Dívidas e Jubileu

Autor: Dom Demétrio Valentini
Responsável pelo Sector Pastoral Social na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

Encarte “Conjuntura Social e Documentação Eclesial”
Dívidas e Jubileu – Elementos para reflexão teológica e pastoral sobre o tema das Dívidas

Introdução

A proximidade do Jubileu do ano Dois Mil coloca em evidência a importância teológica e pastoral do tema das Dívidas. Muito mais do que uma questão periférica e ocasional, a questão das Dívidas está no cerne da proposta do Jubileu, mas está também no cerne do novo relacionamento que Cristo veio estabelecer e propor, tanto assim que ele colocou esta questão na “Oração” que ensinou aos discípulos, síntese prática de todo o seu Evangelho.

O recente encontro promovido pelo Conselho Mundial das Igrejas, em Málaga, na Espanha, de 19 a 21 de abril de 1998, visando preparar uma declaração sobre Dívida Externa a ser assumida pela próxima Assembleia do CMI, evidenciou esta forte vinculação do tema das Dívidas com o Jubileu. Além disto, o contexto ecuménico do encontro mostrou que o tema das dívidas pode se tornar ponto de união entre as Igrejas. Assumindo a causa do “perdão das dívidas”, as Igrejas podem prestar um válido serviço ao mundo de hoje. E a proximidade do mundo muçulmano, onde vai se realizar a Assembleia do CMI, (em Harare, no Zimbabwe), revelou que o tema das dívidas assume a forma aceitável como hoje o evangelho de Cristo pode ser acolhido pelo mundo.

Por isto, o Jubileu pode, sim, se tornar um precioso momento de “Nova Evangelização”, na medida em que for assumida, de maneira adequada, a questão das Dívidas na sua celebração.

1- Vinculação do tema com o Jubileu

Se olhamos em que consiste a proposta bíblica do Jubileu, percebemos que ela se volta, por inteiro, para a situação real vivida pelo povo, propondo a libertação dos jugos acumulados sobre ele. As propostas concretas do Jubileu, pelas quais ele acontece, são: o perdão das dívidas (Dt.15,1-10), a libertação dos escravos (Dt.15,12-14), o repouso das terras aráveis e recuperação das propriedades (Lv.25,1-12).

São distorções que vão se acumulando ao longo dos anos, e que necessitam, periodicamente, de uma rectificação radical. É isto que o Jubileu propõe.

Para efectivar a rectificação de distorções acumuladas, encontra-se a inspiração e a motivação também num acúmulo de significado religioso, contido no sentido bíblico do “sétimo dia” dedicado ao Senhor, e que resultava no descanso para o homem. O Jubileu, afinal, resulta da multiplicação, por sete, de sete anos, que se inspira no sétimo dia, que é o Dia do Senhor.

Portanto, a motivação das propostas do Jubileu tem inspiração religiosa, mas a sua concretização incide sobre a realidade social.

Vale a pena perguntar-nos sobre a direcção que está tomando a celebração do Jubileu, inclusive para conferir se levamos em conta a ênfase dada por João Paulo II à questão das dívidas. Ele teve a lucidez, e a coragem, de ampliar as “indulgências”, que em outros jubileus se limitavam ao perdão dos pecados pessoais. No entender de João Paulo II, a celebração do Jubileu deve convergir para iluminar a realidade e incentivar sua rectificação, suprimindo as opressões acumuladas. Para não acontecer que, em vez da realidade, detenhamos o olhar na própria luz. Quando um estádio é bem iluminado, ele já é, em si mesmo, um bonito espectáculo, que faz parte da festa. Mas toda a iluminação está a serviço do verdadeiro espectáculo, que deve se realizar em campo.

Se toda a iluminação de nossa fé cristã, com o esplendor da revelação trinitária, nada repercutisse sobre a vida do mundo, ainda continuaria válida a pergunta lançada ao povo no exílio: “onde está o Deus de vocês?”. O Jubileu nos incentiva a projectar com força esta luz sobre a realidade, e sentir como ela é benéfica para tornar o mundo mais de acordo com o mistério de amor que Deus revela em si mesmo, que nos envolve, e que Ele propõe como inspiração para um novo relacionamento entre nós.

2- Centralidade do tema das dívidas

Na proposta bíblica do Jubileu, o “perdão das dívidas” constitui o seu núcleo central. Pois na verdade, as diversas opressões acumuladas são expressões de dívidas, que tomam formas de escravidão, de expropriação das propriedades, de exploração da natureza. E’ o sistema produtor de dívidas que deve ser desmontado e neutralizado. Desta maneira se realiza, eficazmente, o “perdão” das dívidas. A intuição de que as “dívidas” estão no cerne do mecanismo de exploração está presente na proposta da Terceira Semana Social Brasileira. Hoje pareceria superado falar em libertação de escravos, mas permanece atual. propor o “resgate das dívidas sociais”, dentro das quais identificamos mecanismos de dominação que produzem os mesmos efeitos dos tempos da escravidão e do colonialismo.

3- A dimensão evangelizadora do “perdão das dívidas”

O sentido amplo e actualizado do “perdão das dívidas”, visando recriar as condições de vida para todos, se constitui numa “boa notícia”, que vem ao encontro das expectativas de todas as pessoas, independentemente de suas convicções religiosas. Daí o potencial evangelizador de um jubileu que tenha como proposta central o perdão das dívidas. Os muçulmanos, por exemplo, não estão celebrando jubileu nenhum, até porque seu calendário é diferente. E nem estão afim de se entusiasmarem, como nós, por “um novo milénio cristão”. Mas se o jubileu cristão tiver a força de propor para o mundo o perdão das dívidas dos países pobres, fica mais aberto o caminho para uma apreciação diferente do cristianismo por parte deles e de todos os povos.

4- Sua importância pastoral

As nossas “Directrizes da Evangelização” destacaram as “exigências” da Evangelização. E colocaram o “serviço” como a primeira delas, inclusive a que abre caminho para as outras: o diálogo, o anúncio explícito e o testemunho de comunhão.

O problema das dívidas comprova esta precedência do serviço nos caminhos da evangelização. Esta precedência o Evangelho a expressa de diversas maneiras, seja pela parábola do Bom Samaritano, onde os preocupados pela dimensão religiosa não souberam ser o “próximo” de que necessitava a vítima dos assaltantes daquele tempo. Hoje os assaltantes são outros, mas certamente nós não poderíamos ignorar a multidão de vítimas do sistema económico saqueador, pela pressa de chegarmos em tempo para as festas do Jubileu.

5- Centralidade evangélica do perdão

O “resgate” da importância das dívidas na questão do Jubileu está recuperando a centralidade evangélica do perdão. Assim entendemos melhor porque a questão do “perdão das dívidas” foi colocado por Cristo em sua “Oração paradigmática” que é o Pai-Nosso. Ela é a concretização prática do Evangelho de Cristo, com seus fundamentos teológicos e sua vivência quotidiana. Pois bem, nesta oração, as dívidas são colocadas como uma realidade que é “nossa”, mas que pelo perdão se torna instrumento da “gratuidade” da misericórdia divina, que é o cerne do Evangelho de Cristo. Assim fica invertida a perspectiva da famosa discussão que ocupou boa parte dos cristãos nesses últimos quinhentos anos, a respeito da “justificação”. A justificação acontece pelo perdão, recebido na condição de também ser dado. E reencontramos, de maneira eficaz, a centralidade de Cristo como portador da misericórdia gratuita do Pai, no amor do Espírito Santo.

São três os “nossos” que dão o ritmo da sequência e do encadeamento de toda a oração que o Senhor nos ensinou: o “Pai-nosso”, o “Pão-nosso”, e as “Nossas-dívidas”, sendo que este último estabelece uma vinculação com os “Nossos-devedores”, vinculação que a oração coloca como condicionante, e que o Evangelho de Mateus retoma em seguida, para enfatizá-la: “Pois, se perdoardes… o Pai vos perdoará… mas se não perdoardes… o vosso Pai também não vos perdoará” (Mt 6,14-15).

Quem sabe, para o ano Dois Mil, com a Campanha da Fraternidade Ecuménica, possamos resgatar também a própria palavra “dívidas” no Pai-nosso, e assim podermos rezar juntos a oração que o Senhor nos ensinou não só com as mesmas palavras, mas com os mesmos sentimentos de perdão mútuo e de unidade refeita.

Fonte: http://www.igreja-presbiteriana.org/Port/index-p.htm

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