Deus é "Glória": A glória do Pai na face humana do Filho

Autor: Fr. Luiz Carlos Susin
Nem a dor e nem a morte são a última palavra sobre a condição das criaturas de Deus, inclusive sobre a humilhação da morte de cruz do próprio Filho de Deus. Há uma revelação surpreendente da reação e da resposta de Deus ao que foi feito com o Filho na cruz: “Deus o superexaltou soberanamente e o agraciou com o Nome que é sobre todo nome”(Fl 2, 9). Este acontecimento de exaltação, de glorificação, de elevação, de assunção ou ascensão de Jesus, é também o que a fé cristã professa como “ressurreição” de Jesus e esperança de nossa ressurreição. É o acontecimento trinitário central da fé cristã, centro de um rico percurso bíblico, a manifestação da glória de Deus. Glória desejada e amada, glória que fascina e salva, glória imortal, mas que precisa de uma purificação da mente e do coração para ser corretamente
reconhecida.

Nada mais perigoso de equívocos do que o desejo da glória. Humanamente é experimentada com a demonstração de força, com a majestade do poder, com as formas de fascínio, com o espetáculo e o deslumbramento, a sedução do encanto, a idolatrização, enfim a afirmação de si . A glória é uma forma de relacionamento, de manifestação de autoridade e de poder, de riqueza e de saber, sempre como soberania e auto-afirmação diante de outros, que são reduzidos a auditório disposto a aplaudir, louvar, sacrificar, entregar-se.
Resumamos numa palavra: a glória, humanamente, é uma forma de poder, de manifestar-se poderoso.

Na proclamação da ressurreição de Jesus, isso poderia soar como uma “revanche”, uma vingança por parte de Deus. Ele seria o mais forte que amarra o forte. Por isso Jesus foi considerado também amigo de Belzebu, o chefe dos demônios, quando conseguia mostrar poder sobre os demônios numa
luta de poderes. Mas Jesus afirma que sua cura e libertação vêm do “dedo de Deus”, portanto do Espírito Santo, e não da lógica dos poderes que lutam entre si.

Diante dos que procuram matá-lo porque ele cura e dá vida, Jesus revela a miséria humana que busca glória, auto-afirmação: “Vós recebeis glória uns dos outros”(Jo 5,44). Jesus critica fortemente os discípulos que desejam
sentar-se à direita e à esquerda do Messias “no trono de glória”(Mt 19,28). Em todo o evangelho, sobretudo de Marcos, Jesus é avesso à gritaria dos curados e dos libertos ou mesmo da multidão em torno daquilo que ele faz ou diz de maravilhoso: manda calar. E a Pedro, que quer seguí-lo na glória sem aceitar o sofrimento, chama de “satanás”, o tentador (Cf Mc 9,27-33). Até o derradeiro instante, na última tentação, Jesus recusa “descer da cruz” e manifestar assim o poder e o espetáculo de Deus do seu lado contra os seus sacrificadores. Jesus morreu vazio dessa glória. Mas a ressurreição é a glória de Deus em outro sentido, no sentido que já vinha se descortinando no
história bíblica, o oposto da tendência humana para a glória.

Na Bíblia, a glória de Deus não consiste em se impor com majestade diante das criaturas. Ele simplesmente não precisa desta glória. É tão Deus que não precisa ser idolatrado. Deus não busca a própria glória, não é sedento de espetáculo nem de vingança. Mas não é um Deus indiferente à glória. É que a glória de Deus se dá de forma absolutamente indireta: nas suas criaturas. Lá
onde Deus cria, abre espaço de vida, faz nascer e regenerar-se, está a glória de Deus. Santo Ireneu resumiu bem a glória de Deus e a verdadeira glória humana: “A glória de Deus é que o humano viva, e a glória humana é ver a Deus”. Mas a Deus não se vê em espetáculo direto, se vê na
glorificação, na transfiguração e salvação de suas criaturas. É o que os biblistas chamam de “passivo divino”: Deus é sem nome e sem imagem, é absolutamente inalcançável, mas se mostra presente e próximo lá onde as dores de morte são superadas por dores de nascimento e de parto. É esse um
dos significados da palavra “Javé”: “Deus-dor-de-parto”. A glória de Javé está simbolizada no êxodo do povo saindo da escravidão e buscando um lugar para viver. Há uma nuvem, símbolo da presença protetora, que acompanha este povo nascendo: “Eis que a glória de Javé apareceu na nuvem”(Ex 16,10;cf 24,16;40;34). Ao contrário das glórias humanas, a glória de Deus não é uma glória que se afirma na altura, que sobe em busca de palco e de afirmação, glória narcisista, própria dos ídolos que precisam de fãs e adoradores, mas uma glória que desce, que se esvazia de si para ser um seio maternal, envolvente, se põe a serviço, que nutre e protege a vida.

No Novo Testamento essa mesma “nuvem” de glória cobre o seio da pequena Maria e envolve os desprezados pastores no meio da noite (Lc 1 e 2), é reconhecida com louvor por Jesus nos pequeninos a quem Deus dá a conhecer o que esconde aos soberbos (Cf Lc 10,21-22), e envolve o próprio Jesus para confirmar sua missão num caminho difícil e doloroso (Cf Lc 9,28-36). Jesus, além de calar e repreender a busca da glória vã, ensinando a se colocar no lugar de quem serve e não no lugar de quem é servido, não tem nenhuma ilusão de glória: vence as tentação e “não procura a glória que vem dos homens” (Cf Jo 5,41). Conforme João, a própria morte de Jesus, elevado na humilhação da cruz é, na verdade, a elevação e manifestação da glória de Deus para quem sabe olhar com os olhos de Deus: ele “amou até o fim”(Jo 13.1) e deu sua vida, e esta é a glória suficiente de Deus na cruz de Jesus.

No entanto, as mulheres que voltaram ao túmulo onde se selaria o triunfo da injustiça e da morte, receberam, assim como os pastores e os pequeninos, o impacto da glória de Deus: Porque elas buscam entre os mortos aquele que vive? Ele não está no lugar da morte, não é um morto que salva da morte, a morte não agrada a Deus: “não está aqui, ressuscitou”(Lc 24,5-6). E Pedro, mais tarde, proclama publicamente: Aquele que vocês mataram pensando com isso agradar a Deus, na verdade Deus o justificou, esteve do lado dele e não do lado de vocês, e o estabeleceu como Salvador (cf.Atos 5,30-31). Paulo, por sua vez, transmite o núcleo de sua mensagem nesses termos: Ressuscitou – ao terceiro dia, conforme as Escrituras – e foi mostrado, primeiro a Pedro, aos Doze, a mais de quinhentos irmãos, a Tiago, a todos os apóstolos e finalmente a mim, o abortivo (Cf. 1Cor 15, 3-8). Finalmente, ao começar a carta aos romanos, Paulo lembra que Jesus foi “constituído Filho de Deus com poder por sua ressurreição dos mortos segundo o Espírito de santidade”(Rm 1,4).

Tudo isso nos faz concluir por uma ação trinitária na glória discreta da ressurreição. O Filho não se ressuscita a si mesmo como um herói que não teria morrido, mas é o morto, divina e humanamente vazio e incapacitado de
agir, que escuta e obedece a voz criadora e convidativa do Pai na energia criadora e transfiguradora do Espírito. A ressurreição acontece no segredo da Trindade: ninguém viu a ressurreição. Mas o Filho é mostrado – revelado,
glorificado – diante das testemunhas humildes como os pastores e os pequeninos: as mulheres e os discípulos. Não porque o Pai vinga o Filho tornando-o poderoso, pois a ressurreição continua no anúncio humano da comunidade. A Trindade não se exibe divinamente, mas revela a face humana
transfigurada do Filho para que todos os que crêem nele e com ele morrem saibam qual é a verdadeira glória futura que os espera na comunhão da Trindade, no desígnio do Pai e na força ressuscitadora do Espírito. A ressurreição continua a ser a glória de Deus como missão para fora de si, sem narcisismo, voltada maternalmente para as suas criaturas. É protesto e sorriso de Deus, mas como glória sem espetáculos, suave como brisa que salva.

Porto Alegre/2000
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