Discipulado

Autor: Paulo Lockmann

1) Uma chamada radical – Mc 1.16-20; Mt 10

Desde a cena à margem do mar da Galiléia até à cena da chamada e envio dos discípulos, os Evangelhos não escondem que entre a multidão de seguidores havia os comprometidos com um compromisso radical. Um texto que ilustra isso é o do jovem rico. Afinal ninguém pode servir a dois senhores (Lc 18.18-23; Mt 6.24).

Os discípulos traziam nítido tom popular; eram os mais destacados dentro do movimento de Jesus. Segundo Theissen[1], Jesus não fundou comunidades locais, mas deu origem a um movimento de carismáticos itinerantes. O movimento de Jesus é, antes de tudo, uma desestabilização da religião institucionalizada na sinagoga e no templo. Os discípulos primitivos tornaram-se apóstolos que, itinerantes, andavam de lugar em lugar, sempre em busca de simpatizantes ou prosélitos à sua pregação. Num primeiro momento, dentro do Judaísmo; depois, fora dele.

É curioso notar que, no relato introdutório de Atos, a igreja primitiva de Jerusalém foi dirigida por doze apóstolos (cf. At 1.12ss). Lucas projeta no passado seu ideal presente de uma igreja dirigida por um colegiado. Fato que é visto contrariamente nas alusões de Paulo à igreja de Jerusalém, pois, em sua visita, três anos depois, ele não encontrou senão a Pedro (cf. Gl 1.18). Onde estavam os demais? A resposta é que estavam pregando e curando, à luz do que Jesus havia feito e recomendado que eles fizessem (cf. Mc 3.13ss ou Lc 10.1-11). Numa segunda viagem, Paulo encontra as três colunas (cf. Gl 2.9). O grupo dos doze ou dos 120 dispersou-se logo no início do Cristianismo, tornando-se uma comunidade de itinerantes. O próprio ministério de Paulo revestiu-se dessa característica. Essa característica de Jesus e de seus discípulos tem um contorno sociológico.

Os discípulos, com nítidas características carismáticas, são os moldadores das tradições mais antigas, e constituem o pano de fundo social de uma parte significativa da tradição sinótica. Seus esforços pela recuperação das palavras (logias) de Jesus, através de citações em suas pregações missionárias, representam a melhor fonte do que hoje se convencionou chamar de Evangelho anterior aos evangelhos.

Podemos dizer que certas ordens de Jesus como Rabi, a esses discípulos, são por eles perpetuadas em seus comportamentos e formas de convívio social, pois foram eles que praticaram e transmitiram tais palavras. Foram eles que deram as bases missionárias e que fundaram igrejas como Samaria, Cesaréia, Antioquia e Damasco. O mais interessante nesse movimento missionário dos discípulos são as normas éticas, porque fazem referências diretas ao comportamento dos seguidores de Jesus, mesmo em estilo missionário. Nesta ética, encontra-se o fundamento sociológico, com sérias implicações político-econômicas, pois envolvem renúncia a lugar estável (cf. Mt 8.20), à família (cf. Mt 10.37-39), à prosperidade (cf. Mt 4.22; 19.37), e ao sustento (cf. Mt 6.25-33; 10.8-10). Analisemos cada uma dessas características. Sabendo que elas refletem uma situação histórica difícil, onde o contexto determinava tal ação missionária comprometida e completamente itinerante, não sendo necessariamente assumida por toda a igreja. Para se entender deve se ler pausadamente Mateus 10.

2) Renúncia a um lugar estável

Abandono à estabilidade em um local. Esses pregadores eram agora cidadãos. Os chamados deixavam casas e plantações (cf. Mt 4.22; 10.34-39; cf. Mc 1.16; 10.28ss); seguiam a Jesus e o acompanhavam na renúncia a um lugar estável. A expressão de Jesus em Mt 8.20 aponta a dureza dessa opção. Nada nos garante que os discípulos tenham assumido outra postura. Paulo enfatiza o imitar a Cristo (cf. 1Co 11.1); certamente isso tornou-se postura a ser enfatizada no mesmo espírito com que era celebrada a Eucaristia. A reconstituição de tais ordens por Mateus, no capítulo 10, mostra o quanto isso foi levado a sério pela igreja. Em favor disso, estão as conclusões de Martin Dibelius acerca da forma da mensagem da igreja primitiva[2]. Para ele, a mensagem foi, durante um primeiro tempo, missionário, resultado do compromisso sem lugar fixo dos primeiros discípulos. O Didaquê, de Clemente Romano, traz, entre seus ensinos, uma orientação normativa para esses pregadores; diz assim o texto: “Um apóstolo que fica mais de dois dias num lugar é um falso profeta”[3].

3) A renúncia à família

A ausência da família era uma marca desses pregadores do Cristianismo primitivo. A ruptura com a família implicava demonstração de desapego e piedade, a ponto de não enterrarem seus mortos (cf. Mt 8.22). Outros ainda largavam seus pais em pleno trabalho (cf. Mc 1.10). Renunciavam, inclusive, a uma companheira (cf. Mt 19.10). Isso fez com que, em muitos lugares, não fossem bem recebidos. Em troca, eles passavam a formar uma verdadeira família, constituída dos que ouviam e praticavam a palavra do Mestre (cf. Lc 8.19-21). Jesus não foi entendido por sua família, que não aceitou sua condição itinerante e profética, e o considerou demente. Tal exigência na vida dos pregadores itinerantes gerou conflitos familiares (cf. Lc 12.52), que foram entendidos pela comunidade como conflitos dos tempos do fim.

4) Renúncia à propriedade privada

Uma terceira característica é a de crítica frente à riqueza e à propriedade. A marcha desses pregadores ambulantes é marcada pela pobreza, resultado do quadro econômico da Palestina. Exigia-se do discípulo que aprendesse a levar apenas o necessário. Nada de duas túnicas, nem dinheiro, alforje (cf. Mt 10.10). Jesus mesmo não tinha onde reclinar a cabeça; dependia da solidariedade, e assim mandava que vivessem seus discípulos. O discípulo deveria dar seus bens aos pobres (cf. Mc 19.17ss), algo que o jovem rico não aceitou. Barnabé, por exemplo, vendeu uma parte de seus bens (cf. At 4.36) e entregou aos discípulos. Frente a essa postura, Jesus diz: “é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha, que um rico entrar no Reino de Deus” (Mc 10.25). Há ainda o estímulo a que guardemos riquezas no céu e na terra (cf. Mt 6.19-20), e também advertência quanto a não se poder servir, ao mesmo tempo, a Deus e às riquezas (cf. Lc 16.8). Tudo se completa com os ais sobre os ricos, fartos e reis (cf. Lc 6.24s). Era parte do ensino de Jesus que se incorporava à igreja (cf. Lc 16.19-31). Cabe ressaltar que, na vida dos discípulos e de Jesus, a pobreza não era um destino fatal e sem retorno, mas uma opção de renúncia, um ideal de solidariedade com a grande maioria do povo.

5) Renúncia à segurança pessoal

Corriam o risco de ilegalidade e do desamparo. Além de Atos, o texto do historiador romano Tácito nos mostra a perseguição de que foram vítimas os cristãos, no período de Nero, responsabilizados que foram pelo incêndio de Roma, em 64. Isso nos mostra o quanto, numa sociedade imperial, opressiva, latifundiária, a pregação cristã se torna incômoda. E, deste modo, nós, em defesa de nosso bem-estar e segurança, não venhamos a nos intimidar de levar a Palavra de

Deus às nações, onde o mal tem oprimido, humilhado e intimidado tantas vidas.

6) Conclusão

Por que meditarmos na vida dos pregadores itinerantes do Cristianismo primitivo? Porque tais vidas constituem um marco histórico, e uma referência que nunca pode ser perdida de vista. É bom que hoje tenhamos melhores condições de vida para os nossos pregadores, missionários e pastores, mas essa memória deve estar sempre presente, para que não percamos de vista um modo de vida simples, e tampouco se apague a paixão pelas almas que moveu Pedro, Paulo, Barnabé, João Wesley, etc.

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