Autor: S.E.R. Card. Fréderic Etsou-Nzabi Bamungwabi Arcebispo de Kinshasa
Nós estamos felizes em tomar a palavra diante desta augusta assembléia para partilhar convosco, irmãos e irmãs representantes das famílias católicas do mundo inteiro, nossas alegrias e esperanças[1], mas também nossas tristezas e nossas angústias quanto à situação da família no mundo e particularmente na África. A família como sabemos e como a quase totalidade das culturas do mundo o reconhece, é a base natural da comunidade humana[2]. Neste sentido, a família é, segundo a expressão de sua santidade o Papa João Paulo II, a rota da Igreja. Ela é uma rota comum e única da qual o ser humano não pode desviar-se. Nós viemos ao mundo pela família, nós conservamos nossa existência pela família[3]. Também o equilíbrio do homem, tanto quanto o equilíbrio da sociedade dependem do equilíbrio, da estabilidade das famílias. É esta experiência do equilíbrio da sociedade mantendo o equilíbrio e a estabilidade das famílias que as tradições africanas estão ainda dispostas a oferecer ao mundo nos albores do terceiro milênio, na medida em que ajudarmos a salvaguardar seus valores de culturas e civilizações.
Em nossa proposta, queremos vos expor sobre a família como dom de Deus à humanidade. Neste sentido, ela é percebida na África como fonte de vida e dos valores da humanidade. Mas para além de uma imagem idílica do continente africano e de seus valores de culturas e de civilizações, partilharemos convosco algumas experiências infelizes de numerosas famílias da África dada a mistura das culturas, especialmente por causa dos malefícios das culturas ditas “modernas”, a crise sócio-econômica e os conflitos políticos que dilaceram o continente nestes últimos tempos. Também terminaremos nossa intervenção sublinhando as responsabilidades dos pais e da comunidade, simultaneamente o papel que é chamado a desempenhar a Igreja tanto como mãe e mestra, guia e pioneira.
1. Família como dom de Deus à humanidade
A família possui sua origem no amor criador de Deus. Ao criar o homem e a mulher, Deus consagrou o amor humano do qual o matrimônio e, por via de conseqüência a família, são os lugares por excelência de expressão. A revelação divina nos indica assim o sentido e o alcance geral do matrimônio e da família segundo o desígnio de Deus sublinhando a ligação do homem e da mulher. Então este exclamou: “Desta vez, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Esta será chamada mulher porque foi tirada do homem. Eis porque o homem deixa seu pai e sua mãe e se une à sua mulher e eles se tornam uma só carne” (Gn 2,23-24)[4].
Por esta palavra da Escritura, a família se manifesta como um duplo dom de Deus à humanidade: ela é ao mesmo tempo um Dom de amor e um Dom de vida. Trata-se exatamente de um duplo dom, e não de dois dons distintos, porque a vida que recebemos de Deus procede de seu amor: Deus nos criou porque nos ama.
A família é um dom do amor de Deus à humanidade, pois foi por amor que nos criou e foi por amor que nos salvou pelo sangue de seu Filho único, Jesus Cristo, em quem todos os seres que crêem no amor criador do Pai se tornam uma mesma família. No coração do duplo mistério da Criação-Redenção há o mistério do amor do Pai para com o mundo concretizado pelo sacrifício do Filho: “Jesus, sabendo que sua hora de passar deste mundo para o Pai havia chegado, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1).
Dom do amor de Deus à humanidade a família se torna assim, pelo sacrifício do Cristo, o lugar do dom do amor mútuo, dom recíproco entre o homem e a mulher, especialmente no casamento. Igualmente o sacrifício e a aliança do Cristo com a Igreja sempre serviram de símbolo e de modelo para a família cristã em continuidade com o apóstolo que conclama os esposos ao amor verdadeiro: “Maridos, amai vossas mulheres como o Cristo amou a Igreja: Ele se entregou por ela, a fim de purificá-la com o banho da água e santificá-la pela Palavra, para apresentar a si mesmo a Igreja, gloriosa, sem manchas nem rugas, ou coisa semelhante, mas santa e irrepreensível. Assim também os maridos devem amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos. Quem ama a sua mulher ama a si mesmo, pois ninguém jamais quis mal à sua própria carne, antes alimenta-a e dela cuida, como também faz Cristo com a Igreja, porque somos membros do seu corpo. Por isso deixará o homem o seu pai e a sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma só carne. É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e a sua Igreja. Em resumo cada um de vós ame a sua mulher como a si mesmo e a mulher respeite o seu marido” (Ef 5,25-33).
Mais adiante, o apóstolo associa os filhos a esta trama a fim de tornar perfeito o amor e coerentes as relações na família: “Filhos, obedecei a vossos pais, no Senhor: isto é justo. Honra teu pai e tua mãe, tal é o primeiro mandamento ao qual se une uma promessa: para seres feliz e teres uma longa vida sobre a terra. E vós pais, não exaspereis os vossos filhos, mas usai, educando-os, das correções e disciplinas que se inspiram do Senhor” (Ef 6,1-4).
Tal é o fundamento escriturístico da moral familiar que tem o amor como núcleo vital. O amor que preside a toda relação entre esposo e esposa de sorte que não há mais senhor e escravo[5], superior e inferior, mas igualdade de direitos e de dignidade, no respeito às diferenças inerentes à natureza própria do homem e da mulher. O amor que regula as relações entre pais e filhos de tal modo que os primeiros encontrem seu regozijo na presença de seus filhos, e que estes cresçam na alegria graças à afeição e ao apoio de seus pais.
Dom do amor de Deus à humanidade, a família quer a si mesma como um dom da vida de Deus à humanidade. Foi porque Deus nos amou que nos criou; foi porque Deus nos amou que Ele nos deu a vida. Por isso criou o ser humano, homem e mulhe rpara se amar e fundar uma família, a fim de promover a vida. Desde sua origem, desde seu começo, o homem vive pelo sopro de Deus, da vida de Deus. É nesta perspectiva que seu Filho vai inscrever toda a sua missão redentora: “Eu vim para que os homens tenham a vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Dom da vida à humanidade, a família é chamada a se tornar assim o santuário da vida[6], o lugar, o lar da vida, o lugar onde a vida, toda vida humana é acolhida, promovida, respeitada, protegida etc.[7] O direito mais fundamental do homem, diz o Papa João Paulo II, é o direito à vida.[8] É à família que pertence em primeiro lugar o dever de salvaguardar este direito, particulamente para os seres frágeis, os seres humanos inocentes e sem defesa, aí compreendidos aqueles que acabam de ser concebidos, de nascer ou igualmente aqueles que estão avançados em idade e perderam toda autonomia. A família deve permanecer o lugar da gratuidade, do acolhimento e do dom: onde todo homem, qualquer que seja, tenha a chance de ser reconhecido, respeitado e honrado por ser uma pessoa. Ela é o primeiro lugar onde a vida, dom de Deus, deve ser convenientemente acolhida e protegida contra os numerosos ataques aos quais está exposta, o lugar onde ela deve se desenvolver consoante as exigências de um crescimento humano autêntico. A família é o lugar do anúncio, da celebração e do serviço à vida[9].
2. Família fonte de vida e dos valores da humanidade
Todo dom implica dever, responsabilidade: “Vós recebestes gratuitamente, dai também gratuitamente” (Mt 10,8). Todo valor, toda a riqueza de um dom provém do fato que é dado. Um dom é caro justamente porque não tem preço, ele foi dado gratuitamente, graciosamente… É neste sentido que na África negra, vivemos a experiência da família como dom do amor e dom da vida de Deus à humanidade. Dons gratuitos que nos lembram nossos deveres, nossas responsabilidades face à vida, ao homem, à humanidade. A família permanece deste modo, nas tradições africanas, a primeira fonte da vida e dos valores da humanidade, pois é na família que se recebe a vida e é ali que se adquire os primeiros reflexos da vida salutar com o outro[10] na sociedade. É na família que se aprende o respeito à vida, o acolhimento do outro e a aceitação mútua, o diálogo, a partilha etc. antes de viver tudo isto com o mundo exterior. A criança que não viveu a boa experiência do calor familiar animada pelo amor dos pais, a vida salutar junto a seus irmãos e irmãs terá dificuldade, de se estruturar na vida para levar uma coexistência pacífica com os outros.
Na África tradicional, e ainda hoje na maior parte dos grupos, quando a criança vem ao mundo, a comunidade dos adultos se esforça em integrá-la na sociedade através de um certo número de ritos de passagem que iniciam à vida e aos valores nobres da humanidade: o respeito à vida, a toda vida, mesmo àquela dos seres inferiores como os animais, as plantas, os pássaros que constituem nosso meio ambiente vital, o respeito ao outro, mesmo ao mais fraco, como o deficiente, os doentes (inclusive os doentes mentais), os pobres, as pessoas idosas, o respeito para com os usos e costumes, como por exemplo as exigências concernentes ao regime matrimonial, à veneração aos defuntos e ancestrais, às exigências da paz e da convivência fraternal na comunidade etc. Todo o sistema de educação tem por finalidade ligar o homem ao homem pelas múltiplas relações de solidariedade em vista das exigências sociais vistas. Toda atitude egocêntrica, todo desejo de êxito pessoal é contado entre os pecados sociais mais graves.
Do mesmo modo, além da morte que é golpe objetivo direto à vida, o Negro Africano considera como faltas morais graves: a falha no acolhimento, a incitação à discórdia, a inveja, a mentira, o roubo, o rancor, a cólera, a injúria, o mau uso dos bens da natureza, em resumo, tudo que prejudica a vida, isto é, à pessoa e aos bens, aos meios vitais dos homens tomados individualmente e coletivamente. Todo o mundo é chamado a agir em favor da felicidade, da vida e da sobrevivência de todos.
Devemos tudo isso à nossa concepção unitária da vida. Com efeito, entre os valores nobres da humanidade que se encontram nas tradições africanas, há esta consideração da união vital ou da unidade de vida existente entre os seres de uma mesma família e para além das famílias, daqueles de um mesmo clã, de uma mesma sociedade. Trata-se do princípio da união vital e da participação que se quer “uma relação de ser e de vida de cada um com seus descendentes, sua família, seus irmãos e irmãs do clã, seu ascendente e com Deus, fonte última de toda vida (…), uma relação análoga de cada um com seu patrimônio, sua terra, com tudo o que ela contém ou produz, com tudo o que nela cresce e vive”[11].
O princípio da união vital e da participação supõe a comunhão entre todos estes seres, ao centro dos quais está o homem. Donde o sentido mesmo da vida humana que é preciso captar em seu sentido pleno enquanto “vida integral”, “vida totalmente humana” em sua dupla dimensão individual e comunitária, espiritual e física. Uma vida integral, individual e física enquanto recebida em cada existente, e comunitária e espiritual enquanto participada de uma mesma e única fonte, Deus[12]. Isto é uma vida participada, o que significa dizer que o indivíduo não vive sua própria vida, mas a da família, da comunidade, pois na concepção africana, o ser humano é essencialmente membro e não “porção”[13]. Ele é certamente um ser autônomo, mas sempre um ser-como-outrem.
É nesse “antropocentrismo comunitário” que convém também compreender a noção de pessoa humana que não está confinada naquela da “liberdade pessoal”, não que esta última seja inexistente ou desconhecida na África, mas aqui a liberdade pessoal não é senão uma realidade numa vasta rede de relações familiares nas quais o indivíduo não cessa de levar uma existência independente e autônoma. Portanto, é numa perspectiva personalista que se compreende nossa concepção do homem.
Deduz-se desta reflexão que a moral africana é essencialmente antropocêntrica e vital: isto significa que o homem e a vida humana são o critério de todo julgamento moral sendo bom o que contribui para a vida, para sua promoção, sua conservação ou proteção; aquilo que faz desabrochar ou aumentar o potencial vital do indivíduo ou da comunidade. Em compensação todo ato presumido prejudicial à vida dos indivíduos ou da comunidade passa por mau[14]. A moral, como a religião coloca o homem no centro de tudo. O respeito à vida é por conseguinte a primeira norma que orienta os atos humanos. Por isso, na África negra tradicional, o homicídio está à frente das faltas graves[15]. A vida humana deve ser protegida desde que venha a dar “sinal de vida”. Mesmo nos casos de concepção extra-matrimonial, o recurso ao aborto era proibido. E quando esta vida vem ao mundo, o primeiro dever era de promovê-la. O cuidado em proteger a vida, isto é, a luta contra a subalimentação, o mau habitat, as doenças, a ignorância e a irresponsabilidade é, nas nossas tradições africanas, uma exigência do direito natural.
Antropocêntrica e vital, ter-se-á observado, nossa concepção não malogra em um horizontalismo estreito, trata-se de uma concepção inteiramente religiosa cujo centro é o homem, mas sempre em referência ao Criados e aos ancestrais. Esta é uma concepção concreta, vivida, uma moral social e vital, uma moral religiosa na qual Deus se revela como o soberano bem para o qual é preciso elevar-se, realizando o que é bom, elevar-se para Deus, para o Bem, é combater tudo o que tende a rebaixar e a desonrar o homem, é lutar contra o mal que atenta à vida, ao homem. Assim todo atentado à vida como ao homem é uma desonra à própria fonte da vida que é Deus, e aos ancestrais por quem nós recebemos este dom.
3. A família africana no encontro com outras culturas
Tal é a nossa visão do mundo que, para alguns, dá a África Negra a imagem de um paraíso perdido. Assim a questão que alguém dentre vós pode se colocar, com razão, é aquela de saber o que são destas tradições africanas hoje, na aurora do terceiro milênio?
A primeira coisa a dizer é que nosso continente é o que mais sofreu com o choque das culturas e civilizações, especialmente com aquelas do ocidente. Há muitos benefícios no encontro das culturas e dos povos, mas há também um certo número de malefícios que desestabilizaram nossas concepção de vida, o sentido da liberdade, da vida comunitária, do “viver junto” etc. Com efeito, como bem sublinhou o Papa João Paulo II em sua carta publicada por ocasião da jornada mundial das comunicações sociais, o encontro dos povos e das culturas favorecido pelos potentes meios de transporte e comunicação social está marcado pela dominação da cultura ocidental ou pelos valores de predominância comum em detrimento dos valores culturais e religiosos próprios dos outros povos[16]. Assim entre nós, na maior parte das grandes cidades africanas, a beleza da vida familiar com suas exigências de fidelidade, de unidade do casal e da fecundidade do casamento está ameaçada pelas imagens da televisão provenientes dos países do norte. O próprio sentido do casamento, como um dos símbolos mais significativos de nossas culturas está arruinado em conseqüência dos debates e das propagandas ideológicas sobre a união livre, a legitimidade do divórcio, da poligamia etc. Quanto à sexualidade, tende a se tornar um domínio da livre opinião, da permissividade encorajada pela propaganda dos métodos contraceptivos, das relações precoces entre os bem jovens, o aborto, etc., com tudo o que isto tem de conseqüência sobre o equilíbrio psicológico dos adolescentes e sobre a questão fundamental do respeito à vida. Em muitos países a prática do aborto é apresentada como sinal de liberação da mulher trazendo, como conseqüência a cultura cada vez mais visível da rejeição à criança e rejeição mesmo à maternidade, como valor ligado ao próprio ser da mulher.
A tudo isto é necessário acrescentar as imagens de criminalidade e violência veiculadas sempre pelos “medias” e cujos malefícios são tais que em muitos meios, onde a criança não possui sempre a possibilidade de ser iniciadas às leituras das imagens, os adolescentes confundem, às vezes, as imagens de guerra enquanto noticiário e aquelas do filme de guerra ou de violência que segue o noticiário. Desde a idade juvenil, cultiva-se junto a nossas crianças o gosto pela aventura, pela criminalidade, pela morte. Mata-se nelas a beleza da vida, o sentido do outro, o ideal da paz. Assim é que se desenvolve na África negra uma “cultura da morte”[17], contrária às nossas aspirações, à nossa concepção de vida. Uma cultura da morte cuja expressão é seguramente o drama dos conflitos tribais e das guerras pelo poder que recentemente denegriram a imagem da África na Libéria, na Somália, em Angola; os atos de genocídio perpetrados em Ruanda, no Burundi, no leste da República Democrática do Congo etc. Para dizer a verdade, a África conheceu outrora as guerras tribais, como todos os povos do mundo, mas nunca os africanos se mataram tanto entre si como se viu nos últimos tempos. A entrada no mundo dito “moderno” contribuiu em algumas coisas para as situações de violência que vivemos hoje. Para se convencer disto basta avaliar a quantidade de armamentos pesados que circulam em nossos países, quando a maioria não dispõe nem mesmo de pequena fábrica para confeccionar bombas de gás lacrimogêneo ou simples facas de uso doméstico. Por isso formulamos o desejo de ver a comunidade internacional nos ajudar a salvaguardar o nosso ideal de vida, notadamente pela adoção de medidas apropriadas no âmbito da venda de armas, na África e em outros países do terceiro mundo.
No fundo desta crise que atinge o continente africano e que tem conseqüências enormes para a santidade de nossas famílias, há também a noção de liberdade tal como é definida pelas culturas ditas modernas. Com efeito, forçoso nos constatar, em primeiro lugar, que graças aos movimentos de idéias fomentados pelos povos do norte pelo início do século XVIII, nossa época foi marcada pela conquista de direitos. Desde a declaração dos direitos humanos pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948, até a assinatura da Convenção dos Direitos da Criança, passando pela afirmação dos direitos da mulher, das minorias étnicas etc., pode-se afirmar que nosso século é o século dos direitos. Tudo em nós felicitando por esta promoção da dignidade da pessoa humana, que caracterizou nosso século que termina, observemos entretanto que esses direitos e liberdades não foram sempre bem definidos, ocasionando uma generalização abusiva dos princípios que não se dão conta das particularidades religioso-culturais de cada povo.
Deste modo, o que quer que se possa dizer da situação da mulher na África Negra, entre nós a promoção dos direitos e da liberdade da mulher não se define em oposição aos direitos da criança por nascer, como se ouve freqüentemente no debate ideológico sobre o aborto, por exemplo. Ao contrário, aceitando a maternidade como um valor ligado à sua natureza feminina é que a mulher realiza sua verdadeira liberdade. Na nossa tradição africana uma mulher é chamada “mãe” mesmo quando não tem filhos. Do mesmo modo a consideração dos direitos e da liberdade da criança que não podem encontrar sua realização senão no seio da vida familiar. O reconhecimento dos direitos e da liberdade das crianças não aniquila a autoridade dos pais. Quanto ao próprio varão, dir-se-á dele que é um homem livre se cumpre antes de tudo os seus deveres de esposo e de pai de família.
Vê-se, contrariamente a uma certa compreensão de liberdade como desenraizamento, tensão com a autoridade (dos pais ou outra), nossa concepção africana se coaduna com a concepção cristã, segundo a qual a liberdade é vista como um dom[18]. No seio da família, da comunidade, no diálogo entre esposo e esposa, pais e filhos, educadores e educados etc., é que a verdadeira liberdade se realiza. Fora deste quadro, esta é sinônimo de servidão[19]. A verdadeira liberdade se cumpre na verdade em favor do bem. Esta não é aquela faculdade de fazer não importa o que, mas ela é dom de si, matriz de si e responsabilidade, isto é, iniciativa livre do indivíduo e dever para com o outro.
Por isso nós nos opomos sempre à aliança entre o ideal democrático e um certo relativismo que alguns querem nos impor como sinal de tolerância e de respeito mútuo. Reconhecemos a democracia como um valor mas ela não deve se tornar um substitutivo da moralidade ou uma panacéia da imoralidade: ela é um instrumento e não um fim, sua credibilidade depende de sua conformidade à lei moral. Deste modo, quando uma maioria parlamentar ou social decreta a legitimidade da supressão da vida humana ainda não nascida, por exemplo, a lei não deixa de ser tirânica porque dita democrática. O valor da democracia se mantém ou desaparece em função dos valores que encarna ou promete, em primeiro lugar aqueles fundamentais e indispensáveis à dignidade de toda pessoa humana, ao respeito dos seus direitos intocáveis e inalienáveis, tal como o reconhecimento do “bem” comum como fim e critério regulador da vida política[20].
Tudo isto leva a refletir e convida a tomar consciência da fragilidade de toda liberdade fundada sobre nossas próprias intuições, sobre nosso próprio eu. Pois, como nos lembra ainda o Papa João Paulo II: nossa “liberdade necessita ser libertada” pelo Cristo[21]. Ele é a verdade que nos torna livres (Jo 18,37). Seguir o Cristo é assim o fundamento essencial e original da vida cristã. Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6), ele é a luz do mundo, a luz da vida (Cf. Jo 8,12). O Evangelho deve ser para as famílias cristãs a fonte de toda verdade salutar e de toda regra de vida[22]. Pois ele nos propõe de aderir à pessoa do Cristo, de partilhar sua vida e seu destino, de participar de sua obediência livre e amorosa à vontade de Deus, o Pai[23], o supremo bem, em quem a regra do bem-agir encontra seu fundamento: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal, que transformam as trevas em luz e a luz em trevas, que mudam o amargo em doce e o doce em amargo” (Is 5,20).
4. A responsabilidade dos pais e da comunidade
Compreende-se desde logo a responsabilidade dos pais e da comunidade no trabalho de humanização da família humana. Nossas famílias só poderão ser santuários da vida, lugar da prática do amor, da caridade, lugar de educação para a vida salutar com o outro na sociedade se os pais assumirem de coração seu papel de primeiros educadores. É todo o trabalho de moralização, de evangelização da vida da família que somos chamados a realizar para preparar a entrada no terceiro milênio.
A primeira tarefa nesta moralização, nesta evangelização compete aos pais. Para educar seus filhos para o amor, para a vida, para a prática da caridade e outras virtudes nobres da humanidade, à busca da paz, eles próprios devem começar a se amar verdadeiramente, a respeitar a vida, a praticar a caridade, a procurar a paz. Não se educa melhor que dando bons exemplos. O amor, os pais se quererem bem, inspira às crianças o sentimento de serenidade, os assegura sobre o caminho da vida e os dispõe, mais tarde a viver e a trabalhar pacificamente com os outros. Ao contrário, as crianças que crescem na tensão familiar, levam consigo ressentimentos e frustrações que não os dispõem à coexistência pacífica com os outros no futuro.
A moralização, a evangelização da família passa portanto pela revalorização da família da qual o amor, a unidade e a indissolubilidade do casamento são a garantia de estabilidade. Muitas crianças no mundo são infelizes por causa da separação dos pais, outras vivem em famílias incompletas, como o afeto da mãe sem a autoridade do pai ou vice-versa, outras ainda vivem simplesmente na rua, porque não possuem família ou por terem sido rejeitadas, abandonadas pelos pais. Entre nós na maior parte das grandes cidades africanas proliferam vocábulos para qualificar esta última categoria de crianças. Chamam-nas charlatães, pardais, pivetes, meninos de rua, etc. Mas que se fez a estas crianças para merecer tal sorte? A maneira como uma sociedade trata suas crianças não demonstra somente que esta é capaz de compaixão e proteção humanitária, mas igualmente que ela tem um senso de justiça, que está engajada rumo ao futuro e deseja melhorar a condição humana para as gerações vindouras[24].
Vê-se que a tarefa ultrapassa um tanto o nível somente dos pais. É à toda comunidade que cabe velar pela moralização e evangelização da vida familiar. Da estabilidade de nossas famílias, faz-se necessário repetir, depende o futuro da sociedade, a estabilidade da comunidade. Pertence à comunidade o dever de se mobilizar para exigir da autoridade pública e do poder decisório, medidas adequadas para proteger a família contra os males que a corroem hoje; as imagens imorais e violentas da televisão, o tráfico das drogas e outros estupefacientes junto aos jovens, a brutalidade de certos pais, a falta de estabilidade das famílias devido ao divórcio, à poligamia sob suas diversas formas disfarçadas, à proliferação das uniões ditas livres etc.
Em matéria de educação das crianças e dos jovens, o papel atribuído à comunidade cresce cada vez mais. Pois nenhum pai pode pretender decidir por meio só do seu ideal sem contar com a ação conjugada dos outros membros da comunidade ou das associações de bairro. Hoje as nossas crianças se movem num vasto campo de relações. Seu futuro depende certamente da educação recebida na família, mas também daquela oferecida na Igreja ou na escola, das influências dos outros com quem se encontram na rua, no bairro, no local de férias etc. Torna-se particularmente exigente para os pais preservar suas crianças de atitudes imorais e assegurar que sua educação em matéria de relações humanas e sua percepção do mundo se faça de maneira apropriada, de acordo com sua idade ou sensibilidade e consoante a noção que adquiriram do bem e do mal[25]. Compete portanto à comunidade, a todas estas pequenas comunidades de escopo humano, como aquelas que chamamos entre nós Comunidade Eclesial Viva de Base, fazer um projeto educativo comum suscetível de preparar um futuro melhor para nossas crianças e jovens.
5. A Igreja como mãe e educadora, guia e pioneira
Neste esforço de humanização de nossa sociedade pela evangelização da vida familiar a tarefa da Igreja é sobremodo grande enquanto mãe e educadora, guia e pioneira. Com efeito, como dizia Santo Agostinho em sua época: “Non habebit patrem, qui Ecclesiam noluerit habere matrem” (Não terá a Deus por Pai quem recusa ter a Igreja como mãe)[26]. Desde suas origens a Igreja foi querida pelo seu fundador como mãe e educadora: “A seus filhos, ela considerada como mãe, deve assegurar a educação que inspiração da sua vida do espírito de Cristo; ao mesmo tempo ela se oferece para trabalhar com os homens para promover a pessoa humana em sua perfeição, como também para assegurar o bem da sociedade terrestre e a construção de um mundo cada vez mais humano”[27]. Dever-se-á considerar o exercício de seu direito não como uma ingerência ilegítima, mas como colaboração preciosa de sua solicitude maternal, que coloca seus filhos ao abrigo dos perigos graves de um envenenamento doutrinal e moral[28].
Nesta perspectiva é que o Sínodo sobre a África fundamentou a missão evangelizadora do continente rumo ao ano 2000 sobre a idéia força da Igreja Família. Esta expressão, tão rica de sentido recorda a natureza da Igreja como lugar de perdão e de festa, isto é, lugar de atenção ao outro, de acolhimento, do diálogo, de confiança mútua[29].
Devemos, entretanto, reconhecer que temos ainda muito a fazer no âmbito da pastoral familiar, e matrimonial. Mais que um simples trabalho de moralização, é toda uma evangelização de nossas famílias à qual queremos nos associar até o terceiro milênio, pois existem ainda muitos elementos de sobre que merecem ser clarificados à luz do evangelho.
Este é o caso por exemplo, da prática do dote, este presente simbólico entre duas famílias, que na situação sócio-econômica difícil que atravessa a maior parte das famílias cristãs na África, tende a se tornar verdadeira moeda de troca indo de encontro assim, à dignidade da mulher e anuviando o caráter gratuito do amor entre o homem e a mulher. Há outrossim urgência em salvaguardar a unidade e a indissolubilidade do matrimônio na África nos engajando na luta contra a poligamia sob todas as suas formas declaradas ou disfarçadas e o divórcio, estes dois flagelos que destróem a família e o matrimônio.
Além destes problemas que engajam nossa Igreja em todo um trabalho de evangelização e de atualização de nossa catequese do matrimônio, sublinhamos outros males que inquietam as famílias na África, notadamente o drama da AIDS. Com efeito, como o atestam as estatísticas, a África é o continente mais atingido pela pandemia da AIDS cuja primeira vítima é evidentemente a família. Quando uma parte do casal é atingida pela doença, é todo um drama, pois a outra é freqüentemente também infectada e toda a família fica ameaçada. A África conta hoje com muitas crianças órfãs por causa da AIDS. Todas nossas Igrejas locais se lançaram, cada uma segundo suas realidades e possibilidades, na luta contra este flagelo, mas o caminho ainda é longo, dada a complexidade do fenômeno. Entre nós o trabalho se faz tanto a nível sócio-medicinal, por meio dos nossos vários centros de saúde, quanto a nível de informação e sensibilização através dos diversos serviços de nossa pastoral familiar.
Ao lado do drama da AIDS há o escândalo das guerras que dilaceram a África, trazendo como conseqüência maior as milhares de pessoas deslocadas de seu meio. Mas quem são estas pessoas senão as famílias divididas, os casais desunidos, as crianças separadas de seus pais e as famílias que vagam nas florestas etc. Face a este drama, diante do qual nos achamos muitas vezes impotentes, nossas ações consistem em invocar a assistência divina, apelando a sociedade africana à solidariedade, à responsabilidade os nossos dirigentes políticos e à ajuda internacional.
Enfim há a miséria e a pobreza sob todas as formas. A África, como se sabe, atravessa também uma grave situação sócio-econômica devido a vários fatores, notadamente as causas naturais, o subdesenvolvimento, os conflitos políticos, o egoísmo de certos dirigentes políticos e agentes econômicos, a deterioração dos termos de comércio nas relações norte-sul etc. Mesmo aqui, é preciso sublinhar, a primeira vítima parece ser a família. Muitos pais não dispõem de meios para assumir a educação de seus filhos. Assim ficamos convencidos que problemas como delinqüência juvenil, abortos clandestinos entre as jovens, o planejamento familiar nas famílias numerosas, etc., estão relacionados com as questões sociais de salário, alfabetização, moradia, seguridade social, emprego etc…
Por isso, a questão da promoção humana se tornou uma das maiores preocupações das igrejas na África. Na nossa igreja local do Congo esta preocupação se concretizou na busca dos meios de assumir os encargos materiais da Igreja por seus próprios fiéis. Quem diz assumir a manutenção da Igreja pensa em todos os seus projetos de desenvolvimento nos quais, para lutar contra o subdesenvolvimento, estão engajados os pais e mães de família, todas as escolas católicas onde as crianças e os jovens são preparados para enfrentar o futuro, todos os centros de saúde, de nutrição, os asilos de velhos, os lares de jovens etc. Onde como mãe e educadora a Igreja dá o melhor de si para tratar os doentes, instruir os homens e mulheres, reeducar os jovens desfavorecidos, acompanhar as pessoas idosas…
Eminências, Excelência,
Reverendos Padres,
Reverendos Frades, Reverendas Irmãs,
Caros Irmãos e Irmãs, distintos convidados,
Na África, como alhures, a sociedade, sem sequer ter consciência disto, espera muito da Igreja, esta mãe cuja vocação é de “alimentar e cercar de cuidados seus filhos” (Ef 5,29)[30]. Deste modo somos chamados ainda mais, a refletir sobre a missão da Igreja no mundo de amanhã. Por isso, gostaríamos de concluir esta intervenção com um voto para nossa Igreja cujo ensinamento sobre a família, a vida, o amor, a sexualidade, a noção de pessoa humana etc., nem sempre é aceito pela maioria.
Hoje, dizíamos, a sociedade espera muito da Igreja. Mas amanhã, com o ritmo para onde vai a mudança das mentalidades ela nos exigirá ainda muito. Alguns gostariam que ela mudasse como e com o mundo. Muitos gostariam também que a Igreja fosse “democrática”, o que significa consultar o povo de Deus não somente quanto às questões disciplinares, como as relacionadas ao celibato dos sacerdotes, ao acesso das mulheres ao sacerdócio, à nomeação dos bispos…, mas também e sobretudo quanto às questões morais como as referentes à procriação, ao aborto, à contracepção, ao divórcio, à eutanásia, à pena de morte… Muitos concordarão com ela quando anunciar o amor, mas são pouco numerosos os que aceitarão o conteúdo que dará a esta palavra, e menos numerosos ainda aqueles que a escutarão quando vier a denunciar o pecado.
Face a estas situações, a Igreja de amanhã é chamada a responder aos apelos dos homens e das mulheres de nosso tempo evitando de sucumbir a uma dupla tentação: a de uma abertura ao mundo que afiançasse, em última análise, um liberalismo ou um indiferentismo e a de um enrijecimento de seu ensinamento que a rompesse das realidades do mundo. A melhor solução, segundo nosso parecer, consiste em uma busca acompanhadora que saiba unir rigor e indulgência para permanecer fiel à sua vocação de mãe e educadora e realizar o duplo elemento essencial de sua missão que é a glória de Deus e a salvação dos homens. Trata-se antes de tudo de um acompanhamento espiritual, evangélico e pastoral que se quer paciente escuta e amplo diálogo, exortação e testemunho, presença discreta, mas efetiva e afetiva junto aos homens e às mulheres de nossa sociedade, para aconselhar, ajudar, esclarecer, para encorajar os fiéis, apoiar os fracos, recuperar os pecadores… Assim a Igreja de amanhã é chamada a considerar sua missão como a do servo sofredor do qual fala a Sagrada Escritura:
“Eis meu ser a quem apoio,
meu eleito, ao qual quero bem!
Pus nele meu espírito;
Ele levará o direito aos povos.
Não gritará, não levantará a voz
e não fará ouvir sua voz pelas ruas.
Não quebrará a cana já rachada
nem apagará a mecha que está morrendo;
com fidelidade levará o direito.
Ele não esmorecerá nem se deixará abater,
até estabelecer na terra o direito;
e as ilhas aguardam sua doutrina.”
(Is 42,1-4)
Meus agradecimentos.
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Notas:
[1] Vat II, G.S. no. 1.
[2] Code de la famille, in Journal Officièl de la République de Zaire no. Spécial (Aôut 1987).
[3] Cf. João Paulo II, Carta às Famílias Kinshasa, 1987 p. 7, no. 2.
[4] Cardeal Mabula, Directloire de la pastorale du mariage e de la famille, Ed. Archidiocese de Kinshasa, Kinshasa, 1984, p. 15.
[5] Cf. Santo Ambrósio, Exameron, v,7,19.
[6] João Paulo II, EV, no. 6.
[7] Id., no. 5.
[8] João Paulo II, “Entrez dans L’esperance”, Ed. Plon-Mane, Paris, 1994, p. 297.
[9] Id. EV, no. 92 e 94.
[10] Cf. Paul Ricoeur, Soi-moi comme autre, Ed. Du Sevil, Paria, 1990, p. 202.
[11] Cf. Paul Ricoeur, Soi-moi comme autre, Ed. Du Sevil, Paria, 1990, p. 202.
[12] Cf. V. Mulago, La religion traditionelle des bantu e leur vision du monde. Ed. Faculté de theologie catholique de Kinshasa, Kinshasa 1980, p. 133.
[13] O. Bimwenyi Kwehi, L’Afrique au synode, Probléme de la famille, in Bulletin de Theologie, Africaine, IV, 7 1982, 55-73.
[14] Ed. Mujinya, Le mal et e jondement dervier de la movale chez ler Bantu interlacustes, in C.R.A., vol II, no. 5, 1969, p. 60.
[15] Cf. Tshanalenga Ntumba, La philosophie de la jaute dans la tradition Luba, in Péché, Péritence et Réconciliation, Actes de la Geme semaine théologique de Kinshasa, F.T.C.K., 198 p. 138.
[16] João Paulo II, Message Pour la XXXI e journée mondiale des communications sociales, in l’Osservatore Romano, 6 (11 fevrier 1997), p. 7.
[17] João Paulo II, EV, no. 3.
[18] Cf. A. Gesché, Pour penser, T. 1. L’homme, Ed. Du Cerf, Paris, 1993, p. 63-64.
[19] Cf. João Paulo II, Carta às Famílias, no. 5.
[20] Id., EV, no. 70.
[21] João Paulo II, D.S., no. 86. Ver também R.H. no. 12.
[22] Cf. Vat. II, D.V. no. 7.
[23] Cf. João Paulo II, S.V., 19.
[24] J. P. de Cueillar cité par Muyengo Mulombe, Les enfants du ciel, misére de la terra, éd. Saint Paul Afrique, Kinshasa, 1992, p. 9.
[25] João Paulo II, Message pour la XXX, Loc. cit., p. 7.
[26] Santo Agostinho, De symbolo ad Catech. XIII.
[27] Vat. II, G.E.M., no. 3.
[28] Pio XI, Encyclique sur l’éducation de la jeunesse, (1929), Ed. Bonne Presse, Paris, 1930, p. 1.
[29] Cf. João Paulo II, Ecclesia in África, no. 63.
[30] Vat. II L.G
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