato.”
“O individualismo que surgiu na Europa e no Ocidente nos últimos 150 anos desencaminhou-nos a crer que a nossa fé cristã é apenas pessoal, que não tem significado social e que pode até sobreviver sem comunhão numa igreja organizada. Esta atitude gera desespero e rouba a esperança aos cristãos. Quando não vemos necessidade de nos oferecer por amor dos outros, em breve perdemos a esperança para nós. Este individualismo, não a Bíblia nem o Pietismo, levou muitos crentes a afastar-se da vida familiar, dos negócios, da política e da ciência e a deixar de testemunhar os valores cristãos na vida diária.” (pp. 57,58)
ESPERANÇA PARA PORTUGAL – PROPOSTAS DE ACTUAÇÃO
Mais do que um choque fiscal, tecnológico, de gestão ou cívico, o que precisamos mesmo é de um “choque espiritual” que traga um avivamento tal que a vida das pessoas seja mudada do avesso, os vícios, a corrupção, o esbanjamento, o consumismo, o materialismo, o prazer a qualquer preço, o egoísmo, o orgulho, a arrogância, a violência, sejam destronados e em seu lugar os frutos do Espírito marquem a vida de todos e de cada um.
Mais do que novas tecnologias e técnicas de gestão e liderança é preciso uma profunda mudança ética, cuja causa só pode ser espiritual. Só um exemplo retirado do Jornal de Notícias de 25 de Janeiro de 2005: “Os tribunais fiscais portugueses têm em mãos para resolução pendências de execuções fiscais que ascendem aos vinte mil milhões de euros” (pp. 18).
Com o profeta Habacuque devemos clamar diante de Deus: “aviva a tua obra, ó Senhor, no decorrer dos anos, e no decurso dos anos faze-a conhecida; na tua ira, lembra-te da misericórdia.” (Habacuque 3:2)
A esperança para Portugal deve ser objectivada em projectos e acções concertados. Deixamos aqui alguns exemplos:
Meios de comunicação – contra a violência e a imoralidade nas produções, telenovelas e filmes; a elevação intelectual e a integridade por parte dos jornalistas de modo a acabar com uma triste tendência entre uma parte substancial da comunicação social que privilegia o boato, o sensacionalismo, o mexerico, a fofoquice, em detrimento do debate objectivo das políticas e dos factos.
Educação – associações de pais em defesa da disciplina e da segurança, do rigor e da exigência, da qualidade e da inovação; inclusão do modelo criacionista e não apenas do evolucionista nos currículos de ciências.
Família – apoio às famílias, planeamento familiar, tomar todas as iniciativas que evitem o aborto.
Assistência social – implementando projectos que apoiem os mais desfavorecidos entre os quais se contam as crianças, os idosos, os sem-abrigo, os desempregados de longa duração, etc.
Saúde – denuncia de todas as políticas que representem uma acomodação e rendição às dependências, reclamando um serviço público de saúde de qualidade para toda a população e desenvolvendo projectos de cuidados mínimos ao nível da comunidade.
Emprego – incentivando a iniciativa privada e a constituição de pequenas e médias empresas num propósito de serviço e de excelência, ao serviço do Reino, apoiando projectos missionários e não só.
Fiscalidade – apelando para que todos em geral e os evangélicos em particular, empresários e trabalhadores por conta de outrem, sejam cumpridores escrupulosos das suas obrigações.
Circulação viária – despertando a consciência e alertando a população em geral e os cristãos evangélicos em particular para a observância dos limites de velocidade e os requisitos de uma condução segura.
Perfilhamos a interpretação bíblica de que só teremos uma sociedade justa pela intervenção pessoal e directa de Jesus quando Ele irromper na História para encerrar a presente era e consumar pelo Seu poder, “novos céus e nova terra em que habitará a justiça”.
Até lá na iminência permanente do Seu retorno e do “rapto” de todos os que são Seus, é nosso privilégio e responsabilidade viver e proclamar o evangelho como profissionais nos mais diferentes ramos de actividade fazendo tudo para o louvor da Sua glória.
No nosso entender a maior de todas as motivações que como cristãos temos reside precisamente na certeza inabalável da segunda vinda de Jesus Cristo e a eternidade que nos espera no céu se entretanto formos chamados à Sua presença. A certeza e expectativa do arrebatamento e da segunda vinda de Jesus não podem biblicamente ser vividos como fuga ou escape, mas como compromisso e serviço, de tal forma que nos possam ser dirigidas as palavras: “Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei: entra no gozo do teu senhor” (Mateus 25:21)
Por isso terminamos da mesma forma como a Bíblia: “Aquele que dá testemunho destas coisas diz: Certamente venho sem demora. Amém. Vem, Senhor Jesus. A graça do Senhor Jesus seja com todos.” (Apocalipse 21:20,21)