Fragmentos de um discurso teológico

Autor: Edla Eggers

Fragmentos de um discurso Teológico aparecem através da textualização possível de ser construída através de uma metodologia de pesquisa qualitativa com embasamento nos campos do interacionismo simbólico, do feminismo e da história oral – através da observação participativa e das entrevistas em forma de história de vida – que possibilitaram uma ação narrativa.
Escolhi o texto, a textura, a narrativa transcriada, como forma de expressar o que ouvi de seis mulheres entrevistadas para identificar o que chamo de fragmentos de um discurso teológico. Mulheres da região sul do Estado do Rio Grande do Sul, mais precisamente São Lourenço do Sul e Canguçu, presentes nas reuniões de grupos de saúde organizados pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB, mulheres presentes nas reuniões da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas – OASE, lideranças comunitárias. Através das suas narrativas, e também da minha, fui percebendo como acontece a educação teológica dessas mulheres. Resgatei, assim como Jean-Pierre Jossua e Johann Baptist Metz buscam descobrir o teológico latente ou explícito na literatura, aquilo que as narrativas podem conter do que eu entendi por teologia. E, assim, percebi que na (re)construção da linguagem do cotidiano é que podemos focalizar a educação teológica vivida nas comunidades, sem a pretensão de catalogar discursos, mas tornar esta linguagem visível, pública, possível de ser interpretada. Uma Teologia que acontece aos pedaços: entre um culto, uma reunião, uma horta a ser capinada enquanto o pão cresce em cima da mesa.
As teólogas feministas indicaram um caminho provocativo enquanto resgate de espaços quase sempre ignorados da educação teológica das mulheres. Do lugar das mulheres, para escrever/fazer teologia, é preciso descrever o processo de inquietação com relação a uma teologia possível. O caminho acontece pelas margens – com grossas camadas de pedras e poeira ou lama dos velhos caminhos de roça. A teologia tem para mim um pouco deste sentido marginal e roceiro comparada com o asfalto que é ciência em direção à cidade.
Vítor Westhelle aponta que a ciência exerce poder através da produção do conhecimento, enfocando um comentário de Richard Rorty sobre o status cognitivo e a objetividade características da cultura secularizada, onde o cientista ocupa o lugar do sacerdote. Argumenta, porém, que a figura do sacerdote pode ser usada como uma “metáfora ou uma analogia invertida”, pois na compreensão religiosa sacerdote é quem define, situa e reconhece a diferença entre finito e infinito e a ciência distingue entre o que é indefinido e definido, já que está “habilitada a acentuar a divisão entre o sujeito e a natureza externa através da prática da inscrição, situando o cientista como mediador entre os dois pólos”. E, finalmente situa o riso, através de George Bataille, como a diferença fundamental entre o sacerdote e o cientista. O riso faz descobrir que o mundo está “além de nossas medições”. O cientista desdenha as coisas do além e acredita que pode disciplinar o mundo através da inscrição deste.
O riso é uma concessão à loucura quando os limites mesmos dos cânones de racionalidade esbarram com o indefinido, com o que resiste, em princípio, ser reduzido à inscrição: o que fica fora, além dos limites da racionalidade, não herda o reino do conhecimento. O riso de Bataille é o que move da figura para as margens da moldura.
A teologia com a participação das mulheres (feministas ou não), mesmo sem serem convidadas, possui o espaço do riso, do estranhamento que move as figuras centrais para as margens, fazendo com que beiras apontem limites, mas também horizontes. Ressalto a teologia como um todo, como aquela que acolhe e não separa conhecimentos, a que funde e proporciona um pouco de possível para não sufocarmos nas mãos habilidosas dos conceitos e das inscrições. “Um pouco de possível se não eu sufoco”, diria Deleuze. E o riso pode ser um dos possíveis. Não só a teologia feminista, na qual passarei a me concentrar em meus diálogos, mas a teologia em si. É um caminho marginal porque é assim que a teologia se faz. E se falarmos de teologia feminista, teremos mais margens, mais pedras, mais poeira ou lama.
A impressão que podemos ter num primeiro vislumbre é de que a teologia, sem a participação das mulheres com o seu saber e o seu sabor, considerava-se situada no centro do caminho, arrastando muito pouco dos seus mantos pelas margens. Podemos acrescentar às mulheres a Teologia da Libertação, a Teologia Negra e outras que vêm constatar a força destas participações teológicas, mesmo sem serem convidadas. Provocaram a teologia centrada no caminho para que derrapasse às margens, vendo-se obrigada, muitas vezes, a parar e sacudir o manto de tanta lama e poeira. A força destas teologias é tamanha que a teologia centrada no masculino, no Ocidente, na racionalidade, vê-se obrigada a tirar o manto e até os calçados pesados da poeira e lama para descobrir um novo modo de fazer teologia sem a pretensão de ditar verdades absolutas. Isso é construir teologias de possibilidades, porque a história é feita com possibilidades.

Narrar, nomear, cartografar

Busco fazer uma leitura que pondere questões teológicas para dentro da minha textura-existência. A teologia é a estranha em mim. Do lugar onde me encontro desejo conhecer um pouco do saber teológico marginal que está sendo feito e que talvez nunca se conclua enquanto construção de teologia. É impossível não se lambuzar, é como querer comer manga com garfo e faca. Para sentir o gosto tem que se lambuzar, agarrar a manga com as duas mãos e chupar, a fim de encostar o nariz bem perto e sentir o cheiro bom que ela tem. Nanci Cardoso Pereira propõe esta textura.
Silenciadas pelos muitos senhores do sagrado, as mulheres tecem suas teologias no avesso do ritual, na mesa das flores, toalhas e comidas que alimentam a divindade e comunidade. Terço. Farofa. Avental. Movimentos e momentos do corpo em relação: casamentos, filhos… instantâneos do corpo em dor: parteiras, benzedeiras, carpideiras… detalhes que escapam aos olhos e instrumental dos pesquisadores mas que vão tecendo falas teológicas libertadoras, libertando até mesmo o Deus aprisionado que não é privilégio do cristianismo.
São detalhes que não devem mais escapar aos olhos e instrumentais de quem pesquisa. Estamos, aos poucos, elaborando propostas que venham ao encontro dos nossos próprios resgates e com eles resgatamos também coisas esquecidas pelos nossos companheiros homens. Elizabeth Schüssler Fiorenza estabelece uma proposta metodológica voltada mais especificamente para a pesquisa/hermenêutica bíblica, contendo quatro elementos estratégicos: conscientização e suspeita, reconstrução histórica e relembrança, crítica e avaliação teológica, imaginação criativa e rito. Estes quatro elementos podem ser encontrados em pesquisadoras e pesquisadores de outras áreas do conhecimento. Menciono, a título de relembrança, a postura de Paulo Freire em constante diálogo sobre a importância de recontar e recriar a própria história e com isso possibilitar a construção do sujeito histórico.
Com semelhante intensidade Ivone Gebara apresenta a compreensão do domínio de novos instrumentos para a apropriação da vida das mulheres na história, onde cada vez mais elas/nós são aprendentes de si mesmas e agentes do seu próprio processo. Este processo não se apresenta de forma individualizada, mas possui autoria coletiva. A experiência passa a ser compreendida como um recontar da opressão e da libertação, ao mesmo tempo, da graça e da desgraça. Os confrontos populares, espaço em que a mulher tem percebido sua presença e importância cada vez maiores, são situações de tempo e espaço atravessados de contradições que interagem na sua maneira muito própria de compreender a existência humana.
Há, segundo Ivone Gebara e Rosemary Ruether, uma ampla compreensão tornada ensinamento especialmente através de Agostinho e São Tomás de Aquino sobre a mulher como a “parte caída dos homens”, “a responsável pelo pecado”, “todas mulheres tornaram-se Eva responsáveis pela corrupção inicial e pela origem do mal”. Isto marca profundamente nosso fazer teológico. Como numa espécie de transgressão constante vamos tentando construir uma teologia que diga o que somos a partir das nossas experiências.
O texto de Elizabeth Schüssler Fiorenza intitulada Discipulado de iguais registra um momento presente desenhado com propriedade, caracterizando uma carta geográfica que se revela através do contar, narrar, como foi/é estar sendo teóloga dentro e a partir da igreja católica. Como na ação de chupar manga, Fiorenza vai mostrando o ato de lambuzar-se na experiência de ser mulher e teimosamente teóloga.
A cada geração nós, mulheres, temos que desafiar sempre de novo a definição patriarcal da realidade, temos por assim dizer que “reinventar a roda” sempre de novo porque o patriarcado não pode tolerar a conscientização dos oprimidos. Tem mostrado a teologia feminista que nossa opressão social e exclusão eclesial não é “culpa” da mulher, não é conseqüência do pecado de Eva nem é tampouco vontade de Deus ou intenção de Jesus Cristo. Ao contrário, é gerada pelo patriarcado social e eclesiástico e legitimada pela construção androcêntrica do mundo na linguagem e nos sistemas simbólicos. Na medida em que a linguagem religiosa e os sistemas simbólicos funcionam para legitimar a opressão social e a marginalidade da mulher, a luta contra o silenciamento eclesiástico e a invisibilidade eclesial está no âmago da luta das mulheres por justiça, libertação e vida plena.
A recriação a partir de posturas inquiridoras e criativas frente às funções ideologizadas pelo patriarcalismo, não somente de textos mas de ações no cotidiano, exige uma observação constante. Cada vez que é preciso desafiar a definição patriarcal da realidade estamos forçando a Igreja instituída, a teologia com seu manto intacto a ser arrastada para as margens do caminho. E não desejamos apenas que se aproxime das margens, mas que haja um movimento, quase uma dança, transformando as estruturas que coisificam o direito de ser, de pensar e fazer teologia de outros lugares. Creio também que não desejamos vestir o manto da forma como se apresenta. O manto, a toga, a batina, o talar são símbolos de opressão e ainda não possuímos, mulheres e homens, uma saída razoável para as opções que possam vir dessa dança que força para as margens.
As feministas cristãs não podem desistir de sua autoridade religiosa, ao definir a religião bíblica e a igreja cristã. Jamais devemos abdicar do poder religioso de articular uma visão religiosa e feminista da justiça e da libertação. Por isso, na cartografia desta luta, procuro afirmar o poder feminino e teológico de dar nome, para transformar religiões, poder este que há séculos nos vem sendo roubado e hoje está novamente ameaçado de vários modos.
A memória histórica parece escorrer por entre os dedos e com isto perde-se o referencial de espaços já percorridos e conquistados por mulheres em outros tempos. Para Fiorenza, uma das maneiras de fortalecer a autoridade das mulheres na participação no fazer teológico, na autoridade religiosa, é narrar, cartografar, nomear.
O poder de nomear vem sendo sutilmente controlado pelas instituições patriarcais, mas, segundo Fiorenza, os trabalhos intelectuais feministas são muitas vezes rotulados e discriminados pelas próprias feministas, como no caso das mulheres que se manifestaram no século passado e foram esquecidas, sendo resgatadas somente a partir de 1980. Foram vítimas deste silenciamento Matilda Joslyn Gage (1826-98) e Hedwig Dohm (1833-1919). Outra forma de desmerecer e controlar o trabalho intelectual feminista é quando as instituições patriarcais buscam redefinir e reavaliar esse trabalho “em termos de escala predominante para os valores patriarcais”. Basta observar o rechaço da palavra “feminista”, que foi redefinida, e como funciona o amedrontamento de ser chamada de feminista radical. O processo de identificar é outra sutileza que Fiorenza aponta como forma de “dividir para conquistar”. Quanto mais divisões, maior fica a impressão de desorganização e contradição.
O que é possível perceber em Fiorenza, com quem concordo, é a articulação da ekklesia como discipulado de iguais, que segundo ela, pode fazer acontecer a basileia. Como teóloga cristã, feminista e católica, sustento que a visão da basileia judaica dos Evangelhos, a qual constitui a missão e a razão de qualquer existência eclesial, não pode ser adequadamente proclamada e realizada numa igreja patriarcal. Ao contrário, tal visão pode ser atualizada e afirmada apenas num espaço onde as mulheres atingirem plena autonomia espiritual, poder, autodeterminação e libertação. Conseqüentemente, as feministas cristãs devem, em primeiro lugar, reivindicar a ekklesia como nossa própria comunidade, legado, teologia e espiritualidade, antes de sermos capazes de nomear outra vez o divino, de modo diferente. A visão de um mundo de justiça, diferente deste, faz de nós sonhadoras.
Fiorenza, no seu livro
Origens cristãs a partir da mulher, rememora a narrativa da paixão no evangelho de Mateus, apontando para o “esquecimento” da ação simbólica da mulher que unge Jesus com o bálsamo. Como cristãos lembramos facilmente de Judas que traiu e de Pedro que renegou a Jesus. Lembranças pouco agradáveis, enquanto o gesto da mulher que tem cheiro, sabor, misericórdia, paixão passa quase desapercebido e, quando lembrado, tem gosto de transgressão.

A prática narrativa como criação teológica

A narrativa, enquanto processo de descoberta no contexto das relações humanas e do mundo, é uma das formas de se lambuzar ou de trazer para as margens e também de sair delas, como num movimento suave de uma dança. A teóloga Rebecca Chopp relaciona estudos em que utilizou a narrativa para resgatar a experiência e estruturar a educação teológica de mulheres estudantes em seminários teológicos. O texto está impregnado da sua experiência de ensinante de Teologia. Ela vai trazendo sua narrativa ao mesmo tempo em que faz uma análise de como percebe, enquanto professora, o que é estar sendo aluna e aluno no processo de educação teológica, depois de 20 anos de teoria feminista e de teologia feminista. Uma das suas questões fundamentais é: quem são os sujeitos da educação teológica hoje? A autora vai definindo o perfil de estudantes de Teologia a partir do exercício da construção das narrativas e também de entrevistas. As mulheres são o alvo principal na sua proposta investigativa, pois chegam com uma presença cada vez maior nas escolas e seminários teológicos.
A questão das mulheres como sujeitos na educação teológica, para ter crédito, tem que ser colocada no contexto dos atuais desafios de e para as mulheres na sociedade e na universidade. A educação teológica, estudada durante muito tempo em termos do desenvolvimento interno de idéias, é moldada pelas forças sociais e pelo desenvolvimento da educação superior. (…) A narratividade identifica a experiência vivida de mulheres como uma descrição do processo, tanto de suas vidas quanto de sua educação teológica. Para as mulheres, e talvez também para os homens, a necessidade de escrever novas vidas não é um luxo, mas, como Audre Lorde diz a respeito da poesia, “uma necessidade vital da existência das mulheres”. O poder de escrever a própria vida como um agente ativo é o poder de participar, potencial e efetivamente, na determinação das condições culturais e institucionais.
A autora chama de prática narrativa o processo de escrever a própria história. Ela analisa as mudanças simultâneas e rápidas vividas pelas mulheres nas últimas décadas. A partir da Segunda Guerra Mundial, mudanças culturais, econômicas e político-sociais atravessaram o cotidiano das mulheres desde o trabalho, passando à pílula anticoncepcional, pela escolha de parceiros e pela escolha da própria sexualidade, até a percepção atual das funções familiares. Salienta que há uma narrativa dominante normatizando e encobrindo a diversidade de práticas e das narrativas das mulheres nos Estados Unidos.
A existência dos estudos feministas tem contribuído significativamente para compreender a complexidade dos processos instituídos que foram delineando as divisões de gênero. O conceito de gênero é um indicativo do desejo de mudança. Enquanto ferramenta metodológica, “gênero” é um conceito de relações. A idéia da educação dos sujeitos está intrinsecamente ligada a todo o processo de que não nascemos mulheres e homens, mas nos fazemos mulheres e homens continuadamente através das práticas sociais nas mais variadas culturas.
Outro aspecto importante levantado por Rebecca Chopp é a contribuição da educação teológica feminista que detecta diferentes marcas instituídas, por exemplo, pela modernidade, que institui com valores masculinos a esfera pública enquanto a esfera privada é feminina, desvalorizada e dependente.
Com relação ao conhecimento, temos a marca do masculino visto como objetivo, universal e autônomo, enquanto que a religião é o oposto, situada na realidade privada com todos os adjetivos depreciativos ou, se não quisermos levar para este lado, poderíamos dizer adjetivos pequenos, frente ao poder do mundo público que o conhecimento dos homens se propõe. Por este motivo a narratividade tem importância central na autora, já que resgata a dignidade das mulheres de poderem construir suas vidas. A autora articula quatro pontos básicos que facilitam a ação narrativa: a experiência das mulheres, a contextualização da experiência, a ação da reconstrução e a criação de uma ação moral de virtudes feministas.
Sobre a experiência chamo o próprio texto da autora. A ação narrativa é criada e usada quando as mulheres começam a nomear suas experiências. Elas seguidamente falam de experiências que raramente são consideradas na teologia: experiências de maternidade, de estupro, da sexualidade feminina, de ser filha, de amizades femininas, de sobrevivência, de religião no meio do trabalho doméstico, da igreja, da comunidade local. Deste modo elas nomeiam experiências e, assim fazendo, começam a narrar o significado dessas experiências de novas maneiras. Ao trazer à tona as experiências e falar sobre elas de novas maneiras é uma das razões para que mulheres e homens usem muito poesia e romances na teologia feminista.
A preocupação em contextualizar as narrativas das mulheres está relacionada com a percepção e a crítica de que a ação narrativa não pode ser unilateralizada pelas mulheres brancas de classe média.
O terceiro ponto básico refere-se à reconstrução da tradição, na releitura dos símbolos, descentrando a referência patriarcal nas interpretações bíblicas. Segundo a autora, “as teólogas feministas dedicaram muita atenção ao que as escrituras dizem sobre as mulheres e como as escrituras foram usadas contra as mulheres”. O exercício da releitura da tradição é um dos aspectos trabalhados na ação reconstrutiva: o outro aspecto vem se concretizar no espaço primordial da ação das mulheres como o lugar da reflexão cristã sobre Deus. É permitir-se o uso de símbolos que, por intermédio da linguagem, compreendida em todos os meios de expressão, tem poder de criação. E por fim a criação de uma ética que inscreva a corporeidade como valor moral, trazendo ainda temas específicos vindos da experiência da teologia feminista como as virtudes do amor e da mutualidade.
O exercício da narrativa resgata a história, o acontecimento e, mais que isto, recria ou ressignifica a marca na vida das mulheres e dos homens em sua educação teológica.

Compor as narrativas através de desenhos com palavras

O tecido narrativo que aqui se encontra possui co-autoria, que segundo Meihy pode ser uma tradução transcriada. Esta co-autoria expressa minha opção em proporcionar várias leituras e infinitas interpretações. Embora saiba dos riscos que corro, prefiro essa opção.
Em cada mulher há várias cumplicidades. Há identificações e diferenças relacionadas com as narrativas entre si e a minha narrativa. A fragmentação dos lugares e do tempo; a crítica à entrada e saída de pastores que pouco relacionam os trabalhos pastorais anteriores com os atuais; a percepção da formação teológica distinta; a revelação de que a fé e a vida precisam estar vinculadas; o medo de ficar no meio do caminho; a dignidade em resgatar o espaço perdido; a descoberta de tornar-se mulher; o investimento em si; o resgate da história como uma possibilidade de entendimento de si mesma; e o entendimento que “Deus é uma força dentro de ti mesma” abre caminhos para uma análise sobre a formação e o discurso teológico nos dias de hoje.
Estamos diante um desenho em que buscaremos fazer um delineamento das palavras-chave que indicam parecenças e diferenças a fim de sulcar os contornos da cartografia.

Encontrando traços comuns

Selecionei algumas palavras sugerindo idéias ou frases que foram me dando subsídios para interpretar os fragmentos aqui narrados. Agrupei palavras que definiram o espaço da igreja como sendo comum a estas mulheres.
O que vem à tona são considerações sobre a fé e a vida. Entre elas está uma frase que resgato em Noeli, que por sua vez me conduz à Nair e Islair: Noeli diz que “fé e vida são juntas” e Nair acrescenta que a saúde física, mental e espiritual aconteceram para ela depois que deixou de viver só no seu cantinho. Islair completa, afirmando que fé e ação precisam estar ligadas. Estas falas estão intimamente relacionadas com a vida delas enquanto comunidade e igreja.
Ane resume que a “igreja não pode só falar, tem que ajudar”. O espaço da igreja foi caminho para descobertas, enquanto mulheres, possibilitando movimentações até então não imaginadas. Não é, porém, um espaço garantido, é conquistado de diversas formas.
Estas mulheres experimentaram espaços na igreja, desde o culto infantil, grupos de jovens, passando pela OASE ou grupos de saúde, conselhos da saúde da paróquia, presbitério, presidência de comunidade. São experiências que as fizeram falar sobre como perceberam suas vidas a partir daí. Falar, por exemplo, que a vivência com a Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas gerou a inquietação de que não era só estudo bíblico o que Nair e Eva buscavam. E dentro desta mesma comunidade encontrar outros espaços, ou porque não criá-los?
O projeto de desenvolvimento intermediado pela IECLB e financiado por uma Organização Não-Governamental sinaliza bem esta possibilidade na vida delas. Este projeto desenvolvido dentro da paróquia da IECLB de São Lourenço do Sul alcança quatro das seis mulheres que entrevistei.
É na comunidade da igreja luterana que Ane, indicada pelo grupo da saúde, sai de casa novamente e vai em busca de um novo momento da sua vida. Assim também para Alzira, o grupo da saúde que se encontra uma vez por mês na sua casa dá animo e proporciona que ela vá em busca de mais conhecimento. Quando pode, ela compra um livro, vai a um curso. Possui a Bíblia, o Castelo Forte e o Semente de Esperança como suportes para as reflexões que eventualmente faz com o seu grupo quando o pastor não está presente.
A troca de pastores também foi percebida por mim como um ponto mencionado por todas como desencadeador ou estagnador de atividades. Para Eva e Noeli, estas mudanças implicaram em confrontos e conflitos profundos, talvez ainda não completamente elaborados. Noeli lembra que trabalhava mais quando tinha um pastor e que agora, com o outro, a comunidade está mais voltada para questões espirituais. Isto me leva a pensar que um pastor ou uma pastora, que chegam numa comunidade, sempre podem conduzir uma compreensão teológica diferente da que vinha sendo vivida. E isso desterritorializa, como aconteceu à Noeli. Como também, em outros tempos, a desterritorializou a fazer um curso de formação teológica para leigos. O que mais me impressiona na fala de Noeli é sua calma em constatar a transitoriedade do antes, do agora e quem sabe do dia de amanhã.
Eva, por sua vez, encontrou na resistência da continuidade do trabalho com a farmácia caseira no grupo de mulheres um reforço em achar que, por saber menos, ela foi preterida pela própria comunidade que a convidou. Algo mais ainda chama minha atenção: o processo de resistir às demandas dos novos agentes do sagrado, ou a capacidade em dissimular, faz com que as mulheres, mais facilmente, evitem o confronto.
O meu tataravô, Carlos Friedmann, enfrentou publicamente o pastor e uma parte da comunidade, disse o que veio à cabeça e desligou-se por alguns anos da comunidade que ajudou a formar. Não houve registro em ata, por nenhum pastor, de que minha tataravó tivesse se afastado da comunidade. Por isto, posso imaginar a movimentação dela depois dessa ruptura, desse afastamento. Imagino que continuava se encontrando com as mulheres, mesmo que o marido não quisesse. E talvez, esses encontros foram os que providenciaram a volta do casal depois que houve a troca de pastor. Foi assim que também vi minha mãe fazendo esse meio de campo, depois de um desentendimento, na comunidade que ajudamos a construir em Jaraguá. Entre contatos, conversas e encontros com algumas mulheres Eva potencializou sua marca [reatualizada] de ser marginalizada numa atividade que vinha sendo feita por ela.
Seria esta uma forma de resistir às mudanças trazidas quando algo desterritorializa, quando entra um novo pastor ou pastora, um jeito de elaborar uma nova proposição? Não se confrontar, mas dissimular, ouvir, conversar, dizer que sim, mas depois fazer do jeito que sempre fez ou de outro jeito? Quando a autoridade pastoral desterritorializa os membros, a comunidade, às vezes, reage como grande parte das mulheres: não confronta, dissimula e potencializa uma forma alternativa de resistir.
Mas também temos em Islair, quando argumenta que é membro inscrito na comunidade da Coxilha dos Cavaleiros e pode brigar, uma postura diferente, não é a mesma que a de meu tataravô, pois ela continua membro ativo na sua comunidade. A postura do confronto que Islair sustentou possibilita um diálogo em que ela argumenta sua importância enquanto mulher que possui um conhecimento diferente do pastor: nem melhor, nem pior, mas diferente!
A relação com outras religiões, os casamentos mistos, geram nas narrativas uma argumentação que não gostaria de analisar sem antes deixar claro que a relação de confiança estabelecida entre nós é que proporcionou declarações como as que Nair e Ane fizeram sobre a benzedura. Em especial quero destacar a postura de respeito que elas apresentam. A benzedura em especial, que já foi motivo de pesquisa de André Droogers, é um espaço importante a ser pesquisado. Não com a visão patriarcalista, branca e ocidental, mas no limite de outros saberes que envolvem conhecimentos passados de geração em geração. Na medicina popular, dentro da compreensão de André Droogers, a benzedura conhecida pelos pomeranos do Estado Espírito Santo foi ampliada com os contatos com outras culturas, em especial, com “os brasileiros”. Em geral as benzedeiras conhecem muitos tipos de plantas medicinais e preparos de chás, além das rezas. Nair aponta esta realidade e a considera um ponto positivo. Ao que parece, “mostrar o outro lado,” como diz ir, é um jeito de cooptar o que está aí para ser explicado e inscrito num mundo aceitável. “Não digo nada, não falo contra a pessoa, porque é a crença dela e parece que tu tira alguma coisa do chão quando tu fala contra, deixo ela se iludir,” diz Ane.
Para Droogers, não é fácil identificar o quanto a medicina popular é menos usada hoje do que nos tempos em que os pastores alemães condenavam explicitamente os membros das suas comunidades por usaram desses conhecimentos. Já pastores e pastoras atuais não se posicionam da mesma forma. Segundo Droogers, alguns agentes do sagrado negam o fenômeno e não se posicionam, uns criticam mas de forma mais branda, outros procuram uma atitude mais construtiva, na tentativa de entender a medicina popular na sua origem. Numa das conversas com Nair sobre seus avós e bisavós ela relatou que sua avó materna era descendente indígena. Brincando, ela me disse, “quem sabe é por isso que estou nessa pajelança”. Entender a medicina popular é entender a religiosidade popular, enfim as raízes que fizeram o povo pomerano no século XII silenciar frente ao cristianismo, católico e depois protestante, suas devoções à natureza, suas divindades.
Não percebi em nenhum momento, talvez por não ser pastora, qualquer sentimento de culpa nestas mulheres por terem procurado benzedeiras, ou admitirem que, por curiosidade, conheceram ou gostariam de conhecer outras experiências relacionadas com a religiosidade ou com outras questões como prever o futuro através de leitura de cartas, por exemplo.
Tal facilidade em transitar por diferentes percepções do sagrado e místico pode ser
encontrado em outros contextos da IECLB. Oneide Bobsin relata, a partir de uma pesquisa de campo, uma visita feita na casa de uma mulher membro da comunidade luterana situada na grande Porto Alegre. Na casa aberta ao pesquisador/pastor havia um cartaz em forma de quadro que trazia o horóscopo da dona da casa com características do seu signo. O diálogo que se sucede reflete bem o quanto estes subterrâneos, no dizer de Bobsin, são ou não importantes para serem observados no discurso teológico luterano. As pessoas querem saber se há algum retorno (a busca do prazer) para elas, enquanto desejosas por lidar com as coisas místicas, religiosas, racionais e emocionais ao mesmo tempo. A mulher visitada conclui: “Pastor, eu acho horóscopo bobagem, mas a gente tem que ter um pouquinho de superstição. Quem não tem!”
Hermann Brandt atualiza nossa discussão afirmando a importância do sincretismo pelo fato de ele poder ser identificado dentro da igreja, e não mais fora dela. Parece haver, por parte de tudo que é instituído, a idéia do sincretismo como a lepra que precisa ser isolada, neutralizada. No entanto, “uma religião só pode permanecer viva se acolhe elementos que, originalmente, lhe são estranhos, os incorpora em si e os ‘digere’. Ela faz isso acolhendo o que corresponde à sua própria identidade e eliminando o que lhe é indigesto”. É assim com toda e qualquer aprendizagem: uma desterritorialização, uma simulação e uma novamente territorialização.
Os espaços vivenciados na igreja são perceptíveis em todas entrevistadas. É a partir deles que começo a perceber a possibilidade do resgate de aprendizagens vividas pelas mulheres numa educação teológica em processo. A ultima palavra escolhida por mim e desenhada como sendo comum na fala das mulheres é o reconhecimento do que elas fizeram e fazem. É o reconhecimento do pastor, da comunidade, das colegas, da família, que elas estão realizando coisas importantes: quando Noeli diz ter o dom de consolar e ouvir – e por isso muitas vezes é elogiada – ela se sente reconhecida; a visita do pastor presidente numa festa, quando Eva era presidenta da comunidade em Boa Vista, e pôde mostrar todo trabalho com a farmácia caseira; quando Alzira reivindica valorização pelo seu trabalho enquanto promotora de saúde; a pergunta de Islair sobre a valorização do conhecimento das pessoas leigas na comunidade; a avaliação da função materna de Ane de que sua filha está bem cuidada; a constatação de Nair de que os pastores reconhecem a importância do seu trabalho. O reconhecimento como um aceno para seguir adiante é uma reflexão que ainda estamos apenas começando a fazer. Tem um pouco, ou muito, a ver com a realidade de quem nomeia, ou daquilo que a ciência inscreve como algo aceitável. Estamos inscritas e somos nomeadas pelo olhar/desejo do outro?

Encontrando palavras que diferenciam
Como mulher da roça, com clareza das possibilidades e limitações que o trabalho na agricultura familiar no Brasil de hoje oferece, Noeli possui uma leitura própria desse contexto. Ela o considera injusto e reflete, a partir daí, sobre o compromisso da comunidade/Igreja, membros e pastores frente aos desafios que pedem mudanças. “Hoje as terras empobreceram, nosso investimento é muito alto e nosso lucro muito pouco. Temos que trabalhar mais para ganhar menos, isto é muito cansativo”. Para as mulheres, segundo Noeli, é mais desgastante ainda.
O trabalho de assessoria do CAPA trouxe consciência da cidadania e uma visão crítica para com uma igreja/comunidade que é conduzida atualmente por lideranças religiosas voltadas somente para a espiritualidade. Noeli não consegue separar vida de comunidade e fé. Fé e vida, para ela, são juntas e comunidade é onde há “comunhão para repartir as dificuldades.” Deus se revela pela palavra que age e nos faz perceber as injustiças. Para Noeli, a ação divina acontece pelo anúncio e pela denúncia das coisas que não estão bem à nossa volta. É preciso dizer mais alguma coisa depois que ela fala que “a fé é aquilo que a gente crê e não se vê, mas tu crê que Deus age e nos dá poder e por isso faz com que nós também vejamos as injustiças”?
A análise que ela faz do corpo, do ser mulher e de cuidar de si é singular. A mulher, segundo Noeli, não pode se limitar a lavar a roupa, cuidar da família. Ela fará isto, mas junto com a participação na vida pública, em reuniões, decidindo, participando com os homens e se valorizando. Para Noeli, a descoberta de ser mulher tem que ser solitária. Descobrir-se sozinha parece ser porque na experiência de Noeli isto aconteceu assim e de fato para muitas mulheres sucede o mesmo. Desta maneira podemos acrescentar à frase clássica de Simone de Beauvoir de que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” e torna-se mulher mediada pelo que a cerca, mas fundamentalmente torna-se mulher de forma solitária.
Nair avalia como positivo o tipo de trabalho que ela e outras pessoas desenvolvem juntamente com os pastores. Para ela, eles já percebem o quanto é importante: “funciona na prática, não só na teoria onde eles pregam, a gente faz junto. As duas coisas se juntam, porque o que é igreja? A igreja é o nosso dia-a-dia”. Quanto mais Nair se envolve, mais ela cresce. Ela percebeu, porém, que estava entrando no modelo pastoral, de trabalhar inclusive aos finais de semana. A paróquia foi absorvendo este modelo “igrejeiro”, como ela definiu, entendendo seu trabalho como pastoral, um pouco, talvez, por ser pago através do projeto de desenvolvimento. No projeto iniciado em outubro de 1997 ela teve o cuidado de não repetir o planejamento dentro deste modelo “igrejeiro”. Nair justifica toda sua movimentação através de um questionamento: “Qual o valor que temos a dar? Ficar trabalhando só para a gente e não se importar com a vida lá fora? Quer dizer, isto é fé também.” E, continua em sua avaliação sobre igreja: “Como luteranos somos fechados”. Focaliza bem a realidade do trabalho com saúde que não pode ficar limitado aos membros desta igreja, que por sua vez tem dificuldades em mudar seus hábitos alimentares e seu modos de pensar. Nair, quando olha para a igreja, vê um todo e quando olha para a vila ou distrito em que trabalha enxerga todos os lugares e pessoas: nenhuma pode ser excluída, independente da religião ou etnia. A compreensão da fé é algo elaborado e flui com intensidade na fala de Nair. O que fica claro é que a fé mostra um Deus, um Deus que foi ensinado como pai, mas toma a forma de força interior que leva a pessoa a fazer coisas boas, bonitas. “Dá para dizer que é uma força interior, que está dentro de ti.” Nair também estabelece diferenças entre a fé que ela tinha quando criança, quando “alguém te diz” e a fé atual, que possui dúvidas e ela define como uma fé possível de ser vivida, “tu vai convivendo com ela”.
Islair percebeu, para si, uma superficialidade no discurso de reavivamento espiritual do Movimento Encontrão que desencadeou um questionamento e conversas com o pastor atuando naquele momento, na sua comunidade, apontando para outras possibilidades. Encontra, então, a Pastoral Popular Luterana, mas que também ainda parece distante do que ela já está vivenciando concretamente no seu dia-a-dia enquanto promotora de saúde. Foi na viagem a um país distante que Islair percebeu que o Brasil é lindo e tem coisas muito boas. Assim também, quando começou a trabalhar, dentro de uma visão comunitária, na promoção da saúde, ela mudou sua visão de igreja. Foi um certo distanciamento que proporcionou a Islair o dar-se conta de questões não percebidas anteriormente. O questionamento sobre a participação das leigas e dos leigos se faz presente e de forma muito concreta, quando confronta o pastor sobre a importância de uma coisa que faz parte dela, o devocionário Sementes de Esperança, no qual tem participação efetiva. Islair confronta – e lembra a mulher que traz o perfume para ungir Jesus. E afirma: “Sou membro inscrito, posso brigar”. Legitimada, ela parte para novas conquistas, não fica somente nos cursos de formação a nível de extensão. Busca o caminho da educação formal por perceber as necessidades e exigências do campo de atuação. Qualificação é sua preocupação, mas sem perder de vista o compromisso do trabalho comunitário e de saúde preventiva.
“Eu não era crente de estar sempre na igreja, mas sempre que podia participava.” Retomo, com esta fala, as palavras que distinguem Eva. Com esta despretenciosidade ela chega a ser presidenta da comunidade do distrito de Boa Vista. Em dois anos ela se espanta sobre as coisas que realizou. No salão daquela comunidade há um mural que chamou minha atenção: um texto contando a história da comunidade, quando Eva era presidenta da comunidade. Está lá como prova de um toque todo especial de conduzir um grupo. Entre vários desses toques destaco a festa realizada quando a igreja completou trinta e cinco anos, a “coitada daquela igreja” que até então não havia recebido nenhuma festa ou homenagem. Festa, homenagens a membros fundadores, jogos, apresentação da farmácia, de trabalhos manuais, movimentações estranhas e petulantes estas de Eva. E no jeito de administrar, então, mais novidade: acordos, troca de serviços para quem estivesse com a mensalidade atrasada. Eva inovou até que houve a troca de pastor. Houve outros saberes, novos confrontos e conflitos. Grupos até então esquecidos retomam suas trajetórias e sinalizam um novo momento. O trabalho em torno da saúde, do jeito que estava sendo conduzido, foi esvaziado. Eva sentiu na pele e interpretou este esvaziamento como uma humilhação, mas reagiu com singularidade, encontrando novos espaços dentro desta mesma comunidade através do trabalho agroecológico. Por isso, talvez, quando lhe perguntei como relacionava sua fé e qual sua visão de Deus a partir de todos estes trabalhos já realizados, muitas vezes houve um silêncio. O Deus dentro dela é o que importa.
Em Alzira resgato palavras que se distinguem pela persistência de buscar o que deseja. “Minha força está nisso de participar”. Deus está na participação e Deus também é pai, está sempre junto. Mesmo se na sua vida tenha conhecido apenas o padrasto que é definido como não sendo a mesma coisa que pai, Deus é pai.
Duas situações se destacam na minha leitura: uma é a participação com mulheres que a faz perceber e dizer onde encontra a força, e a outra é quando nomeia Deus e diz que é pai. Interpreto que Deus aparece como pai para confirmar um discurso ensinado, mas o que tem vida e força de verdade é o que veio antes, a relação com o grupo, os encontros que trazem “força para enfrentar a vida”. A força ela encontra no feminino, no espaço com outras mulheres, porém quando precisa nomear diz como foi ensinada: no masculino.
Alzira não teve apoio para sair de casa tranqüila e participar. “Até h
oje deixo as coisas prontinhas e vou”. Diferente de Nair, que agora nem se preocupa tanto com a casa, ou Islair, Eva, Ane e Noeli, Alzira se desdobra para conseguir sair de casa. Conseguiu reunir num espaço, que é o espaço da igreja, um lugar em que ela pode começar a pensar a si mesma. E não fica nisso. Ela quer ensinar o que aprendeu. “O que eu quero é ter alegria e saúde junto com meus familiares e amigos e que as pessoas que estão ao meu lado possam também entender e valorizar o que eu quero e tenho para ensinar sobre saúde”.
Encontrei em Ane uma cumplicidade fraternal sobre o medo de ficar no meio do caminho. Quero ainda identificar sua distinção nas palavras, que me remetem a algumas questões de origem, quando ela fala do pai que também é como ela, inteligente, mas não mostra tal capacidade. Retorno para a origem pomerana, o ser pomerano enquanto povo dominado pelo medo de ser invadido pela cultura alemã e cristã, que sobreviveu de sobras, restos que ficaram na memória. Não mostrar o que pode e sabe fazer como uma marca que não potencializou, paralizou. Há mal-estar de que, tendo condições, não se permite voar vôos de águia. É um povo que poderia dizer mas não diz, silencia Ane, fica quieto escondendo suas potencialidades. Talvez por isso na narrativa de Ane, Deus não mudou da época de criança e agora. Ela prefere se definir como alguém dependente de Deus, vivendo seu “sentimento como sentia”, precisando de força e se agarrando muito.

(Des)fragmentando Teologias

O termo (des)fragmentar soou estranho num dia em que meu computador congelou totalmente e precisei chamar um especialista para diagnosticar seu problema. Depois de abrir todos os “sofwares e hardwares” possíveis ele apresenta a seguinte situação: “o seu computador precisa ser des-fragmentado, pois os seus constantes congelamentos acontecem devido a um problema na placa-mãe, etc. e tal. Nem prestei mais atenção na explicação seguinte: comecei a fazer associações, livre-associações sobre como a Teologia aprendida pelas mulheres durante tantos séculos precisava ser (des)fragmentada para, num segundo momento, ser percebida como tal, e para, logo em seguida, poder ser ensinada de outros jeitos, inimagináveis até os nossos presentes dias.
Há muito o que produzir e pesquisar, então: corpos em movimento, leiamos realmente corpos integrais, sem essa de mãos à obra, pois faltarão as tantas outras partes interessantes, necessárias e imprescindíveis para se fazer Teologia.

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