Governo evangélico jamais

Autor: Ed René Kivitz
Desde a conversão de Constantino e a conseqüente identificação do cristianismo como “religião oficial do Império”, passando pela Genebra de Calvino e Farel, as relações entre fé cristã e projetos políticos visam, via de regra, submeter o Estado à Igreja, fazendo com que o poder civil público sirva como instrumento facilitador e garantidor da religião. A idéia subjacente nesta relação é que “Deus é o Senhor, a Igreja deseja adorá-lo, e o Estado obriga a fazê-lo”, como interpretou o historiador Seeberg.

Tais ideais estão na origem da Terra Brasilis: o primeiro ato cívico e governamental realizado em solo brasileiro foi uma missa, as forças colonizadoras que atuaram no Brasil foram escandalosamente marcadas pela catequização. Esta matriz que se propaga desde o século IV forneceu a base do catolicismo brasileiro praticado na intercessão entre Igreja Romana e poder público, onde os bispos católicos interferiram quase em caráter oficial nos rumos do país.

Em resposta ao monopólio católico em relação aos fóruns governamentais e formação da cultura política brasileira, alimentados pelo sonho do Estado teocrático e deslumbrados com seu crescimento numérico – que resulta um significado contingente eleitoral -, os evangélicos colocamos as mangas de fora e começamos a acreditar que chegou a nossa vez: é hora, e já é tarde, de elegermos um presidente da República. Com significativas vitórias nas urnas nos pleitos eletivos de vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governadores, e razoável visibilidade no cenário federal, com uma expressiva bancada (que já foi chamada de cambada), as lideranças eclesiásticas se articulam mais uma vez na pretensão de alçar um evangélico ao cargo máximo da nação.

Ser evangélico; articular uma plataforma política alinhada com lideranças evangélicas; governar com os evangélicos; conduzir o Legislativo de acordo com os interesses das igrejas evangélicas; lotear o Executivo entre os evangélicos; manipular o Judiciário com a ética evangélica; definir políticas públicas visando ao favorecimento do avanço evangélico, e tantas outras justificativas em pauta, não qualificam qualquer candidatura à presidência da República. Na verdade, desqualificam.

Quando Martin Luther King Jr. escreveu desde Birmingham afirmando que “a injustiça em algum lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares”, estava fazendo eco às palavras de Abraham Lincoln ao Congresso Nacional Americano: “Ao darmos liberdade aos escravos, estamos garantindo a liberdade aos que são livres”. Traduzindo e atualizando, podemos compreender que, ou o governo é para todos, por meio de todos, em benefício de todos os níveis, ou as bases do totalitarismo estão deflagradas ou mantidas.

Todo e qualquer discurso totalitário é execrável. Uma sociedade democrática deve se constituir e desenvolver através das tensões e cooperações de todos os seus segmentos representativos em termos de raças, credos, sexos e classes. Emílio Monti sustenta que não existe soberania se ela não é exercida pelo soberano, e não há dúvida que no Estado democrático o uso do termo soberano é sinônimo de povo. E o povo não tem cor, ou melhor, tem todas as cores. Nesse caso, devemos fazer coro com Paul Freston quando afirma que a tarefa do governo não é implementar a moralidade, mas sim a justiça. Podemos ir mais longe, afirmando que a tarefa do governo também não é impor uma religião. De minha parte, ficaria arrepiado se ouvisse um discurso político do tipo “espírita vota em espírita”, “agora todo mundo tem de ser gay”, “os umbandistas merecem isenção fiscal”, ou “é proibido pregar o Evangelho na televisão”.

Devemos crer que os fóruns legislativos sejam compostos por blocos e representantes de vários e indistintos setores e segmentos da sociedade civil. É justo que todos os cidadãos se vejam defendidos nas instâncias normativas da convivência social. Mas é inadmissível que o Executivo e o Judiciário estejam comprometidos com quaisquer segmentos da sociedade. A democracia implica em a riqueza produzida ser justamente compartilhada, a teia cultural diversamente construída e evidenciada, a cadeia produtiva amplamente socializada.

Quando empunhamos a bandeira da justiça social nos levantamos contra toda e qualquer forma de favoritismo nas relações entre os habitantes da polis. Defendemos a igualdade de direitos e sustentamos que as autoridade ordenadas por Deus devem agir como seus ministros pra o benefício do cidadão, promovendo o bem e coibindo o mal. Não queremos um governo evangélico; queremos um governo justo. E, ao que tudo indica, justiça e ética evangélica se largaram as mãos em alguma esquina do passado.

Evidentemente, numa sociedade cada vez mais distante dos ideais de justiça e ética propugnados pelo cristianismo, também queremos fazer ouvir a voz do Cristo, que andou por toda a parte fazendo o bem. Mas não podemos cair na armadilha da possibilidade de sermos influência dentre as forças que constroem a polis, antes de sermos uma cidade edificada sobre os montes. Enquanto as igrejas evangélicas não se estabelecerem como micro-sociedades alternativas, jamais poderão pretender apresentar-se como alternativas para a sociedade.

Quero crer na possibilidade e viabilidade de um cristão evangélico na presidência da República – afinal, estamos no ocaso de um mandato exercido sob a confissão do ateísmo. Camaleônico, “populisticamente conversionista”, mas ainda assim, ateísmo. Presidente evangélico, quem sabe. Governo evangélico, jamais.

Ed René Kivitz é conferencista, pastor e articulista da revista Eclésia.

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