Autor: Isaltino Gomes Coelho Filho
Devo a Hull, em The disciple making pastor, o conceito de “churchianity”. Indo de Belém para Manaus, tive tempo para refletir sobre a idéia: igrejismo. Indaguei-me: o que temos, igrejismo ou cristianismo?
Igrejismo é a igreja tornada em empresa-espiritual e a institucionalização do evangelho: só se segue a Cristo e se vive o evangelho de uma forma. É um copyright do evangelho.
Cristianismo é priorizar a Cristo e o evangelho sobre formas, negócios e instituições.
Em Malaquias, nosso contemporâneo, narrei o episódio visto numa igreja batista: 46 minutos de anúncios! Não houve tempo para o sermão ou cânticos. A igreja ia comprar uma “kombi” e as classes estavam levantando fundos. Parte do tempo foi gasta com a campanha para compra do veículo. Outra, orientando o coro, que cantaria na praça. Nada de cânticos, louvor, adoração ou proclamação. Só o programa da igreja.
Temos problemas bem sérios hoje. A falácia renovacionista (um movimento desgastado que provou não ser o que diz), inovações (das quais nosso universo fixista tem receio), o louvor mais agitado (e, embora não goste dele, prefiro-o a 46 minutos de anúncios) e o surgimento de movimentos novos. Via de regra, caímos de borduna e tacape em tudo isto. Mas temos culpa nisto! Muitos desses movimentos surgem por cansaço com o igrejismo e seus cultos que promovem mais programas e instituições que Deus.
Quando vemos cultos com duas horas de duração, com quase uma de cânticos, e nossos jovens indo para lá, cabe perguntar:
por quê? Por que cultos com cenas grotescas de um pastor batendo boca com “demônios”, fazendo os pseudo-endemoninhados andarem com as mãos para trás, atrai muito mais gente que os nossos cultos, com a “verdade genuína da Palavra de Deus” e “o louvor correto”?
Uma boa resposta, entre muitas, é esta: numa sociedade secularizada, onde a técnica prevalece sobre o espiritual, as pessoas querem o sobrenatural, querem uma experiência com o poder de Deus. Mas nem sempre acham isso em nosso meio. Por vezes, apenas a apologia de instituições e posições e a exposição de um programa de ação. Quando um pastor diz, de púlpito, que esteve muito ocupado com o trabalho da igreja durante a semana e não pôde preparar o sermão, o que está acontecendo?
Pode-se esperar que as pessoas voltem para ouvi-lo? Prevaleceu o igrejismo (a church business) ou o cristianismo (a preocupação com Cristo)?
Pode-se esperar receptividade do povo? Não somos fortes em auto-crítica. Imitamos o casal do Éden: culpamos os outros. Um mea culpa talvez ajude. Que temos apresentado: cristianismo ou igrejismo?
Em alguns segmentos, o aspecto burocrático, funcional e organizacional é maior que o espiritual. Há mais ênfase em programas que em Deus. Sugeriria a leitura de Conner, em O evangelho da redenção, tópico “A principal função da igreja” (2a. edição, JUERP, p. 228).
Ouço muito a expressão “a igreja precisa sair das quatro paredes”. Concordo. A “maldição dos templos”, expressão de Ralph Neighbour, é real.
Aprisionamos o evangelho dentro de prédios e esperamos que as pessoas venham encontrá-lo. Vejo outra maldição: a dos arquivos. É necessário tirá-los do culto. O culto é uma expressão de louvor, de adoração, de proclamação, de confiança, de chamada ao arrependimento e ao compromisso. Mas acontece assim em nosso meio?
Um jovem deixou sua igreja tradicional por uma aventura eclesiástica e explicou-me o porquê: “Na minha igreja eu não louvava a Deus. Outros o faziam por mim. Eu só ouvia louvor e discursos. Onde estou agora eu canto, eu mesmo louvo a Deus”. Culto com discursos operacionais e apologéticos no lugar do ensino da Palavra; com exibição de coros, quartetos, trios e solistas, e o povo olhando; com um sermão pálido sem mostrar o poder de Deus como real hoje; com mais preocupação em perpetuar esquemas e formas que em permitir que o povo se expresse, não pode competir com a atração que esses movimentos oferecem. Um cristianismo aguado, sem mostrar poder, sem força de transformação, com mais apologia do esquema, da estrutura, da forma, que do poder regenerador de Deus, numa rotina triste, não sobrevive.
E não adianta condenar os “ismos” modernos se os “ismos” antigos são inócuos.
Lutero se preocupou com “o caráter essencialmente espiritual e não-institucional da igreja. Lutero não gostava da palavra alemã Kirche (que, como church, em inglês, ou curia, em latim, deriva do grego kuriakon, a casa do Senhor), porque veio a significar a construção ou a instituição. Ele preferia Gemeine (hoje Gemeinde), “comunidade”, ou Versammlung, “assembléia”. Para ele, a verdadeira igreja era o povo de Deus, a comunidade de cristãos, ou como diz o Credo dos Apóstolos, a comunhão dos santos” (George, Teologia dos reformadores, p. 88). Precisamos recuperar este conceito sério e profundo de Lutero.
Muito da resistência e irritação às mudanças é mais estética que lógica. As repetidas queixas, em “O Jornal Batista”, da música barulhenta são mais conflito de gerações que questão objetiva.
O colunista de “Registo” reclamou, certa vez, do barulho da música jovem. Registrou frase de outra pessoa, indagando se o Deus desse pessoal é surdo. Tem razão. Poucas coisas irritam mais que um som ensurdecedor. Já me retirei de cultos devido à música muito alta. Mas ninguém fala de pregadores que gritam tanto quanto uma bateria inteira. Também saí de cultos por causa do volume de voz do pregador. Música em alto som não pode. Sermão pode. O pregador tem o monopólio dos decibéis? Seus ouvintes são surdos? Temos uma “doutrina batista do som” ou uma postura estética, de idade? Sou um “quarentão”. Não gosto de música barulhenta. Os jovens gostam. É mundanismo.
Vou a um microfone e grito mais alto que a bateria. É poder e convicção. Um tanto estranho.
Há mudanças inevitáveis no meio evangélico. Nem todas são boas. Algumas são terríveis. Mas fechar-se no ontem não resolve. No passado, igrejas se dividiram por causa de um piano.
“Piano é coisa de boate” foi uma frase usada por um grupo conservantista para justificar a divisão em uma igreja. Hoje o piano é aceito. Meu receio: muitas vezes quem desencadeia a divisão não é quem pensa diferente, mas quem detém os mecanismos de controle no grupo. E sempre com uma forma de legitimar, culpando a outra parte. Eis o que diz Galbraith, em Anatomia do poder: “…a história de expressões altamente organizadas de poder – da Igreja, do partido comunista, até mesmo de uma máquina política municipal – é uma longa e ininterrupta crônica de tentativas para eliminar a heresia.
O indivíduo de fora que não se submeta pode ser ultrajado, mas geralmente desperta menos aversão e cólera e atrai menos esforço persuasivo que o dissidente interno” (p. 65). Preocupa-me ver artigos incendiários em que conservantistas chamam aos outros de “liberais” e de “renovados” por pensarem de maneira diferente. Cuidado para não agirmos como o mundo age.
Precisamos de espírito mais conciliatório. De uma postura mais fraterna e menos imperial. Doutrina é doutrina e não se abre mão. Mas dizer que alguém não é batista porque em sua igreja se bate palmas, é exagero. Não bato palmas. Respeito quem bate. Mas, para mim, acho pobreza. Mas não é isso que evidencia fidelidade doutrinária. Nem sempre “O Jornal Batista” abriga artigos felizes na abordagem do problema. Linguagem desabrida, chamando os jovens pastores de “mauricinhos e menudos” já se estampou num jornal que deve primar pela linguagem sadia. Critiquei o artigo, perguntando se os “mauricinhos e menudos” chamassem os pastores mais antigos de “fósseis e múmias” o jornal os abrigaria. Esta expressão foi cortada. O jornal pode abrigar linguagem descortês do grupo que mais se expressa, mas não a simples hipótese de linguagem retributiva.
O igrejismo se preocupa com formas, modelos, estruturas e programas. O cristianismo, com o evangelho de Cristo. Este é sagrado. Aqueles, não. A igreja tem uma essência que exibe em formas. A essência é imutável porque eterna. As formas e os modelos variam. Perenizá-los é idolatria. Precisamos de mais cristianismo que igrejismo. Precisamos também de um pouco de reflexão: que alternativa oferecemos? Para evitar os corinhos vamos pedir que os jovens cantem “Mocidade cristã, eia avante, contra o mal, contra o erro lutai” ou “Ó moços, que ventura vos é servir a Deus”? Quem usa “vós”, hoje? Vamos combater cultos com ensinos errados usando o ensino certo em cultos opacos?
Vamos combater a ênfase no sobrenatural com a ênfase no burocrático? Vamos combater a “expulsão de demônios” (que fascina e atrai) com a ênfase em arquivos (símbolo da burocracia, que enfada)? Creio que não vai dar. Muitas igrejas precisam, com urgência, se cuidar, atualizando sua hinologia, suas estruturas burocráticas, o seu discurso (não a pregação), diminuindo o clericalismo e ampliando o raio de ação.
A proliferação e o carisma de líderes extra-denominacionais devem nos levar a reflexões mais maduras do que apenas desancá-los de forma até mesmo mundana.
Receio que estejamos perdendo espaço por sacralizarmos formas e pelo arrogante conceito de ser batista: só o é quem é e faz como eu. Queremos perpetuar o passado. É bom um pouco de análise desapaixonada, de reflexão mais ponderada, de uma tentativa de atualização e de diálogo. Pode ser que deixando a linguagem de donos da verdade e ouvindo as razões do outro lado, acertamos um pouco mais. Que tal mais artigos construtivos que apenas “malhação”?
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